quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

SURDO-MUDOS


   


Não ouvem a voz do baixo
nem o gemido da guitarra.

Estão absortos em si mesmos.

A melodia interna
não tem harmonia.

Antes
frases inaudíveis
& acordes censurados.

O espetáculo
que ora acontece
não lhes diz respeito...

O mandacaru

Do semi-árido da seca inclemente
trago bem viva a lembrança verdejante
da alva e bela flor do mandacaru
rainha da estiagem e sobrevivente



Ricardo Mainieri   

Morena de Angola.



J. Norinaldo.

Dos brilhantes que adornam teu sorriso,
Neste mundo encantado de Afrodite,
Nenhum deles é mais raro que teus olhos,
Como outros que encantaram o Egito;
Os belos olhos da rainha Nefertite,
Como o deus sol que encantava o infinito.

Não importa a cor que tenha o manto,
Nem o mistério que se esconde na esfinge,
A beleza do castelo esta no todo;
A flor de Lótus só brota onde há lodo,
Teu sorriso mostra ao mundo uma verdade...
Que a cor, não revela, apenas tinge.

O meu país num exemplo de grandeza,
Entregou-te o que é teu por natureza,
O manto, o trono a coroa e o bastão,
Mostrando que em cada coração;
Existe um rei ou uma rainha da beleza,
Lembro Anastácia no tempo da escravidão.

Canta angola o teu canto de alegria,
Hoje o planeta volta os olhos para ti,
E as aves cantam a canção do paraíso,
Se já não tinhas mais motivos pra sorrir,
Diz ao mundo que a beleza não tem cor...
E com amor, também é teu este sorriso.


CHÃO DE MINHA REALIDADE...




Não quero criar mais histórias...
Elas não têm sido coniventes comigo.
Nem quero extrair dos meus escritos
efeitos infinitos,
pra que não digam que estou sendo ambíguo.
Não quero precipitar em meu coração
dores, rancores ou qualquer milagrosa mansidão.

Vagar também pelos poderes divinos
é algo que não se estabelece em meu destino,
pois que esse "voar" é meritório.
Nada do que nos é delegado é obrigatório,
portanto nada mais que justo
que eu me reconheça não merecedor,
em função da escolha do meu próprio arbítrio.

Contrito buscarei em minhas vontades sempre redivivas
as respostas aos porquês,
que fazem com que minha ânsia torne-se significativa
e minhas vontades fluam ativas,
pois que outras oportunidades...
dificilmente surgem...

Vou tentar resvalar o orbe de minhas verdades
sem querer aprofundar-me em complexos escritos,
apenas reconhecendo ser absolutamente finito
o meu poder de estar circunscrito
naquilo que realmente levar-me-ia ao céu dos meus sonhos...
Ao chão da minha realidade...

josemir (ao longo...)



*
Felicidade... pedaços de papéis picados voando no céu , estrelas reluzentes piscando num céu escuro,rostos sorridentes numa multidão apática, um olhar parado longínquo de esperança....


Luiza Silva Oliveira       

ESTE CAMINHO ESTÁ MAIS LONGE




Este caminho está
mais longe que os minutos de sempre.

A chuva fina no vento
vem como partículas de gelo
liquefeitas no meu rosto que queima.

Quase não abro os olhos
virados pela cabeça baixa
para a calçada umedecida.

Não vejo nada, a não ser,
dentro de mim,
meus pensamentos
que a ninguém interessariam.

Adriano do Carmo lima
abril/ 2009


No coração de um poeta
o amor nunca morre,
apenas se modifica.

Há sempre amor
no coração de um poeta,
enquanto esse poeta tem vida.

Kadu R. Matos

carta aberta




farei minha casa de árvore
no bonsai.

janeleira como olhos,
buliçosa,
a araucária cujos galhos
serão verdes cobras...

mas o veneno será todo meu.

vou contente,
saio sem nove horas.
vou lavar minhas únicas roupas
nos arroios da saliva,
quará-las à luz da lua.

farei minha casa de árvore
no bonsai.

amarelecida de fruta-cor e mijo,
a página,
a língua que lhe falta,
indaga-se:
– onde estás? onde estás,
tu que sangravas tanto?

escreva-me de mim o que
quiseres, página,
não me ouço mais!
assino-te em branco,
fundo tuas margens
num fio de catástrofe.
as palavras já são calhaus.

longe, fui colher insetos
através da noite

e afio minha faca no orvalho.


by Rodrigo Madeira

Mais tarde




mais tarde
quem sabe
eu tente
um poema
irreverente
que me tire
deste sério

que me arranque
do velho dilema
de ser ou não ser

que pena
até porque
me acostumei
com o fantasma
da dúvida cruel
já que o resto
é coisa de cinema


 – Lota Moncada

se todos morremos na estrada
o que fazer dos caminhos?

-vou desarmá-los, amada."
RR

vozes mudas


       
estátuas de bronze adormecem nos jardins dos esquecidos,
cabeças cortadas submergem no esgoto cheio de lôdo,
crianças com vendas nos olhos, retalham filhotes de passarinhos,
entre a fome e o frio congelado, brincam de mímica nos suores da noite,

com suas calças rendadas, prostitutas fazem a ronda da noite,
em esquinas escuras, postes altivos iluminam o vazio ensurdecedor,
Sirenes barulhentas ferem o silencio seco sem aconchego,
ratazanas saem do seu esco nderijo, bisbilhotando transeuntes pálidos,

loucos feridos fogem de hospícios com seus aventais compridos
afugentados das alucinações patinam na neve da comoção e da dor,
comiserados do destino sofrem atentados do desatino,
árvores descontroladas soçobram nas tempestade de pedras,
ventos alucinantes dançam na escuridão chuvosa....

fúrias engessadas cobrem devaneios inúteis,
possessos se trombam em avenidas escuras,
tenentes sem fardas lamentam o tempo perdido
meninos de rua limpam faróis quebrados, cortantes,

vozes sem liberdade escoam em ralos fétidos,
amores em vão raspam carnes sanguinolentas,
gemidos adormecem em calçadas cheias de võmitos,
romances se quebram em bares da esquina...

pescoços pendurados apodrecem em praças públicas,
vozes esgarniçadas ressoam no infinito...
cantos de rouxinóis fracassam em rochedos montanhosos,
restos mortais se misturam com fragmentos de vidas....

THE END

Luiza Silva Oliveira  

ESPELHO DE PALAVRAS MUDAS




Atravesso o frio
que o reflexo deste espelho
me serve como solidão.

Mergulho na secura súbita de sentimentos.
Deserto estridente das horas
onde olhares não se movem.

Procuro o tempo que se esconde
nesta paisagem falsa
que me cerca.

Bruno de Paula


CAMINHADA




corro na rua vazia
sem carros
sem casas
sem vias
onde perco-me
a procurar por mim
vou como bêbada
na incerteza das
escolhas inúteis
patino na lama
erro em becos
caio em buracos
e aos pedaços
desnudo meu medo
que se reflete
no espelho
da chuva
nua
brinco de
palhaço
viro uma
esquina escura
vou descalça
não há lua
só uma estrada
uma linha
um nada
minha caminhada
minha alma
impura

(Cristina Desouza)

PESCADOR DE ALMA SOFRIDA




Cabeça caída em braços sofridos.
Olhar e mãos vazias,
que se fundem as águas do rio.
Pescador de alma sofrida,
fé esquecida
pelas margens da Vida.
Sem sonhos para pescar,
sem futuro para sonhar,
onde aportar ... ?
Resta-lhe a solidão,
que inunda como as cheias,
o que lhe resta do coração.

Bruno de Paula


Fragmentos...




" O disfarce fica em forma de sorriso
A dor, em forma de canção...
E a saudade chora, a dor grita!
E eu, conto fragmentos..."

Karmona

GHEGADA OU PONTO DE PARTIDA?




Na aldeia dos povos ditos cônscios
tem gente que parte, tem gente que fica...
tem gente que murmura, tem gente que grita...
enfim, toda uma gama de estradas de pedras,
onde o que se segreda,
estampa-se em faces que despertam do sono
sem deixar de dormir, pois que continuam
escravas dos sonhos...

Assim mesmo, um ir e vir quase a esmo
num giro que se fez o mesmo,
pois o tempo talvez por lá tenha parado
enquanto a noite se fez...
sei lá... talvez...

Na aldeia dos que dizem-se civilizados
as danças são movimentos descoordenados,
onde o corpo enlaçado tem dificuldades
de se fazer movente...
o inconsciente...
sim o inconsciente assola a mente
enquanto os olhos fechados,
pensam romper com os medos
e arriscam-se a olhar de soslaio.
Coisas de gente desconfiada...

Na aldeia dos que se dizem libertos
existem savanas, estepes, areia e deserto...
existem os lentos de pensamento,
os que se vêem por demasia espertos.
Existem os lacaios... existem os mandantes...
existe o momento adiante,
mas inexiste o presente.
Eles não o percebem,
constatação deprimente...

Eu estou nessa aldeia.
Como viajor que sou
preciso expor,
o fundo vivo de minha história...
eis a aldeia, e nela a minha vida.
Nesse momento:
chegada ou ponto de partida?

josemir (ao longo...)

desafiando a terra ardente




E é na calada da madrugada morna
que seus botões insistem em surgir
e despontam insolentes
por entre os espinhos intrincados
do mandacaru ainda dormente.

Dura uma noite só a branca flor
e ao alvorecer murcha deixando a certeza
da chegada da chuva benfazeja
sempre que nascem as primeiras flores brancas
do subversivo mandacaru.

É festa na aridez do sertão:
esperança renascida com o vento quente e seco
e descortinando o vale vermelho da terra trincando sob os pés,
segue a boiada na ansiosa espera da agua salvadora
enquanto altaneiro ,o fruto violeta da planta espinhosa
é alimento do gado e dos homens de pés no chão

E como o sertanejo,resistente aos embates e ás intempéries
o mandacaru insiste:é a vida que vai driblando a morte
que espreita por entre as sombras do deserto de meu Deus.
Vida renascida por entre espinhos,do cactus verde e arisco
na forma de flor ,quase amor,prenuncio de melhor sorte.

Sonho com as aguas cristalinas do Velho Chico,
sonho com a agua que vertendo do céu em enxurrada,
é o aviso de que Deus ouviu as preces das mulheres da caatinga,
e na estação chuvosa há espaço para risos e bem-aventurança,
e desafiando céu e mar de areia fumegante ,
que não esmoreça jamais
nossa E-S-P-E-R-A-N-ÇA!

Marcia Tigani_ novembro 2010


EXERCÍCIO ZEN: ELIMINANDO OS EXCESSOS




Não se pode ensinar nada
Pra quem acha que ja sabe tudo...

Não se pode pôr água
Em recipiente já cheio

Quando algo extravasa de si
Só pode se derramar.
Seja em dor
Ou seja em amor

A paz esta no silêncio
E na liberdade
De se ser
O que se é...

Sem excesso de palavras
Sem acumulo de informações
Sem gestos exagerados
E sem achar: Já aprendi!

Viver como uma folha em branco...

Com a calma do mar
Que mesmo batendo
Por milênios na mesma pedra
Nunca a encontra na mesma forma
Já que os dois (...)
Estão em eterna transformação.

                Victtoria Rossini: 


victtoriarossinipoesia.blogspot.com

O Caule da Vida.


   

Sob o arco do templo me curvo, sob a sombra do monte me amparo, sob o átrio da câmara me calo, sobre o piso da sala do trono eu me ajoelho perante seu dono, desejando matar meu senhor. Meu camelo me segue sem pressa, mastigando algum talo sem gosto, no olhar somente indiferença, sem ter crença, amizade ou desgosto. Na dobra quadrada da esquina, a marca do tempo se prende a resina do caule da vida. O limo grudado nas pedras do arco, dá vida a avenca que baila com o vento, e adorna a entrada do templo em ruína. E o camelo me segue com indiferença enquanto caminha seu talo rumina; as marcas do tempo no caule da vida, como o limo das pedras do arco do templo, arredondam com o tempo o quadrado da esquina. Quando as luzes se apagam e se fecha a cortina, o ato termina e os aplausos não vêm as estrelas não brilham, e o camelo não masca mais seu talo sem graça, só no último ato o homem aprende, enquanto a casca se desprende do caule da vida.

José Tavares    

almaxpoesia.blogspot.com

O VERDADEIRO CADAFALSO



Quanto de louco eu tenho na cachola?
Quanto de gênio? Quanto de abobado?
Quanto de poeta pronto e acabado?
Quantos quantos enquanto a vida rola?
Não sei, mas sei que o “nada sei” não cola.
Não jogo pedra em vidro de telhado
nem dou vez a assunto morto e enterrado.
A viver eu ensino e faço escola.
Se muita vez sou bruto ou até estúpido,
é com essa didática que eu me safo.
Quem me afaga também desce o sarrafo.
Meu doce estilo novo é um tanto rústico
mas sempre digo bem o mal que sinto.
Pra falar a verdade, eu sempre minto.

antonio thadeu wojciechowski

CAMINHO




sigo apenas
o meu caminho
vou despido
vou sozinho

entro em trilhas
que desconheço
mato a dor
e recomeço

nada fica
tudo passa
na falta da caça
invento
meu alimento

como a lua
bebo o vento
o sol ao alto
desfaz
o sofrimento

sobra vida
e na luta
sem medida
só o tempo
é guarida

despeço-me
com um legado
de música
de fado
e um quadro
que pinto
com letras
para dizer
o que sinto
(mas minto)
quando toco
as estrelas

(Cristina Desouza)


vou remontá-la toda
minha amada
numa poesia de dança
e gargalhada."

Romério Rômulo

STAT ROSA PRISTINA NOMINE, NOMINA NUDA TENEMUS




Quando eu digo "rosa",
eu não tenho uma rosa diante de mim
-- no máximo uma imagem, ou um conceito, em minha mente vã.
Quando eu digo "Tebas",
eu não recrio a fabulosa cidade das sete portas.
Quando eu digo "Deus", eu não crio Deus, ainda que o queira.
Quando eu digo "saudade", eu não crio nada,
não suscito nada, nem ressuscito.
Só o vazio, que em si mesmo não existe, se abre em mim, voraz:
o vazio da rosa, o vazio de Tebas, o vazio de Deus
e o vazio dos teus olhos
que a essa altura são duas órbitas vazadas debaixo da terra.

Otto Leopoldo Winck


Sonho:




Desperto em outra existência
Sonho
Crio estórias que nunca aconteceram
Vejo as mais belas cenas
E me sinto feliz
Desloco-me para longe
Estou em dois lugares ao mesmo tempo
Reúno duas pessoas em uma
Ou a faço transformar-se em outra
Sou a autora
O sonho é meu
Invento o enredo
Onde o tempo o espaço
E as atividades do meu corpo,
Não tem poder algum.

(Márcia Lailin)

o leite dos ungulados




1

● leite quente leite negro leite esperma ●
● sangue no estrume nuvens de moscas ●
● esperma rubro vindo das dores da noite ●
● fria demais q se enrosca entre dores ●
● não espera so resseca escondido ●
● porisso agarro o peito imenso q flutua ●

● como velho zepelim desgovernado ●
● cheio de leite gotejando como chuva ●
● inverno feridas me rasgam o peito ●
● terei leite terei uma noite uma hora ●
● quem sabe furtivo eu durma cheio ●
● do leite negro leite sangue dizendo ●
● ?como dormir ?como viver ●

2

● do imenso peito engulo ●
● com labios e lingua ●
● quente o leite dos ungulados ●
● ouvindo os cascos baterem ●
● afundarem no estrume mole ●
● ha tantas moscas ao redor ●
● so a fome é mais quente ●

● q o leite dos ungulados ●
● queimando labios e lingua ●
● garganta e estomago ●
● sem o leite dos ungulados ●
● calcando agora estrume mole ●
● entre nuvens de moscas ●
● ?como dormir ?como viver ●

3

● ha um vento frio la fora ●
● q o leite quente dos ungulados ●
● sugado pelos labios escorrendo ●
● pela lingua garganta estomago ●
● entre nuvens de moscas ●
● entre tetas no estrume mole ●
● não consegue aquecer ●

● a dor sabe requer sempre mais ●
● talvez porisso esse leite ●
● quente dos ungulados na boca ●
● não conseguira mudar nada ●
● nem mesmo se fosse mil peitos ●
● so nuvens de moscas no estrume ●
● ?como dormir ?como viver ●

*ALC

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019


"Hoje, porém, era o inverso. Em vez de ler, escrevia. Meia página por dia, não mais e não era pouco. O bastante, pensava. Até porque, o tema exigia reflexão e ritmo lento. A história que escrevia, dia a dia, tratava apenas de mulheres. Mas não apenas de mulheres como únicas personagens da história, mas sobre o seu ritmo e lento movimento. Sobre sua voracidade." 

Trecho de "A lagarta do Bolshoi",  de Silvio Piresh


"...gastava todo o tempo tentando colocar alguma história no papel. Percebia a dificuldade e o ato solitário que era escrever. Às vezes, triangulava os braços sobre o queixo, como se essa engenharia fosse única e indispensável para sustentar um ou outro fragmento do texto.".

Silvio Piresh.

 Trecho de A lagarta do Bolshoi



Olhar tão solitário é mais cruel
A vida sem amor perdendo o lastro,
Meu verso vasculhando, ganha o céu,
Procura por pegadas, cada rastro

Deixado pelos passos de um corcel
Nos seios da mulher, puro alabastro,
Os olhos descortinam claro véu,
Quem dera se eu pudesse ser um astro

Ganhando a eternidade em manso beijo,
Num mundo mais gentil que em ti prevejo
Uma alegria imensa como lei.

Depois de tanto tempo, assim vazio
A senda sempre flórea, agora eu crio
Conforme nos meus sonhos, procurei...

MARCOS LOURES


Apocalíptico




Tufões de frio espalham gelo em pó.
Ventos amargos vão surrando os mares.
A noite crua mata o sol sem dó:
Morre o maior dos mártires dos ares!

No mais profundo abismo as águas vivas
Imortais frente ao mais penoso atrito,
Regridem para as fases primitivas...
Por ora o que fazer? Silêncio ou grito?

Velhas castas de nuvens pesam nada,
Mas rugem tal e qual as bestas feras:
São batalhões formando a tropa armada!

Meus olhos tristes de retinas gastas
E espanto à burca que cobriu a Terra,
A Deus se elevam e, me fecho em aspas!

Eliane Triska

Réquiem





Não me esperes

antes que os sinos digam

das tristezas das minhas ruas.


Por ora, deixa-me e espera!

que também te esperarei com flores.


E, quando eu voltar

das dores outonais caídas,

os sinos, com suas saias rodadas,

serão minhas despedidas,

e não me quererás mais.


Então, não me esperes,

porque a primavera ainda não floriu

e o amanhã pode querer murchá-la

ao vê-la reanimar

o poema

que deixaste morrer no rio...
Eliane Triska

Canoas, outubro de 2010/RS



Quero moinhos rodando na palma da mão
Quero flores ornando os postes da cidade
Quero sabiás voltando em alarde ao ninho.
Quero caminhos indo a cem palmos do chão
À sombra dos álamos, quero calar o coração
Pra que na tarde a paz nasça - amor em grão.



Evandro Souza Gomes

Vamos lá, Sr. Eduardo Ribeiro Toledo


    


Para um dedo de prosa

Carta ao jovem menestrel

Quero conduzir-te a sítios, guiando-te de um lado para o outro; sou eu, teu garoto. Venha comigo repousar neste quintal; já posso ver-te em mim, tenho a chave do portão do jardim, cá dentro em nós.

Andemos, mãos dadas; diz-me tudo quanto preciso olvidar. Em tua presença falar é despir meu imo, é tornar ao instante indelével. Não determina o tempo as contas dos nossos contos nos recantos deste eido prazenteiro, onde Jeliel está debruçado sobre a sua criação.

Cantarei só pra ti todas as estações; o eterno retorno das flores; a vedada senda deste prado. Que coisa madura e divertida, rir! Quero contigo tornar ao meu desígnio, ser teu instrumento. Vem seguir-me o passo e trasbordar de luzes na luz das manhãs. Tens algum engano? Alguém já te deu carinho? Gosto do teu beijo; minha face brilha num sorriso.

Toda vontade nos renova o viço, nesta seara de poesia; tudo, aqui, há. O cessar da rota solar no ocidente é belo e, à noite, guardo uma surpresa; neste canteiro de erva verde nos permitimos; a árvore de todos os frutos nos extingue a fome; há um salto d’água de fonte virginal, gotículas do véu de sua queda flutuam úmidas e refrescantes no espaço; quão mais sincera for tua anima ao gozar, aqui, nestes círculos de homogeneidades mais estarás ao centro, espírito. Adorar a graça é refazermo-nos, melhor.

Venha, que sou guia dos mistérios cultivados neste campo; posso regar seu rego e desfazer as nuvens nos céus; quiçá, o rebroto, neste pomar fecundo floresça-me, frutificando em ti. Queres um arco colorido, no firmamento dos astros, de extraordinários matizes? Derramar a florescência da palma das mãos, entre os dedos, neste chão? Permitas-te desejar-te; é esse o encanto.


Fabio Freire


Me contamino de venenos mórbidos exalados do social, vomito vísceras entaladas, como o fígado,pâncreas, baço...
Me refaço, mergulho na natureza e me recomponho com um chá medicinal Mozart, limpo meu fígado e minha vida de porcarias e quinquilharias; renasço com a nova nascente do rio, agonias do deserto, em quinta dimensão, transformo-o ,num oásis de fertilidades comandadas por mestres da poesia,da filosofia,da solidão...


Luiza Silva Oliveira     

SÓS E NUS (ABELHA/ABELHA)






Todo mundo está só na vida.
Todo mundo está só e nu.
Já se disse que as cidades
São grandes desertos, todas elas.
Já se disse, decerto, que todo mundo,
— Mas todos mesmo, estão sós e nus,
A vaguear por sobre desertos,
Embora pisando a rua dos-homens.

Alguém me disse qu’eu estaria mais só.
Mas todo mundo deveras está só e nu,
E isso nem sequer é tão ruim.
Nada pelo que clamar o socorro dos elfos.
Nada por que temer e desfraldar alfanjes.

Outra pessoa — menina e tão tenra na vida,
Fez-me ouvir uma canção que dizia:
Talvez eu seja a menina que vai te amar...

Todo mundo está só consigo,
Mas a solidão e o ar só os sente
Quem não tem coragem de sentir as coisas.

A folha desceu pelos ares;
O pássaro se atirou dum galho trêmulo.
A gota não se desprendeu da pétala...

A teia de aranha rorejada.
O arquejo dum carro. Longe...
O estado em que os sentidos
Começam a agigantar o ínfimo,
O tênue. A abelha de cobre...
         abelha/abelha

               Abelha.

Levanto-me.
A areia na meia, o sol na nuca.

Todo mundo está só na vida.
E nu. E isso não é nenhuma maldição,
Senão o que significa tornar-se adulto.


Igor Buys
29 de agosto de 2011


               


choveram rimas
afoguei-me em versos
águas profundas

(Cristina Desouza)

ALMA FRAGMENTÁRIA


             
Alma represada
se rompeu
em estilhaços.

E não pude reunir
os fragmentos.

Com intensidade atômica
foi breve espasmo.

Semeou
escuro & espanto.

Quem sabe
tudo se resolva.

Assim que a vida amanheça.


 Ricardo Mainieri

ESCRITORES SÃO MUITO ESQUISITOS


Não comentam as condições atmosféricas, se vai chover ou fazer sol. Não falam sobre problemas coronários, pulmonares ou digestivos. Pouco se importam com a vida da vizinha da prima em segundo grau da Tia Cotinha. Não comentam hábitos alimentares ou de vestuário de parentes e amigos. Detestam futebol e esportes em geral (há exceções). Votam na esquerda ou na extrema-esquerda (há exceções). Bebem. Fumam. Trepam. Gostam de ficar horas sozinhos para poderem escrever. São, por vezes, mal-humorados. Conversam com poucas pessoas, quase sempre outros escritores (em meu caso, também com ativistas políticos, budistas, umbandistas e artistas marciais, além das minhas plantas). Ficam profundamente entediados com o cotidiano. Enfim, somos insuportáveis. Se eu gostaria de ser diferente -- vestir terno, camisas de seda, trabalhar 14 horas por dia, votar no P$DB, frequentar danceterias e trocar ideias com a Tia Teresinha? Se um dia eu fizer alguma dessas coisas, por caridade, chamem um exorcista, ufólogo ou psiquiatra, porque eu fui possuído por um espírito do mal, abduzido por alienígenas ou enlouqueci. .

Claudio Daniel

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Há que se ver uma praia
onde as águas têm asas
e os barcos singram
em rastros de pura areia.

Alambique de pura magia
Ainda beberei Moçambique
Maré de nuvens e poesia

Evandro Souza Gomes
Viver o Instante ,
sentir a plenitude da vida
como flor momento.

Vestir de aniversário
a roupa nova do tempo.

Jiddu

SINTONIA




Duas da madrugada. Sono que é bom, nada.
Alguma coisa estranha me incomoda muito.
Um cheiro doce invade o quarto e chega junto
como se à pele se aderisse outra camada.

Me sentindo quase uma criatura alada,
fico leve, num transe hipnótico profundo,
como um zumbi, quase vivo, quase defunto,
assombrando a mim mesmo e a minha alma penada.

Mas foi no clima dessa noite mediúnica
que eu percebi uma oportunidade única:
-Ah, meu Deus, a que devo a honra da visita?
Justo eu que fui sempre pessoa esquisita.

Roubei uns trocadinhos da capelinha,
eu fiz malcriação, matei passarinhos,
menti, falseei, entre tantos outros pecadinhos,
que o Senhor deve ter grifado em Sua listinha.

Dos quatro cantos do meu quarto, soa a voz
que nunca ouvi mais rouca: “Meu poeta, escuta!
Pra Deus, nada adianta ser ou ter. Nem nós,
desvendamos desígnios de Sua batuta.

Anjos, como eu, sofrem, como tudo mais.
O livre-arbítrio não é flor que se cheire,
foi criado por Deus e fim. Mas ai daquele,
que em plena primavera não leu Seus sinais.”

Mais tímido que noivo virgem, argumento:
-Mas se demônios e anjos também pagam penas,
Deus criou este mundo como farsa apenas.
Somos todos uns burros? O que quer esse Jumento?

Resolveu pregar peças e se divertir
às nossas custas? Tem cabimento esse troço?
Caído, o anjo teve ganas de subir.
O problema não era só meu, e sim, nosso.

“Bem lembrado. Cristo mandou baixar a crista.
Porém Deus, todos sabem, vive nas alturas
e lá do alto não se lê as Escrituras,
ao pé da letra. Deus também é um artista.”

Irônico, escarneço: - Ah, sim, só faz arte.
E o anjo enfurecido: “Todos tem problemas.
mas choros, dores, não são os únicos temas
a serem resolvidos. Deus é uma parte!

Contudo, em toda parte está ainda inteiro.
No sofrimento ou alegria, dia e noite,
faz uso do Seu bálsamo ou do Seu açoite
e sem querer saber se é lobo ou carneiro.”

Retruco: - Então tanto faz o que fiz, né?
E o anjo perdendo a paciência comigo:
“Será que nada existe além do teu umbigo?
A mão que bate pode fazer cafuné!

Saiba, é teu pensamento inferno ou paraíso.
Em tua voz interior, Deus fala certo,
mas parece que está pregando no deserto.
É por isso que eu olho bem onde piso.”

Eu, um tanto confuso, ainda tento a última:
-Pelo que entendi a alma é como um rádio,
a gente sintoniza até a do diabo,
as estações são muitas, tipo escolha múltipla.

O anjo então sorriu-se todo: “ Agora sim,
falaremos de igual pra igual, seu animal!
Pense em Deus como uma extensão de ti em mim
e, por todos os séculos, nem bem nem mal!"

Foi, assim como veio, e eu fiquei só olhando...
asas de par em par, abrindo e fechando...
Foi tudo um sonho e só estou meio maluco
ou Deus é quem me espreme pra beber o suco?

antonio thadeu wojciechowski

...


um só criador para as criaturas
o mundo aqui embaixo
e deus fazendo graça nas alturas

antonio thadeu wojciechowski

CHUVA DE LÁGRIMAS




quando menino, eu chorava por qualquer coisa
e gostava da madrugada e de olhar pras estrelas
ficava pensando horas e horas
e a mãe se incomodava com essas estranhezas:

“vai dormir, thadeuzinho, amanhã tem aula”
e eu nada de pegar no sono
às vezes passava a noite acordado
pulando de sonho em sonho

eu só queria ser poeta e acabei sendo
hoje quando olho para as estrelas distantes
ainda leio os poemas que escrevi dentro delas
e já não choro mais como chorava antes

o que ficou lá atrás, agora, é sonho
bibelôs em uma prateleira
onde converso sozinho
e vou comigo pela noite estrelada da vida inteira

antonio thadeu wojciechowski


2018 O ANO QUE MAL COMEÇOU




O que aconteceu, feridento?
Está aí todo escangalhado,
estragado, danificado, destruído, partido.
Vem com essa que eu te arrebento,
perebento!
Pra tua informação a rã é um batráquio,
anfíbio, anuro.
Quando ela saltou, você caiu em si.
Juro, o seu comportamento foi, no mínimo, estapafúrdio,
esquisito, estranho, excêntrico, ilógico, disparatado.
Estranhamente, o padre desceu do supedâneo para rezar a missa. Ou devo dizer, da base, suporte, pedestal, escabelo, peanha?
O salto da rã foi concomitante ao descer do padre,
mas pode ter sido também simultâneo, sincrônico, coincidente, coexistente, entende?
Não vou recauchutar essa história só para agradar, muito menos
para reparar, corrigir, endireitar, reconstituir, consertar.
Já sei de antemão que as testemunhas tergiversaram.
Responderam a tudo de forma desonesta, tirando o cu da reta...
...evitando, contornando, ladeando, rodeando, inventando, adequando. Pense bem. Mude.
Por que você continua comprando essas bufarinhas?
Assim o dinheiro da corrupção vira bugiganga, cacareco, quinquilharia, insignificância...
A polícia chegou antes?
Sai pra lá, urucubaca! E leve junto a má sorte, o azar, o infortúnio, a ziquizira, o caiporismo do cacete!!
Eu só queria saber: como lutar contra a morte inexorável do Direito?
Juro com a mão sobre a Bíblia, sobravam-me sinônimos para a resposta inevitável, fatal, infalível, irremissível ao questionamento do juiz. Mesmo assim eu era sempre culpado.
Bem, no fundo, no fundo, éramos todos vítimas, a rã, o padre, eu, você e quem mais? Ou tudo isso foi só um poeta que passou por aqui fazendo bazófia com o coraçãozinho da gente?

Antonio Thadeu Wojciechowski

de quando o poeta morre


de quando o poeta morre
e cai um pedaço (que pedra fora)
(que carne fora) (que sangue)
que somos nós

de quando o poeta morre
e cai um pedaço de coração
e uma parede inteira de nossa única voz

de quando o poeta morre
e ficamos sozinhos
Ave, poeta das nações
Ave, escritor
que sua escrita
já faz parte de nosso ser
E, dessa forma, somos também
a morrer um tanto
a deixar cair pedaços de tantos Nós
Ave, Oz

-
Claudinei 'Urso' Vieira


visto azul visto rosa
amarelo vermelho preto
visto a roupa que eu quiser
ou nenhuma
tem cor mais linda que a pele
bege marrom ouro preta?
se você não tá contente
ora vá catar coquinho
lá na casa do caralho

Otto Leopoldo Winck

PALAVRAS DO CORAÇÃO DO MUNDO




“Seja teu sim, sim; teu não, não.”

(Jesus)

Antes do Deus, havia o homem; antes dele, o menino. E foi o menino que, ao sabor adocicado da inocência, desenhou pássaros e lhes deu asas. Foi o menino também que chorou quando, de tombo em tombo, aprendeu a caminhar sobre águas e a ter pesadelos com uma pesada e escura cruz em seu passo trôpego sobre as pedras.
- Atire a primeira pedra aquele que nunca pecou! Disse um dia o então homem, quando o mesmo menino já era apenas um hálito de hortelã perdido na memória do Deus que estava nascendo.
Havia nele o vento das profecias, havia nele amor e piedade por todas as criaturas, havia nele a dor e o perdão para a remissão dos pecados.
Dizem que, quando falava, os seres subiam às alturas e ganhavam contornos de anjo.
Dizem que, quando andava por aí, aleijados largavam suas muletas e iam junto com ele a passos largos.
Dizem que, quanto tocava alguém, cegos viam, surdos ouviam, mudos falavam, doentes se curavam; mas os que o negavam continuavam levando moléstias para casa e a plantar espinhos para um dia coroá-lo.
Dizem que a primeira lágrima na caminhada dos sete passos da paixão caiu e ninguém viu. A segunda só um menino que brincava ouviu falar. A terceira subiu e multiplicou-se em chuva. Então ele não chorou mais e seu coração abriu-se em sete portas que escancararam o céu aos homens.
Dizem que ele dizia: “Em verdade em verdade eu digo, eis o perdão, eis o símbolo, eis o Deus, eis a luz,
eis que o dia é hoje
e teus pais, teus irmãos, teus amigos, teus filhos, teus vizinhos precisam de teu amor.

Antonio Thadeu Wojciechowski

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


Mais um trecho do meu último romance:

“No fundo, o desamparo é a nossa maior herança. Nascemos sós, morreremos sós. Bastardos, trânsfugas, párias, não sabemos para onde vamos, não sabemos sequer por onde vamos. Impossível se fazer entender, tentar explicar, articular qualquer palavra coerente. Ninguém nos ouviria: nem entre os anjos, nem entre os homens. Aliás, não há em lugar algum alguém velando por nós, alguém zelando por nossos passos, pronto a nos socorrer em caso de queda ou pânico. Se ao sairmos de casa, alguém ainda nos acenava, não há a menor garantia de que, ao regressarmos um dia, ainda esteja lá nos esperando. O jeito é estender a mão e tocar os outros que, igualmente desamparados, igualmente extraviados, vagam ao nosso lado. E quem sabe, assim, de braços dados, tentar chegarmos juntos a algum lugar seguro.”

Otto Leopoldo Winck

Mais uma vez, o farol


Mais uma vez, o farol

Cair e partir em direção
Ao alto,

As montanhas reais

Escala-se um amor
Escreve-se bem

Pouco se dissocia

Eleva, nutre, colhe
O que plantou

Pois cortam as sequoias,
Presepais das profecias
Ancestrais da minha solidão
Também.

Antes que não floresçam,
Como não floririam jamais.

Entulham-se inconscientes
Coletivos.

Jogam-se dados viciados

De vícios chavões.

Ninguém empunhará a
Lanterna

Na escuridão.
ACM

Fraqueza.



Minha fraqueza é ver em olhos infantis, o inferno refletido das guerras. As guerras que expurgam os sonhos, que atemorizam, que inibem a doçura das palavras.
Nossas guerras cotidianas da falta de comida, onde ainda se brinca com argila
Em beiras de rio, e com sementes que não germinam, o meu nordeste.
Trava-me ainda a língua a imagem das crianças sujas, desnutridas, comendo da palma e na palma das mãos de mães aflitas, pouco mais que carinho a oferecer.
Nosso futuro comprometido, corrompido pelo que não se mostra na tevê e fica esquecido, no meio do jogo do poder. Enquanto faço poesias, crianças morrem, morrem em agonia na Republica Federativa do Brasil. As estatísticas, todos sabem, ninguém viu...
Ninguém viu trabalho escravo, exploração infantil, prostituídos meninas e meninos, nossas índias crescem no descaso, tornando-se pequena parte, escória manipulada por pequenos pedaços dessa terra, elas são moedas.
A imagem é negra como a negritude das carvoarias que noite e dia fumegam a miséria das nossas crianças brasileiras e nublam minhas certezas, sobre justiça e direitos.
A minha fraqueza é ainda acreditar em leis, que foram feitas para se burlar, nesse país em que vivemos e que não temos como advogar a causa do mais fraco. Omissos e impotentes diante dos dirigentes que chamam a isto de democracia.
As leis só existem para quem tem pão todos os dias e quem não tem dorme com a mesma fome que consome e me causa essa fraqueza.

Cristhina Rangel.

Delfos em fé




De mais a mais,
Sem paz ou cais,
Derrete a parafina
E elimina os reais,
Julga cronologicamente
Semântica, roteiro,
Enredo, personagens,
Rolando, ego abaixo
Insurge contra muros
Da ignorância de si mesmo
Não espero, não erro
Sou póstumo para os jornais
Seus clichês de menos
De meia vida
Transportam a ferida
De espelho em espelho
E o vermelho dos currais
A festa garrafal das
Entoadas corriqueiras
Cantilenas subservientes
Luzes do porvir filosófico
Aos sabor dos ciclos
Astrais.

Já muitas coisas menos
Interessam-me ao intelecto
Em fogo

No mar, tudo é navegar.
ACM

FANTASIA



.
a roupa da noite
já me cabe

visto
da sombra
camisa
e calça

meia lua
meu chapéu

duas nuvens
de sapato.

(Bento Calaça)


Estio




Derrete a calda,
Da palavra sem sal.
Subo com olhos
De fome,
Vou, só.

As abelhas extintas,
E as tintas do progresso
Elevo o mar

Semblante e litígio
Da forma,
Do que se sente,
De racional.

Flui,
Congela,
Sacia

Revelo a virtude,
A unção,
O cálice, julgo
Uno as pontas do universo
Para passar pela agulha
Do temporal.

Tuas palavras cruas,
Enojam tais paladares

E os rudes falares
Perpassam, inflados

Por lenta e qual

Inabilidade lexical.
ACM



terça-feira, 1 de janeiro de 2019

NICE SHOT




De encontro às ruínas
tudo é antiquado
tudo dessangra.

Parâmetros, escolhas
obtusas
e meus olhos tangentes
obsedados pelo percurso
da anaconda.

Me reclamam momentos
de terreno baldio
me faço amparada
por satélites

it takes a huge effort
aprender qualquer coisa
além de meu idioma

minha própria gramatura
paisagem em alarido.

Esboça cara de pavuna
não sabe retroceder
observa de esguelha
deturpa a mensagem

se consubstancia
se fotografa

comendo as folhas do verão
os fios da seda
a vida de pausas.

Aqui, eu perco
o fundo mais fundo
no ângulo perfeito.

RTD



Rio-Niterói, 1973

Os senhores me veem derrubando pistas
como se desmonta estrada
como se inventa ponte
emerjo de nada a nada
cresço com minha surdez.
Feito desaparecida
santa metálica
dos lábios de esterco
baía, vem me dizer
por caminhos de resvalo:
uma mulher ou uma cidade
se arrastam por enigmas.


RTD


Escrever. Ou vestir


Escrever. Ou vestir
O som da folhagem.
Cantar o corpo. O tempo
A lentos pássaros dançado.
Reter o mágico instrumento.
Grifo de fogo:
Tecido cru. É linguagem.
Sobre pele de deusa.
Ervas, as palavras.
Chamas
Sobre eras dilatadas.

Roberta Tostes Daniel



Dadaísmos




Você que é leve como chuva ácida; sulfura buracos no ozônio. Estufa um salto de asa-delta sem asa-delta: asas de chumbo. Rumo ao sol.

O sol quer o meu câncer. No fogo, carrossel de Apolo, inferno siberiano: arrepio que me causa a trinta e seis graus, terceiro milênio.

Polução devasta o planeta inundo. Roçados onde os seus desamparados. Peito, pentelho. Baba por fazer; bagunça no enredo.

Éclogas, ecologias. Dilúvio e carnaval. Mais de sete bilhões de palhaços no salão.

Chove no ecossistema das pernas. Chove sangue. Na calha onde sua chuva de enxames arrebenta a minha cara. Conto as gotas num buquê estridente.

Bebo o arroio dos olhos. Bebo tudo. Ébrio peito sanfoneiro, resfolega a lira suntuosa.

Uns minotauros machões. E abelhinhas transtornadas sobre o manjar dos deuses: as crianças. Faz dodói na pele-labirinto.

É um belo momento: eu me afogo na enchente e chove. Rio, de ainda morrer, Amor.
RTD

Sobrepele




Onde a vegetação se rasga
Para o sol, o sangue
O rastro da fuga

Verde,
Vermelha
Selva – me suga

Como a mais pura seiva:
Mãos na palavra
Nua.

- Roberta Tostes


L â m i n a s




Dardeja a chuva
Granizos do meu grito
Pastos, ruínas, bauxita
Antigas odisseias de menina
O vão metal resfria
Inerte na têmpera do sagrado
Morre o mar
Que choro em Minas
Fundo desejo da paisagem.
RTD

Notas de um diário que não escrevi:



Eu queria sentar perto daquele mendigo - redundante designá-lo sujo, enquanto escrevo as linhas deste meu diário invisível. Sentaria perto de ti, mendigo, não fosse o que deixas exalar das tuas entranhas e dos teus farrapos. O odor é de fracasso.// Todo abandono é um mendigo. Mendigo, portanto, é quem deixei boiando em minha cama de afeto-puro-incolor. Como quando se abandona uma criança que não se teve tempo de amar.// Presto honra com fidelidade de cão vadio; de quando em vez escrevo a história do mendigo, e a minha: penso nas versões de cada uma delas.// Ele dorme a poucos metros de mim. Seus pés já não são pés, são patas. Aquele casco um dia foi tão macio quanto os pés da menina linda que brinca no parque. Tudo ou quase tem um mesmo início.// Isso me faz entender que ninguém é mais puta na santidade que Santa Maria de Deus, que sempre se deu à humanidade. Nunca enxerguei diferença na água benta e no esperma, no fato de matar ou ser morto, amar um homem ou uma mulher.// Escrevi e não me contive! Gargalhei tão alto que a criança no colo daquela linda mãe negra chorou. Depois da noite de ontem, só poderia vir aqui me redimir.// Alguém ouve Rapsódia Húngara num volume ensurdecedor. Certamente algum vizinho que sobreviveu ou vai se matar. "Ninguém ouve Rapsódia se não estiver em seu momento definitivo", penso eu. De repente eu entendo porque certas mães atiram filhos contra os carros.// Comprei uma água de coco e vim assistir as meninas em suas cordas de pular. O sol emplacou e os óculos que eu trouxe finalmente ganham serventia de óculos. Ganham vida na minha cara descarada. De onde estou, já não vejo o mendigo, diviso o homem que ele não foi.// São nove e meia da manhã. A menina mais linda do mundo chuta uma bola muito maior que ela. Por um momento, o mundo todo é dela.// A menina mais linda do mundo, muito gananciosa, quer segurar o mundo com as mãos. Mas a bola é tão grande, que a menina cai. Bem feito, aprendiz de ditadora! Ela já sabe agora que nada é pra sempre, muito menos um desejo, uma pretensão. Caprichos de meninas vergam e o mundo escapa de pequenas mãos.// Eis a linha derradeira deste diário, vez última em que eu, a menina e o mendigo, habitamos um mesmo espaço.

Roberta Tostes Daniel
in Sede em Frente ao Mar