quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020


quando eu tiver setenta anos

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.

Paulo Leminski

DE OLHOS FECHADOS




Do nada, às vezes,
De lugar nenhum

Surgem luzes invisíveis
A olho nu.

Escuro, ou vozes
Que me chamam

Espelhos se partem — um enxame
De vagalumes.

Nenhum vestígio
De que estivessem aqui.

O olhar uma lâmpada
Apagada —

Uma lua cujo rastro
Acende a lesma que a devora.

Em chamas, inchada,
Ela agora derrama

Seu sangue
Sobre estilhaços brilhantes.

De um outro céu.
Sorrisos, estranhas iscas do além.

Irreconhecíveis.

***
Em "Solarium" (Editora Iluminuras, 1994)
Rodrigo Garcia Lopes


Tenho andado contra o Tempo
que me tem aberto sulcos
nas faces gastas
e produzido rictos, não sorrisos.

Um dia pensei ser imortal.
Imortal é somente o anelo de sê-lo
enquanto se é.

Hoje, sentado à beira do grande Rio do Esquecimento,
deponho minha resistência
com flores roxas e versos velhos.

Tempo: vamos andar agora juntos
no leito imenso deste rio que me ignora.

(No horizonte o sol se põe sobre o Ocidente
que nasceu em Homero
e morreu em alguma viela de Tijuana.)

Prometo não chorar
para não aumentar ainda mais
o caudal de tuas águas mortas, Tempo.

Tenho andado contra o Tempo.
Agora, com o Tempo, sou o Tempo
de tempo nenhum.

Otto Leopoldo Winck

Tacitamente




Para tais finais ou
Seres reais,
Serem, mais.
Suportariam-se ou se
Entrelaçariam,
Interpolariam,
Perdurariam na mente
Como tais.

Afinal o que importa,
O que não é igual.

Sou a água pura que
Não permeará o esterco

Naqueles carnavais.
ACM


Por que perturbamos
o fluxo dos dias
com nossas retinas
cheias de cobiça?
Melhor descansar
e esperar que o outono
leve enfim as folhas
do verão fanado
e nos acostume
ao sono sem sonhos
que em breve seremos.

Otto Leopoldo Winck


canção d’aluada



para m.

podou-lhe a perna um acidente
se em torno a malta ri, indecente,
quando escorre, lesma esquecida,
de par em par em par doente,
– ignora todo o malquerente,
fecha as pálpebras dos ouvidos.

o sangue ou o bosque de abetos
realçam pungentes insetos
que dançam nos globos dos olhos
e na pelanca encanecida
queixam-se seus anos de vida
feito um bater d´água em abrolhos.

deus está-lhe sempre tão perto
e se anoitece e chove fetos,
como se fora o último amigo
(e ele soubera dos ocasos
a urgência rubra dos cavalos),
ela lhe faz um só pedido:

"dai-me um desses, pai, pr´eu velar,
berçar ao vento, acalentar!
súbito me farei lactante,
de um leite azul e muito grosso;
em meu seio como num poço,
receberá beijos na fronte!"

deus, para ela, não é silêncio:
abelhas com patas de incenso,
ou as gaivotas de lençol
a tinta verde dos fadários
na carne viva dos diários
ao sabor ferroso do haldol.

e à vida sentida sem margens,
deriva, stultífera navis,
arrebenta a quilha da testa;
degradando-se em tons de maio,
céu e mar se beijam no raio,
– e a barca vai a pique, em festa.

no idioma dos fogos sujos,
líquen da voz de caramujos,
língua de carvão, frágua e ferro,
fala com dentes, pêlos, unhas,
com a morte por testemunha:
há mil gritos em cada berro.

claudica com severo olhar
se alguém lhe oferece um manjar
– entre anjo, mendiga e sibila,
camélia, garçonete e gueixa –,
mordiscando a carne da ameixa,
preclara, antevê grande dia;

se lhe negam, porém, já viu:
nos cílios acende o pavio;
na pança encruada dos sapos,
transtorna pra fora do leito
a manta de banha e despeito,
e desdobra a língua entre cactos:

"hei, bruxarada, bruxarada,
quando faz rir a madrugada,
envido de cima do outeiro:
vou defecar em seus sapatos,
envenenar seus cães e gatos,
vou tacar fogo em seus cabelos!"

porém a ira logo termina,
ela é novamente a menina;
retira do caule um jasmim,
florescido entre as muitas farpas
do arame e a galharia e as sarças,
– o vôo ambíguo do rubim.

pequena, frágil, recolhida,
bem quando mais lhe dói a vida,
claustra o brilho opaco dum monge.
respira, parte a flor, se indaga
(o corpo nu no chão – jogada):
"como vim acabar tão longe?"

sonha a antiga vida das ruas.
vive, de resto, abandonada:
sem homem, sem filho; só a lua
que a leve de volta pra casa.
Rodrigo Madeira

SATORI




não sei
se foi na volta
ou foi na ida
do mercado
só sei que foi na rua

não sei
se foi no baço
ou foi na alma
só sei que foi aguda

aquela dor
com a iluminação que trouxe:

não interessa se estamos
ou não estamos
de passagem

nós é que somos a passagem
onde as coisas que ficam
deixam suas marcas
nas coisas que passam

e dessa mensagem
– anote aí –
eu, um modesto poeta,
sou o último profeta

Otto Leopoldo Winck


Uns lutam com pedras.
Outros, com palavras.
Há ainda aqueles que lutam com luto:
uma espécie de dor que não grita,
de lágrima que não rola --
mas que lacera, dentro,
feito pedra na vesícula
ou palavra que devora.

Otto Leopoldo Winck

O sol no deserto



Depois de muita luz,
Depois de muito pus,
Depois da tarde,

Depois do alarde,
E, mais ainda, depois.

Surge, insurge, ressurge e vai
Ao revés da história
E no viés da lei.

Surjo no horizonte do amor,

Sou letra, signo, mensagem
Sou passagem de som,
Sou mares sem tom,
Sou ou não sou.

O tempo se adiciona à aura
"Mil maneiras de preparar Neston"

No pomar de frutas do conhecimento,
Na angústia de sofrimento
Da fome
Todas as frutas eram fruto proibido

Proibido

Pelos patrões.
ACM

L’AMOR CHE MOVE IL SOLE E L’ALTRE STELLE




Teus olhos me iniciaram no assombro de viver:
fiquei perplexo quando descobri que não havia limites para o encantamento.

Ao caminhar pela praia,
debaixo da última lua da história,
eu compreendi que o beijo
é o pacto que une céus & terra & oceanos & povos & raças & línguas.

Teus pés me indicaram um novo caminho
enquanto teus dedos apontavam as estrelas do céu e os grãos de areia da praia do mar.

Podemos contá-las?
Fundaremos uma nova civilização?
Morreremos na próxima guerra?

As perguntas são tantas
que a única resposta é o espanto.

Mas o momento supremo
foi quando dois seios me revelaram
que todos os poemas do mundo
cabem na palma de uma mão.

Otto Leopoldo Winck

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

 Vou mentir para quem eu gosto
como vida de desenganos
A vida que levo leva me
lava de fogo liquido
liquefaz me na sombra a
fumaça
A você sempre direi a verdade
como a lâmina que espera me
na curva dessa viela vil
no meu anoitecer.


Wilson Roberto Nogueira
contar problemas para um copo de vodka
transforma os problemas em névoa
tóxico espelho da alma.

Wilson Roberto Nogueira