quinta-feira, 21 de maio de 2020


Foi quando eu abri a janela
e entendi que a noite acabara.
Da madrugada só restara
a prata velha do orvalho
no mato antigo da estrada.
E um vulto escuro contra o dia
que, incontestável, surgia.
Era o passado? Era o futuro?
Não sei. Só sei que quanto mais
o fitava, mais o perdia.

Otto Leopoldo Winck

Senhor


by Jamil Snege

Hoje amanheci insatisfeito.
O pão estava amargo
e até o jornal que leio
todos os dias me pareceu de
uma insipidez atroz.
De repente, Senhor, lembrei-me
dos que não lêem jornais -
mas os usam para embrulhar
restos de pão que os paladares
amargos deixam no prato
após uma noite insatisfeita.
Como deve ser delicioso
esse pão, Senhor,
depois que tu o adoças com
tua própria boca!
Às vezes lamento minha
má sorte - e o que me espera
em seguida é um dia luminoso.
Às vezes bendigo minha
fortuna - e logo após um
furacão desaba sobre minha cabeça.
Brincas comigo, Senhor?
Ou será que devo lamentar
a minha fortuna e bendizer
a má sorte como se o avesso
e o direito fossem iguais
para ti?
Quando eu era pequeno,
topava contigo a cada instante.
Adolescente, passei
a encontrar-te cada vez menos.
Adulto, duvidei que
algum dia tivesse visto o
brilho de tua face e
te busquei incessantemente
por todos os caminhos.
Não te encontrei,
Senhor, nem poderia.
O piolho que segue na juba
do leão jamais terá
consciência de que possui um
leão inteiro.
Tenho procurado por
todos os meios me destacar
dos demais.
É minha a intervenção mais
inteligente, o lance
intelectual mais audaz.
Procuro as luzes do palco
com o mesmo fervor
com que o peregrino procura
a tua face.
Que tolice, Senhor.
Dentro de alguns anos, numa
tumba escura, que
artifícios usarei para
chamar a atenção sobre o meu
pobre crânio descarnado?
Para onde vai o canto,
depois que os
lábios se fecham?
Para onde vai a prece,
depois que o coração silencia?
E os rostos que amamos
para onde vão, senhor,
depois que nossas
pupilas se transformam
em gotas de lama?
Ontem vi uma andorinha
que devia ter uns
cinco milhões de anos.
Será que eu também
sobreviverei
ao que restar de mim?
Quando menino, nascido
serra acima, o que
mais eu desejava era o mar.
Eu queria apenas o mar
a mais nada - para nele
desfraldar meus
sonhos marinheiros.
Fui crescendo e ampliando
meus desejos.
Uma casa junto ao mar,
um barco a motor, festas,
empregados, piscina.
Obtive tudo isso, Senhor.
Mas aí então o mar dentro de
mim já havia secado
Não sou melhor que
uma pedra, uma folha,
a madeira de uma ponte,
o pó das estradas.
Sou apenas mais frágil,
Senhor, pisa-me com carinho.
Na minha infância, havia
um jogo que consistia
em se colocar um porquinho-da-índia
no interior de um círculo
formado por
casinholas numeradas.
Vencia aquele cuja
aposta correspondesse ao
número do esconderijo
escolhido pelo animalzinho.
Nunca mais vi esse jogo,
Senhor, mas eu sei que
alguns religiosos continuam
a praticá-lo contigo.
Cercam-te com suas
igrejas almiscaradas -
e correm a vendar apostas
aos seus fiéis.
A última tentativa
de me entrevistar contigo
foi um grande fracasso.
Acendi incensos, decorei com flores
- e nada de ti, Senhor.
Amanheci frustrado e
fatigado como se dançasse
a noite inteira nos infernos.
Resolvi então fazer
tudo ao contrário: dancei,
me embriaguei, libertei
fantasmas, invoquei
demônios.
Tive um sono embalado
por anjos em doces paragens
celestiais.
És sempre assim, Senhor?
Imprevisível? Desconcertante?
O velho índio foi encontrado
vagando pela floresta,
aparentemente perdido.
Perguntaram-lhe. Respondeu
cheio de brios: "Perdi
foi minha casa; não consigo
encontrá-la".
Quanta lição, Senhor.
O homem pode perder sua casa,
sua rua, os rostos que
ama - sem jamais se perder
de si mesmo.
Um dia tu serás demonstrado
cientificamente,
como o eletromagnetismo e
a gravitação universal.
Professores te reproduzirão
em laboratório,
crianças enfeitarão com tua
fórmula suas mochilas
e os grafiteiros rabiscarão
teu princípio pelos muros
da cidade.
Nesse dia, Senhor, alguém
estará restabelecendo
teu mistério... à luz
de uma vela, numa galáxia
bem distante.
Ontem não fui solicitado
como gostaria de ser.
Ninguém me pediu conselhos,
ninguém fez caso
de minhas opiniões -
até pareceu que o mundo
e as pessoas poderiam viver
bem melhor sem mim.
Sensação terrível, Senhor.
E pensar que já passei
dias e meses da minha vida
infligindo idêntico
tratamento a ti...
Não ouças qualquer
juízo que eu faça sobre
meu semelhante.
Amordaça-me.
Corta minha língua.
A pessoa que acusei
de furtar minhas luvas
não tinha mãos.
Ontem vi um jovem preso
a uma cadeira de rodas.
Mãos, pernas, tronco -
imobilizados numa rigidez
de pedra.
De vivo apenas seu olhar -
atento, vigilante,
como se contemplasse tudo
das alturas.
Que expressão, Senhor,
que força poderosa...
Tua puseste todos os seus
músculos ali.
Tenho pensado ultimamente
em comprar um carro novo.
Trabalho com afinco,
faço tudo o que devo fazer,
mas nunca me sobra dinheiro.
Outro dia, fazendo
minhas contas, cheguei a
botar a culpa em ti: "Deus
não tem me ajudado".
Que vergonha, Senhor.
Tantos homens trabalharam
com afinco a vida toda,
fizeram tudo
o que podiam fazer,
e jamais te pediram sequer
a passagem do ônibus...
Dois meninos, magrinhos,
irmãos, aproximam-se
do balcão de pães.
Escolhem um bem pequeno -
o que pode comprar a moeda
que um deles guarda no
côncavo da mão.
Saem os dois com seu
pãozinho - uma fome tão
antiga, entre acrílicos
e colesteróis.
Eu gostaria de ajudar
todas as crianças pobres,
carentes, desnutridas.
Gostaria, Senhor...
mas tenho a alma fatigada
de proteínas.
Ontem, por uma fraqueza
de caráter, resolvi
separar as pessoas de meu
convívio em dois blocos distintos
- os bons e os maus.
Que terrível, Senhor.
Depois de muito ajuizar,
os bons me fitavam com
expressões demoníacas
enquanto os maus, todos,
me exibiam a tua face.
Um homem mata outro e
tu o consentes.
O perverso agride o inocente
e tu não o fulminas.
O poderoso humilha o fraco
e tu aumentas-lhe o poder.
Que Deus és tu,
Senhor, que tudo podes
e tudo permites?
Que deus extermina órfãos
e ilumina a face dos
tiranos com os carmins
da longevidade?
Não respondas, Senhor,
não digas nada.
É esse mistério que me atrai
irremediavelmente a ti.
Toma a máquina do meu
corpo e nela
transporta socorro para
os teus aflitos.
É de pouca serventia,
Sei - o coração me arde,
meus músculos estão
fracos - mas podes
usá-la à exaustão.
E quando não mais prestar,
Senhor, escolhe uma tíbia
e faze uma flauta.
Hoje sairei à caça de lucros,
exatamente como o faço
todos os dias.
Tentarei ser o mais astuto,
o mais sagaz, e a terra
tremerá sob meus pés.
No entanto, Senhor, vai
comigo um menino magrinho,
olhos distraídos, que
não consegue entender por
que meus interesses
são mais importantes que
as nuvens e as borboletas.
Conserva-o assim, Senhor.
Mesmo que ele me atrapalhe,
mesmo que
me obrigue a ceder
no momento em
que preciso ser duro e inflexível,
conserva-o comigo.
E se um de nós não voltar,
Senhor, que seja eu - não ele.
Posso viver bem melhor
sem mim.
Já inspecionei a proa,
amarrei a carga,
desatei a vela.
O vento sopra forte e
enfuna meu coração de alegria.
Agora é contigo, Senhor.
Toma o leme e risca
o rumo do meu barco - não
penses que irei por
este mar sozinho.




[chovia naquela noite quase na esquina
eu caminhando só o aperto na garganta
um filme classe bê dos anos cinqüenta
a rua asfaltada e de iluminação fraca
o aperto na garganta eu caminhando só]


 © Sérgio Rubens Sossélla

INSCRITURAS



Inscrevo estrelas
na córnea dos teus olhos
insones. Carruagens
de fogo nos desnudam.
A vida ora é azul
como brisa,
ora escura,
como blues.
Se corto meu pulso
o que escorre é a nostalgia
de uma era em que tudo era crível.
Todas as estradas do mundo
são insuficientes
para o anelo de meus pés descalços.
Acorda, olha lá fora:
é dia mas uma lua de sangue,
enorme,
derrama seu mênstruo
sobre a cidade.
Inscrevo cometas
na sola dos teus pés cansados.
Depois os apago
com o sal de minhas lágrimas.
A vida é qualquer coisa assim
entre um conto
e um assombro.
Otto Leopoldo Winck

PERSISTÊNCIA



A minha voz
– folha seca, passarinho –,
voando na voragem vã do vento,
quer repouso,
quer silêncio.
A minha voz quer ser pedra
(no meio de todos os caminhos),
quer ser bronze, raiz, altar, cimento,
mesmo sendo tolice,
mesmo sabendo que será pó do mesmo jeito.
É por isso que ela,
cansada no ar,
no vento
e no céu,
cai
de
boca
e
sangra
– na superfície branca do papel.
Otto Leopoldo Winck
(Outro poema dos meus 18 anos, do livro "Flor de barro", encontrável só nos sebos.)

A noite dos vivos



 (Bárbara Lia)

O homem sem sapatos trajando bermuda bege sobe na lateral do chafariz e conversa com o cavalo. Espero o amigo, anoitece. A lua crescente; a vida minguante. O homem diz ao cavalo as coisas do dia, seu dorso negro acaricia e se afasta para dizer em tom de brincadeira a frase tão verdadeira:
- Mas, você é feio, hein?
A água não jorra, neste fim de tarde, do símbolo fálico do chafariz do Largo da Ordem.
Um cavalo que baba (goza?)... O que secou? O sêmen ou a lágrima? Muito estranho esse cara que fala com o mármore com intimidade de amigo. A água parada, a vida parada, o homem descalço a conversar com as pedras e eu a esperar o amigo...
Esse espaço de pedras é por onde passam os vivos. Réstias de frases cintilam em um espaço por onde caminhei hoje e ecoam em mim como notas de um piano antigo...
- Aquele professor de Geopolítica é genial...
- Eu não sei desenhar na pedra...
- Então... O que teu pai disse?...
Sair com uma frase incompleta de cada colisão com pessoas dialogando no caminho, um conto na cabeça, uma dor no pé de pisar pedras tortas. Depois, sentar no banco para ouvir o diálogo (monólogo?) do homem livre. Esperando o amigo que disse um dia:
- Cansei de vomitar vinho Campo Largo...
Pedras raras ainda guardam vômitos de meninos como se eles vomitassem o sangue dos parasitas, dos falsos profetas, dos inquisidores, dos covardes...
O homem se despede e algo se move, como se o cavalo voltasse sua horrenda face (ele é mesmo feio) para se despedir do amigo. O único que se enternece e lhe diz boa noite, mesmo que depois diga:
- Como você é feio!
O mundo se parte ao meio e eu fico com o pedaço de mundo onde tem o Relógio das Flores (memória de um sonho como iluminura medieval), com as pedras lavadas do bom e velho vinho Campo Largo e o lampião antigo que acende para ajudar o pálido crescente - foice fosca do apocalipse - a iluminar a noite dos vivos.

Paraísos de Pedra (Editora Penalux) - 2013. Páginas 21/23
Conto publicado no Jornal Relevo


ESACORDE



Acordo em total desacordo
comigo, de acordo
com o ricto sutil no espelho
e o desacorde dos dias.
– Bom dia – saúdo o vizinho,
sabendo que o dia é avaro
e o bem é restrito.
Na valise que arrasto nas ruas
há um deságio de sonhos
e esperanças vencidas.
Acordo em total desacordo
comigo. Mas de acordo
com todos. – Bom dia – responde
o imbecil do vizinho.
Otto Leopoldo Winck

Passionata



o amor foi feito para
a imperfeição, para o silêncio
entojado de som e fúria
e gentilezas.
o amor foi feito para errar,
dar com os burros n´água,
perder a paz
e odiar de um ódio patético
e gago.
o amor é assim: uma bomba
de delicadeza e desejo
que arrebenta nossas manias,
nossas veias mais grossas,
nossos relógios e bibelôs,
nossas fotografias antigas,
estudos, trabalho,
o passatempo mesquinho,
a conversa fiada e o futebol
(na hora do gol,
você pensa nela e olha além,
através do alambrado, buscando
a improbabilidade
do jasmim).
as vacas, em sua mansuetude,
não amam.
mas os homens...
“um grave acontecimento
na vida de um sujeito ordinário
naquela tarde como qualquer outra.”
o amor nos emburrece,
nos embrutece (cavalos doentes,
anjos idiotas),
como se não tivéssemos nunca
amado
e desamado, amado
e desamado.
o amor remoça
e envelhece dramaticamente.
a mulher pode dormir virgem
e acordar na menopausa.
o homem pode acordar
analfabeto e se deitar um poeta,
esbofeteado por asas.
no meio do sono,
eqüidistância perfeita
entre sonho e realidade,
o homem, a mulher
trazem abaixo
com uma serra de sândalo
a árvore genealógica.
e há quem defeque estrelas,
estupidificado de infinito.
e há quem não consiga,
um trapezista interior,
levantar o garfo até a boca
ou amarrar os cadarços.
quase tudo o que se viveu,
todas as lições e sobrevirtudes
esfarrapadas, como se amadurecer
fosse a antevéspera do podre
e da semente.
o amor não se cura.
fica incubado
esperando a primavera,
a próxima (sempre prima)
MENTIRA
ah como eu minto
pra você pra mim, meu amor!
o amor
o amor,
a desaprendizagem.
o amor
sem o qual a vida
seria uma verdade (como a morte).

 © Rodrigo Madeira

segunda-feira, 18 de maio de 2020

De Ricardo Reis, um dos poetas da minha vida, uma de suas odes exuberantes: ODE de RICARDO REIS* Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam. (* Ricardo Reis é um dos tantos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa.)




Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(* Ricardo Reis/ Fernando Pessoa.)
               

A Pedra





A pedra?
No meio do caminho?
Eu queria mesmo descansar
Do que?
De você, de Mim, de tudo
Da guerra não fujo
Mas as batalhas sou “Eu” quem escolho
Pois mentiras, prefiro as minhas
Portanto a pedra tem o significado que “Eu” quiser
E as minhas pedras não estão nos sapatos
Não estão na funda
Tampouco lançadas à minha cabeça
Estão debaixo da minha “Bunda”
Pois pra Mim, as pedras são pra se sentar

Gutemberg de Moura



A luta se desenha quando apenas
Percebo o que tentara e não consigo
Apenas vislumbrando este perigo
Que tanto noutro engano me condenas,

E sei das noites claras e serenas
Buscando tão somente algum abrigo
E tanto que eu pudera e não prossigo
Cansado destas lutas rudes, plenas.

Meu mundo sem saber de outro horizonte
Ainda que decerto em paz desponte
A lua em claridade mais audaz,

Meu tempo se anuncia no vazio
E quando o próprio tempo eu desafio,
Percebo o quanto a sorte atroz me traz.

Marcos Loures 


A luta se desenha quando apenas
Percebo o que tentara e não consigo
Apenas vislumbrando este perigo
Que tanto noutro engano me condenas,

E sei das noites claras e serenas
Buscando tão somente algum abrigo
E tanto que eu pudera e não prossigo
Cansado destas lutas rudes, plenas.

Meu mundo sem saber de outro horizonte
Ainda que decerto em paz desponte
A lua em claridade mais audaz,

Meu tempo se anuncia no vazio
E quando o próprio tempo eu desafio,
Percebo o quanto a sorte atroz me traz.


Marcos Loures 

Galope






Pra galopar no azul do meu cavalo alado,
encilho o verbo, busco as trilhas dos sonetos
e troco as ferraduras do tempo passado,
pois do passado eu quero apenas esqueletos.

Arreio a sela, aperto a cilha nos quartetos,
confiro a tralha, monto o baio nas esporas
e solto o tempo e as rédeas dos meus desafetos,
pois desafeto ao vento eu corto em poucas horas.

Cavalgo a liberdade e estradas sem porteiras,
levando no embornal os versos de outras beiras
e uma cabaça co’água fresca da nascente.

Descanso os pés no estribo e vôo nas palavras
e, quando o som da rima espanta a passarada,
solto o cabresto e o verso alegre segue em frente.


© Nathan de Castro

CASA DE PASSAGEM




Eu conheço uma estalagem,
tipo casa de passagem,
numa rua arborizada,
num bairro sossegado
no limite da cidade
e quem busca seu abrigo
não precisa mais ter pressa
pois a parte que lhe cabe
na colheita desta vida
ninguém mais vai lhe tirar.

Eu conheço uma pousada,
casa branca, assobradada,
de jardins sempre floridos,
portão escancarado,
janelas e portas
permanentemente abertas,
para que na luz cheia
os de dentro possam partir
e os de fora se achegar.
 


NALDOVELHO

Desculpa-me:


Desculpa-me:
A vida está fora do centro.

Deixe-me um recado que chegou
e voltarei na semana quem vem.

Desculpe-me:
O infinito não é apenas tudo que não tem fim, mas o que sempre está lá.

Preciso do descolamento,
preciso ir até lá.


Ivo Xavier          

A Nudez da Vida




Há névoas em meus olhos.
Névoas que me concedem a Graça da Desilusão.
Névoas que me honram com a visão da Vida Nua.
Despida, somente a nudez.
Desvelando sua Natureza dinâmica.
Às vezes mostra-se dançando.
Em movimentos.
Frenéticos...alucinados...agressivos...descompassados...
...Ira...raiva...ódio...ignorância...
...Desespero... depressão...repugnância...
Cicatrizes a mostra, dores sem Véu.
Eis a Vida, seu lado furioso... teimoso... arrogante... irascível...
Mas ainda assim é Vida.
Por vezes Ela quer dançar ritmado.
Seus movimentos são serpenteios...
...Movimentos lascivos ... libidinosos... sedutores...
...Excitação... amor...paixão...cobiça...
...Flagelo...martírio...carícia...
Curvas e reentrâncias a mostra.
Prazeres e necessidades sem Véu.
Eis a vida em seu lado enganador.
Meigo e prenhe de promessas.
Mas ainda assim é Vida.

Gutemberg de Moura





"Às vezes eu penso que a gente pode ter num momento, numa fração de segundo, numa fração de fração de segundo, a compreensão do universo. É um poente, uma brisa, um cheiro que traz de volta a infância, o sorriso da garota que senta ao seu lado. De repente, a gente compreende tudo. Coisas aparentemente sem valor enchem-se de sentido. Outras, que pareciam centrais, revelam-se vazias. Mas aí aquele instante passa. Na fração de segundo
seguinte a ignorância retorna, invencível. Nossa estrutura é incapaz de reter a verdade."

Otto Leopold Winck.  Jaboc



isso ser poesia
não me espanta
o que me estupefata
é o fato descabido
de isso nunca ter sido
lido visto ouvido
ou sequer realizado
e ainda assim
o que quiçá
caracterizaria
um paradoxo
é e canta



Paulo de Toledo

O amor antigo




O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

De Carlos Drummond de Andrade

A Palavra




A palavra consome,
some a palavra.
A palavra suscita,
excita a palavra.
A palavra insiste,
triste a palavra.
A palavra enaltece,
esclarece a palavra.
A palavra retorna,
entorna a palavra.
A palavra chama,
ilumina a palavra.
A palavra convida,
dá vida a palavra.
A palavra mede,
é sua a medida
da palavra!

A palavra repousa,
pousa a palavra.
A palavra desperta,
esperta a palavra.
A palavra cita,
fita a palavra.
A palavra aconchega,
beija a palavra.
A palavra cura,
pura a palavra.
A palavra deleita,
deita a palavra.
A palavra serve,
escreve a palavra.
A palavra apruma,
ruma a palavra.
A palavra é dada,
você com a palavra!

Paulo Henrique Frias

O FIM DE TUDO



 O fim de tudo
é como
um livro lido:
depois da trama,
vem sempre o fecho.
O fim de tudo
é como
um palco mudo:
depois do drama,
cai sempre o pano.
E eu, aqui na cama,
ou no teatro,
não mais me engano:
no fim, o sonho
é melhor que o feito
e o boato maior
que o fato.
Não me iludo:
depois de tudo,
vem sempre o nada.
(E você,
aí na rua,
não tem mais Ítaca
para voltar.)
Otto Leopoldo Winck




"- Veja a Virgínia, por exemplo: novinha, gostosa, delicada. Pode se dar ao luxo de efusões líricas. Eu e você não, Minhoca. Ou fazemos uma literatura cerebral, para crítico poliglota decodificar, ou uma literatura recheada de esperma e porrada, o que dá na mesma, não dá? O ser humano macho, branco, adulto e ocidental é só isso: cérebro e colhões. Elucubrar e foder, é somente isso o que ele sabe. Não tem coração, porque o amor é foda, Minhoca, o amor é foda. E não há nisso nenhum trocadilho."

Otto leopold Winck

Jaboc', capítulo XXIII

Consumo, logo existo




Meus olhos passeiam
pelas prateleiras
do supermercado.

Nenhuma paisagem
acessível ou nova.

Desfilam produtos
meros substitutos
de uma carência que só cresce.

Confortavelmente
em meio a efeitos & luzes.
o consumo é climatizado.

O acidente de trabalho
o salário aviltado
o desgaste da natureza
ficaram fora de foco.

Na mente
a música natalina
e a esperança de amor & paz...
Ricardo Mainieri


        
solto a lua
só na noite outonal
cai prata do céu


Cristina Desouza   

A VIDA NÃO CABE NO POEMA



A vida não cabe no poema.
A vida é conta, desencontro, correria.
O poema, ora,
o poema são palavras no papel.
É verdade que palavras e papel
também são vida, ou melhor, fazem parte do que chamamos
vida, como pão, boleto, escola e menino de rua.
Que seria da escola sem o papel?
O boleto vem impresso aonde?
E o menino vai catar o quê para comprar o pão?
(Pão que, aliás, se compra com papel-moeda.)
Isso sem falar das palavras.
Com elas
posso pedir a conta
do bar
ou do lugar aonde trabalho.
Com elas
posso dizer te amo,
escrever teu nome,
ou te xingar filho-da-puta.
Mas apesar de tudo isso
– ou por causa exatamente disso –
a vida,
ah, a vida,
não cabe no poema.
A vida raramente rima,
quase nunca tem metro,
e amiúde desborda de qualquer papel.
O poema,
ao contrário,
é muito pequeno,
muito limitado é o poema,
ainda que epopeia.
Mas é com ele,
o poema
– este pobre artefato de palavras – ,
que eu intento reter a vida
ou
o que me resta dela depois que eu a perco.
Otto Leopoldo Winck

se tudo que me penso




a minha dor (pensara
eu ser querela rara
do âmago) nunca passa,
é mesmo uma devassa:

quer retirar de mim
mais do que eu sou! sim,
além do que eu sou, sinto
entrar no labirinto

de tudo que me penso.
outro vil contra-senso
ou nova fantasia

pra alegria que eu via
haver na vida? aquela
dor era plena e bela!


Adriano Nunes

De agora em diante
não vale só o verso.
Vale o reverso, o remorso, o remendo.
Vale o sorriso e o siso. Mas vale também
o choro, o corte, o sangue no branco do olho.
Sim, ainda valem as flores, e muito mais os amores.
Mas o que conta agora são outras cores:
o céu sem estrelas, o sol ardendo nos olhos
e um travo na boca.
Sim, eu sei, vale o verso, a lágrima, a água límpida do canto
mas vale mais a faca
nos dentes, o aperto no peito. Vale o gesto do abraço
mas vale também o braço erguido do adeus.
Vale o beijo e vale o escarro. O pejo, o escárnio, o asco.
Vale a mão que planta no chão, a mão que recolhe
o fruto maduro, mas vale também o punho fechado
contra o céu de chumbo.
São tempos diversos, estes.
Otto Leopoldo Winck


Agora que a morte
Parece mais real
Você estranha:
Ela é a mesma
Invisível que busca
O último ar
Você passa horas
Do dia perscrutando
Esta sensação:
A de que a morte
Parece mais real
Porque mais veloz
Você escreve
Pelo mesmo motivo
Que sempre escreveu:
Não crê em posteridade
Escreve porque vive
Enquanto vive.
.
Adriane Garcia



"Que fim levaram todas as flores" também é um roteiro lírico de uma Curitiba perdida, só parcialmente recuperável pela memória ou pela literatura: bares, boates e prostíbulos da época (vocês não imaginam a pesquisa que foi preciso!)  desfilam por suas páginas:
"Minha rotina: acordava, geralmente sobressaltado, com o despertador estridente, às sete horas. Me arrastava até a Barão do Rio Branco, ali perto, e, cabeceando de sono, varava a manhã – as aulas do Lessa e os seios de Vera eram, agora, as únicas coisas que me interessavam. Sempre que podia, almoçava com Adrian e Elisa, que me conseguiam fazer entrar, sorrateiro, no restaurante universitário. Depois, na cantina da Reitoria, tomávamos um café – ou então ficávamos flanando pelas redondezas, em inflamadas conversas. Sempre havia um livro novo, um evento novo, uma ideia nova para debatermos. Quando não almoçava com eles, comia nos restaurantes populares da Praça Zacarias. Depois dava uns rolês pelo Centro, olhando as vitrines, as livrarias, as manchetes dos jornais, os cartazes de cinema, ou então espreitando, a uma distância segura, algum par de coxas que se sobressaía debaixo de uma minúscula saia. Tinha dias em que me aboletava em algum banco do Passeio Público, e aí, debaixo das árvores centenárias, dividia-me entre um livro e a contemplação, com olhar quase científico, dos tipos que por ali transitavam. Pelas quatro retornava à pensão e aí, sem televisão, sem rádio, sem toca-discos, me debruçava mais uma vez sobre brochuras, plaquetes e revistas. Às vezes passava à tarde na Biblioteca Pública, na Cândido Lopes, numa verdadeira disciplina de leituras. Marx não gostava de Balzac? Então dá-lhe A mulher de trinta, Ilusões perdidas, Eugenia Grandet... À noite, depois de uma média e um pão d’água na chapa com ovo frito, saía para a boemia: um cinema, um teatro, um café, um bar, muito bares: o Zunzum, na Duque de Caxias, a Velha Adega, na Cruz Machado, o Guairacá, ao lado do Palácio Avenida, o Cometa, na Quinze – e mais caminhadas em confabulaçõs intermináveis agora só com Adrian (por conta da tia austera, Elisa mal saía à noite). Algumas farras terminavam em vômitos de rabo-de-galo, gim e hi-fi nos bancos das praças Osório ou Tiradentes. Quando, altas horas, a fome nos assaltava, a salvação era o Okey, na Travessa Jesuíno Marcondes, o Bar Palácio, na Barão do Rio Branco, ou então, novamente na Quinze, o Mignon e o Triângulo, que disputavam a fama de terem trazido o primeiro cachorro-quente para Curitiba – com uma ou duas vinas, não importa. Mais tarde incluímos nessa peregrinação as boates e as casas de tolerância. Como não tínhamos cacife para a famosa Stardust, na Osório, e a lendária Marrocos, na Marechal Deodoro, já havia fechado as portas depois que seu dono fora assassinado por um cliente injuriado, atracávamos na Boate Tropical, no Passeio Público, com atrações que incluíam striptease, ainda novidade na cidade, ou então em lupanares mais modestos, como a Casa da Otília, na Fernando Amaro, com suas luzes multicores sobre a porta de entrada. Eu, por conta de minhas dificuldades monetárias, restringia-me quase sempre ao papel de espectador: um espectador muitas vezes triste, cônscio de sua sordidez e da sordidez intolerável do mundo. Quem sabe um dia a revolução resolvesse esses problemas: as paixões do baixo-ventre e os amores impossíveis."

Otto Leopold Winck

Chorando (Porto) Alegre




O Bar Alasca finou-se
na esquina da Osvaldo Aranha.

Fiquei órfão
de álcool & utopias.

Trattorias saíram a trote.

Restaram saudades
ao sugo & carbonara.

O Teatro Um virou sauna
os cinemas, templos & bingos.

Sobrou pouco, quase nada...

A cidade-espelho
reflete-se, agora,
em minha desesperança.

Ricardo Mainieri


Volto a um velho tema, a uma velha obsessão. A volta pra casa. A volta pro lar. Depois de uma longa jornada. Depois de uma longa guerra. Aí está Ulisses diante do lar. O portão está derruído. A velha casa em ruínas. O mato cresce por toda parte. Nenhum sinal de Penélope. Nem Ulisses é o mesmo: seus traços estão cansados, suas melenas longas e brancas. Não há quase nada do velho guerreiro.
Assim é a vida: não há um porto seguro pra retornar. Tu nunca voltarás à infância. O passado está enterrado. Os ponteiros do relógio só andam pra frente. A areia da ampulheta não retornará nunca. E ainda que tu te banhes no rio da memória, tu já não és o mesmo. E assim como o passado, que não existe mais, o futuro também não existe -- não existe ainda ou não existirá nunca. Um dia deixarei de atualizar esta página -- ou porque terei enchido o saco desta rede social ou porque estarei morto. Sim, morrerei um dia. E este dia pode ser amanhã. Basta atravessar a rua sem reparar no expresso que vem ou contrair uma versão agressiva do covid... Tu também morrerás um dia, hipócrita leitor (para parafrasear Baudelaire). E então o que temos? Temos só o agora, o instante que corre -- e às vezes isso é suficiente para tornar uma vida gloriosa. Ulisses, não olhes pra casa que foi. Construa uma casa de luz no dia de hoje. Fomos feitos para este dia. E é glorioso estar vivo.

Otto Leopoldo Winck

sábado, 9 de maio de 2020


O seu sorriso me faz crer
Na lenda das fadas
Azuis e ensolaradas
Festejando a essência da vida.
E, entre elfos e ondinas
Mergulho em silêncio
Meu sonho
Na noite que se faz presente
O seu sorriso é a lua.
(Angela Gomes)


Ando dormindo
com toda essa gente
de palavras soltas,
línguas libidinosas e
revolucionárias.
Vários ao mesmo tempo, 
homens e mulheres
numa balbúrdia de versos e
uma puta
vontade de ser
contaminada pelo vírus
 da inspiração e
disseminar o desejo libertário
pelas bocas
descuidadas e
corpos
anestesiados pelo medo.
Pela minha cama vários
 ao mesmo tempo. 
Me incendeiam e me devoram,
me beijam e me despem,
me lambem e me comem
num orgasmo de sentidos e
desejos incendiários
entre os dedos,
entrepernas
na tara
que é viver mergulhada na
poeisis da existência.
Lília Diniz.


Como uma puta louca
a lua nasceu atrás dos prédios
na louça azul do céu de maio.
Não houve desmaios.
Mas, caralho, a lua assim,
tão grande, tão branca, tão nua,
é muito lírica.
Otto Leopoldo Winck


ora, não me querias distante?
pois toma, agora,
mais um trago de ausência
já que, da minha permanência,
nada valeu, nem foi o bastante.
Lúcia Gönczy

RAÇADOS



Na verdade
Deus escreve torto
por linhas igualmente mal traçadas.
Todo anjo é barroco
e os santos
foram expulsos da República
juntamente com os poetas.
Na verdade
nenhuma luz é pura
e em excesso sempre cega.
Por isso tenho andado à sombra
e pelos caminhos mais escusos.
Sol e lua, carrego-os no bolso,
com um magote de estrelas
– cuidando que ninguém o saiba.
E o canto que ora canto
é feito de barro e madressilvas
em escalas variadas de silêncio.
Otto Leopoldo Winck


"Há o tempo de nascer e o de morrer.
Entre os dois são o Homem e seu tempo:
o largo espaço-tempo, claro tempo
que vai desde o viver ao não-viver.
Há o tempo de cantar e o de sofrer
e o de cantar sofrendo, e o de, cantando
sofrer; e há o tempo desse canto,
que o tempo dado ao homem é mercê.
Há o tempo de fazer e o de destruir,
e o tempo de sorrir e o de chorar,
de se manchar e de se desmanchar;
há o tempo de abraçar e o de partir,
e o de nascer, no tempo de abraçar,
e o de morrer, no tempo de partir."

Renata Pallottini

LARGUEAR



Quero alcançar-me, como quero
por minhas garras nas estrelas,
tê-las como amigas.
Desejo estar no mais profundo
do meu mundo e dos universos
que não vejo.
.
Almejo sonhar todos os sonhos,
levantar toda poeira,
banhar-me nas luas.
.
Então, depois de tudo...
virá o máximo.
Sem amarras, sem marcar o passo,
Sem limites ou fronteiras.
Fim de todas as barreiras
impostas pela realidade.
...............................
JULENI ANDRADE

http://juleniandradepoemas.blogspot.com/

O ÚLTIMO NEFELIBATA



Todo mundo é meio nefelibata em Curitiba. Meio pitagórico, meio vampiro, meio cachorro louco. Eu também. De dia durmo, rumino, medito. De noite saio, tomo uns tragos, frequento becos, bocas, contemplo a lua – quando ela dá as caras, é claro. Já fui professor de cursinho, redator publicitário, corretor de seguros, vendendor de móveis usados. Já vendi plano de saúde, assinatura de tevê a cabo, filtro dágua de barro. Até apontador de jogo de bicho já fui. Como não tenho mais idade para fazer malabares e ainda me sobrou um pouco de vergonha na cara para pedir esmola, estou aí, arrolado nas estatísticas dos sem ocupação. Mas não pensem que eu sou um desocupado. Trabalho duro. Teimo, limo, sofro, suo. Passo os dias – é preciso acentuar – compilando meus poemas. Trinta anos de produção. Não é fácil, meu amigo. Trinta anos alinhavando palavras, catando rimas, escandindo sílabas, marcando cesuras. São páginas e páginas de papel almaço, cadernos escangalhados, folhas datilografadas ou digitadas e impressas nas lan houses mais ordinárias da cidade. A maioria não presta. Sei disso. Depois de muito esforço, quem sabe eu consiga o suficiente para um opúsculo. (Opúsculo, gosto dessa palavra.) Falam de morte, de bruma, de brisa, de lua. E de mãe. É, e de mãe. Freud explica. Ou o diabo. Ah, esqueci de contar: moro com a minha mãe, num apartamento encardido do Alto da Quinze. Ela é aposentada do estado. Com o que ganha, pagamos aluguel, condomínio, luz. O telefone está cortado. Meu celular não sabe o que é crédito há uma cara. Como a aposentadoria dela é uma merreca e eu, como você viu, estou sem renda, é visível que para comer está difícil. Espremendo daqui e dali, fazendo mágica e reza brava, dá para um comer. É claro, sem luxo, pieroguis, estrogonofe, torta alemã, como antigamente. Para dois, ah, isso não dá. Por isso ela vinha dizendo, a velha: ou é tu ou sou eu. Não dá para os dois. Como tu não bota nada dentro de casa há muito tempo, tu cata as tuas coisas e cai fora. Eu dizia: peraí, mãe, pega leve. Não é fácil falar essas coisas, meu irmão. Mãe é sempre mãe. Pode ser velha, pode ter sido puta, mas é mãe. Deixa eu tomar mais um gole, está muito frio, essas noites de Curitiba são o diabo. Como eu tenho essa grana? Olha, meu amigo, a gente pode pasar fome, necessidade, mas sem os vícios a gente não passa. Às vezes rola um bico, um trampo, um trambique. Às vezes, no maior desepero, passo a mão em alguns livros lá da estante e vendo num sebo. Já tive uma senhora biblioteca, prateleiras e prateleiras de lombadas com títulos em francês, inglês, italiano, além dos brasileiros e portugueses de minha estimação: Antônio Nobre, Cesário Verde, Cruz e Souza e o pobre Alphonsus. Agora, não passam de algumas dezenas. Mas quando, assim mesmo, estou sem um puto, ah, aí eu apelo. Na bolsa da velha confisco um trocado. Fico sem remédio, sem comida – um pastel dá para o gasto – mas não fico sem o meu trago. Pobre velha, hão de chorar por ela não digo os cinamomos mas pelo menos os chorões carpideiros da Fernando Moreira. É, meu chapa, estou decadente. Je suis l’émpire à la fin de la décadence, saca? Na verdade, sou decadente: estrela caída, albatroz sem asa, flor do absinto. Sempre fui. Décadence avec élégance. Foi-se a élegance – já fui dândi, echarpes longuíssimas, cabelos à Oscar Wilde –, ficou a décadence. Mas eu não contei tudo. Deixa beber mais. In vino veritas, não é assim? Agora, com o conhaque, a verdade é mais letal. Bom, como eu ia falando, esta noite, ao sair de casa, fui me despedir da velha e não escutei o seu natural grunhido. Recuei, chamei-a novamente. Nada. Silêncio absoluto. Entrei no quarto (eu durmo na sala) e mais uma vez nenhum sinal. Ela teria saído para comprar um cigarro, ir à igreja, ao supermercado, sem que eu percebesse? Não, já era tarde e ela não costuma sair de noite por medo do sereno, da friagem, dos craqueiros. Entrei então no banheiro, pé ante pé, temendo o pior, sabe-se lá, a velha é louca. E vi. Atrás do box quebrado, lá estava ela, pendurada do cano do chuveiro (chuveiro elétrico; detalhe: queimado). Não aguentei. O baque foi grande. Saí para espairecer, dar umas voltas, bater perna, enquanto o corpo esfria. Com o frio que está fazendo, meu irmão, esfria logo, logo. Aliás, o corpo dela nunca foi muito quente. Calor ali só no ódio votado ao filho. Então é isto: saí para relaxar. Gola erguida, chapéu enfiado nos olhos, o rosto contraído contra o vento gélido, sigo pelas ruas, ruelas, vielas, as mais escuras, as mais desertas. Medo de algum maluco, algum drogado? Absolutamente: na mão crispada dentro do capote, a faca. Um dia um piá veio se meter a besta e ficou estirado na calçada, sangrando. Já disse, sou meio louco, vampiro, degenerado. Minha vida é assim. Entro num boteco, peço uma dose, engulo alguns rollmops quase apodrecidos, pago, pego as moedas sobre o balcão, saio de novo. O vento me corta o rosto e, somado ao álcool que começa a circular nas veias, me dá um estranho prazer. A mão no bolso, apalpo o cabo da faca. Logo encontro outro cabo, maior, latejante, aflito por uma bainha sorrateira. Mas não há nenhuma polaca na rua capaz de me satisfazer por vinte pratas. Amigo, a vida é dura para quem nasceu poeta e sem vocação alguma para ganhar dinheiro. Prossigo meu caminho, que é caminho nenhum, transeunte sem rota, sem norte, sem aura, às avessas. O passo veloz, corto as ruas, as esquinas, os canteiros. Alcanço o Largo da Ordem, a essa hora hora ainda povoado pela burguesia adiposa de Curitiba. Atravesso a Praça Tiradentes, escura, um casal bolinando num banco, um mendigo dormindo no outro. Desço pela Rua das Flores, cruzo por punks, ratazanas atravessam o calçadão quase deserto, salvo dois ou três notívagos. Passo pela Boca Maldita, agora calada, seus aposentados dormindo e sonhando com outra Curitiba que os anos não trazem mais. Atinjo a Praça Osório e saúdo – salve, salve, meu príncipe – o busto de Emiliano Perneta na herma entre os pederastas. Todo mundo é meio taciturno em Curitiba, meio poeta, meio louco, meio simbolista. Deve ser o fog londrino que por descuido de São Pedro veio parar também aqui – ou então é o espectro do Dario Veloso ou do Rocha Pombo que não nos deixa em paz. Quanto a mim, sou inteiramente sombrio, hipocondríaco, merencório, como se dizia antigamente. (Merencório, gosto dessa palavra.) Nasci sob o signo de Saturno, odeio sol, odeio luz, odeio sorriso de criança. Jardins, triciclos, balões coloridos? Estou fora. Chás em academias, ciclos de leitura, cafés com viados metidos a intelectuais? Também estou fora, camarada. Dou a volta, subo pela Visconde de Guarapuava, chego à Fernando Moreira, observo os supracitados chorões sobre o córrego que não vê peixe há muitas décadas e me recordo da enforcada. Meu velho, eu me preveni. Do último trampo me sobrou uma grana, com a qual eu fiz um seguro para ela. Com o cobre edito o opúsculo. O título? O último nefelibata. É isso aí, cara, eu sou o último nefelibata, o último autêntico dessa capital provinciana que já teve dias melhores e que por um mero acaso, já disse, um puro capricho dos deuses, veio parar nesse país entre os tristes trópicos. Subo agora pela Cândido Lopes, ali a Biblioteca Pública, museu dos paranistas. Mais uma dose. Pelo menos eu vou ficar com o seguro. Menos mal. Para ela eu acendo uma vela, afinal era minha mãe, doidivanas, decrépita, mas minha mãe, uma vela bem grande, do tamanho dela, preta, que é para ela não sair do inferno. Uma estadia no inferno? Não, a eternidade. Ela disse: com a titica que eu ganho só dá para um, endendeu? Só dá para um. Como tu não serve para nada, nem para consertar a bosta de um chuveiro, tu cai fora. É duro ouvir isso da mãe da gente. Bom, a conversa está boa mas eu vou andando, tenho que dar parte na delegacia. Seu delegado, que horror, a minha mãe se matou, se dependurou do cano do chuveiro em seu último cachecol. É conveniente chorar um pouco. Mas bem pouco. Ninguém chora muito por uma velha louca. A noite, a brisa, a bruma, o álcool me dão uma estranha sensação, como eu disse. À mente me vem versos, árias, imagens. Quero morrer assim: uma garrafa de conhaque de um lado, um livro do Edgar Allan Poe do outro. Tedium vitae, spleen, nevroses, como se falava. (Nevrose, gosto dessa palavra.) Já disse: sou meio louco, vampiro, cão danado. Já fui pitagórico, rosacruz, bati ponto no Templo das Musas, já bebi sangue de galinha no cemitério. Agora estou mais cool, o meu divertimento é tomar um conhaque e andar a esmo pelas ruas de Curitiba, saudando os mendigos, as prostitutas, os invertidos. Sou poeta e portanto inadaptado à vida. Sem um trago, meu velho, não dá. Não dá para aguentar o frio, não dá para aguentar a vida, não dá para aguentar a velha me dizendo todo santo dia, como se eu tivesse dezessete anos, que se eu não arranjar mufunfa alguma ela me enxota de casa. Que Deus a tenha. No inferno não vai precisar de chuveiro elétrico. Nau sem rumo, barco embriagado, estou de volta ao São Francisco. Me apraz contemplar as fachadas desses casarões centenários na névoa das três e quarenta da matina. Pouca gente na rua agora, um guarda noturno, um cachorro sarnento, um velho fedido dormindo na rua. Mas devo seguir, despetalar até o fim a última flor do mal. Me desvio de um crioulo bêbado, atravesso a avenida, os faróis do carro são duas grandes nebulosas. Chego a este bar, quatro mesas, três fregueses e encontro você – que me fez a gentileza de ouvir esta história. Foi muito boa a conversa, meu chapa. Deu para espairecer. Mas devo seguir viagem. Cumprir meu destino. O corpo já deve estar frio, gelado, ficando azul, os olhinhos saltados. Muito prazer. Deixa que esta eu pago. Faço questão. Não está lembrado? Eu tenho uma chelpa para receber. Com licença, preciso ir à delegacia. Que maçada essas coisas, velório, enterro, apertos de mão. Parente velho só serve mesmo para morrer. Eu nunca fui muito prático. Fazer o quê? É a vida. As pessoas nascem, as pessoas morrem. Entre uma coisa e outra elas pagam contas, tomam remédios, suportam filas e se desesperam. Algumas, as mais sensíveis e delicadas, fazem versos, como eu. Versos inúteis que não publicam. Ah, mas dá na mesma, foder ou ser fodido, escrever ou ser escrito, poeta ou salafrário. Agora eu vou. Encaro o delegado e conto que a velha se matou. Afinal, foi ela que disse: ou é tu ou sou eu. Não dá para os dois. Ou danço eu ou dança ela, meu irmão. Como eu sou mais esperto, dançou ela. Todo mundo é meio psicótico em Curitiba. Menos eu.

Otto Leopoldo Winck

POEMA PARA UM SÁBADO DE MORTE



vida ou morte não são coisas opostas
e sim divindades em tempo certo?
eu tenho mais perguntas que respostas
também não peço água no deserto
tristeza e dor se dão bem por compostas
à noite estrelas sentem-se mais perto
quem carrega meus problemas nas costas
é a amiga que dorme onde eu desperto
ser craque da palavra já me basta
veja só como é interessante
uma puta poesia pura e casta
pode foder com todos num instante
uma só gripezinha é o bastante
para a dez mil decretar insana caça
e vai matar bem mais, inobstante
o que se faz para salvar a raça
pessoas não são números nem gráficos
são seres que têm alma e coração
para eles escrevemos os clássicos
e amor como tema em cada canção
mentes conectam registros akáshicos
na eterna forma de contribuição
aos cômicos se opõem tristes e trágicos
ao luto, nossa comiseração
a essa pobre gente minha rima
rica em efeitos especiais
sentimento que a tudo acolhe e arrima
em risos, lágrimas, em ós e ais
cumpra-se assim o rito de quem prima
pela vida com aquele algo a mais
e ao seu amor o meu amor imprima
o bem que é sempre bom demais!

antonio thadeu wojciechowski


Gira, gira, gira...
Gira o mundo e,
Eu sem saber
Aonde a roda me levará.
Pra conhecer a paz
Devo na guerra morrer?
Pra meditar no que
Não voltará jamais
Devo partir?
Vou caminhar
Não devo me iludir
Com o que encontrar
Na rota louca
De não saber onde ir...
A "Porta do Sol"
O voo de um "Homem Pássaro"
A lançar seus braços
Na dimensão de se estar
Muito além da sombra
De algum planeta.
Ou, do sentido
De se empunhar
Uma caneta.
Na madrugada sou
O que com o vento partiu;
O que a terra engoliu.
E, na tarde
O encaminhamento
De poder retornar
Ao amanhecer.
Angela Gomes.