quinta-feira, 31 de outubro de 2019


Mais um trecho de 'Que fim levaram todas as flores':

O conflito de gerações – que mal ou bem sempre existiu – assumiu naqueles anos proporções cataclísmicas. O hiato virou fosso, o fosso virou abismo. Pais quadrados, filhos avançados. Pais caretas, fihos prafrentex. Não era só uma questão de pontos de vista diferentes. Era a vista de pontos totalmente diferentes, antagônicos, como nunca acontecera antes nem voltaria a acontecer depois. Os pais ouviam samba-canção, mambo, bolero, jazz, ópera etc. Os filhos curtiam rock (agora sem o roll). Os pais até podiam gostar de Beatles e de iê-iê-iê, mas nunca de Rolling Stones, menos ainda de Jimi Hendrix. Hoje, pais, filhos e avós podem ir juntos (e muitas vezes vão) a shows dos Stones ou do Paul McCartney. Agora faça a experiência de assistir aos filmes do Monterrey Pop Festival e do Woodstock: você não vê ninguém ali com mais de trinta anos, nem em cima nem embaixo do palco (descontando Ravi Shankar, é claro). Esse choque geracional se manifestava inclusive entre gerações limítrofes, como a nossa, em torno dos dezoito anos, e a que imediatamente nos antecedeu, que rondava os trinta, com quem convivíamos, embora às turras. Eles tomavam uísque, nós puxávamos fumo – sem deixar o uísque, preferencialmente substituído pela pinga, mais popular. Para eles Deus estava morto e enterrado, para nós solto (não exatamente naquele ano, ainda muito racionalista, mas a partir dos anos seguintes). Era o contraste entre a booze generation e a pot generation, a turma da birita e a patota da fumaça. De um lado a bossa nova e a canção de protesto, do outro a tropicália e os acordes dissonantes. Ali o Teatro de Arena e o legado dos Centros Populares de Cultura, aqui o Teatro Oficina, Plínio Marcos e Antônio Bivar – e em breve Pasquim, Bondinho, Novos Baianos... Mas se com nossos pais não havia nenhuma espécie de diálogo, com eles nós podíamos discutir – e discutíamos muito, madrugadas adentro.
– Cara, o melhor compositor surgido nos festivais é Chico Buarque – dizia o veterano Péricles, que já rondava os quarenta, metade dos quais envelhecidos precocemente em redações enfumaçadas e nos balcões dos botecos mais ordinários da cidade.
– Tu tá por fora, bicho. O lance é Caetano – rebatia Grillo, que depois da minha reportagem só assinava seu nome assim, com dois “L”. – Gil e Caetano. Eles já estão noutra. O tempo passou na janela e só o filho do Sérgio não viu.
– Cantora, sou mais a Nara – era uma loira, carregadíssima de maquiagem e cílios suspeitíssimos, que afirmava, sentada ao lado do Péricles. – A Nara e aquela baixinha, a Elis.
– Que Nara que nada – retrucava uma morena com a metada da idade. – Ela nem tem voz. Sou bem mais a Gal, saca? A Gal e a Kalafe.
Duas garrafas de Natu Nobilis depois, o assunto agora era cinema e teatro:
– Olha, pra dar o recado, não apareceu ninguém melhor que Brecht. É pá-pum: mata a cobra e mostra o pau, o sistema é assim e assado e nós temos que fazer o seguinte...
– Balela! Ele ainda está preso nos velhos moldes racionalitas – retrucava Grillo novamente. – Não percebe que, sendo contra Aristóteles, ele ainda é aristotélico? A razão ocidental está falida, bicho. De minha parte, boto mais fé no Artaud. Teatro da Agressão. E no Living Theatre.
Quem seria o Artaud? – perguntava-me. A trupe do Julian Beck eu já conhecia dos escândalos percutidos pela mídia.
– No cinema, Godard ainda é o maioral. A chinesa é do caralho.
– Aí eu concordo. Mas a Nouvelle vague está ficando sacal. E o Cinema Novo está indo pelo mesmo caminho. Aposto minhas fichas ainda nos italianos. Vocês viram Blow-up? E Teorema?
A morena tinha visto Blow-up.
– E romancista? O melhor que apareceu nos últimos anos foi o Cony – declarava Péricles, com todo o peso de sua autoridade.
– O Cony? Corta essa! – contestava o Grillo. – A onda é o José Agrippino de Paula.
– Nunca vi mais gordo nem mais magro. O que ele escreveu?
– PanAmérica. Livraço. Mistura Marylin Monroe, Cassius Clay e Che Guevara numa prosa alucinada.
– Besteira! Detesto esses “popismos”...
– Eu gostei do Callado – aventava eu, timidamente. – Quarup.
– Ah, esse é bom também.
Grillo não disse nada. A loira e a morena pareciam concordar.
– E estrangeiro? – tornou Péricles.
– O Ken Kesey, o Burroughs...
– Quem são esses cabras? É Norman Mailer o maior, o mais contundente. Não tem pra ninguém.
– Tem muito macho nessa lista aí – dizia a loira, com o que a morena concordava. – Tem que acrescentar a Françoise Sagan.
– Autora de um livro só – alfinetava Péricles.
– E no Brasil não tem ninguém melhor que a Clarice – ajuntou a morena.
– Alienada.
– Alienada o escambau! Alienação é esse papo besta pra ver quem tem o pinto maior – fulminava a loira.
– É claro que é o meu – pilheriava Péricles.
Gargalhávamos. Na dúvida, preferíamos não conferir – eu pelo menos. É provável que as moças já tivessem conferido e que o moço viria a conferir em breve. Ao final da noitada, ao rachar a conta, ainda vinha outra das sentenças do Péricles:
– Pra não fundir a cachola, nos tempos loucos que correm, só o bom e velho Sigmund.
À qual Grillo invariavelmente redarguia:
– Que Freud que nada, meu! Freud é o último positivista. O lance é Jung. Jung.
– Ora, são apenas novos opiáceos populares, já que as velhas religiões estão todas falidas.
– Quer saber de uma coisa? Marx era outro positivista!
Às vezes, a conversa ainda se arrastava pelos paralelepípedos escorregadios de uma Travessa Nestor de Castro deserta, onde, longe de ouvidos alheios, o foco podia se voltar com mais segurança para a política:
– Não sei, cara... Pra derrubar a ditadura só com movimento de massas. Guerrilha a esta altura é canoa furada.
– Sei não, bicho – suspirava Grillo. – Trancaram todas as portas. E além do mais, as massas não estão nem aí pro babado: só pensam em futebol, quermesse e televisão. O jeito é cair fora. Foda-se o povo! Não quer fazer revolução? Que se dane!
Péricles ajeitava o chapéu sobre o crânio ossudo e, com suas escleróticas amareladas, encarava Grillo do alto de sua autoridade de ex-membro do Partidão:
– Grillo, você tem que comer ainda muita farinha pra superar esse seu anarquismo de butique.
Enquanto isso, lá no alto, a lua, apática testemunha, era uma foice de prata num campo de estrelas – ou então um fantasma, um clarão, uma evocação sob as nuvens...
Na verdade, entre um polo e outro, entre os malditos de ontem e os marginais de amanhã, entre os heróis do bas-fond e os pioneiros do underground, entre os boêmios de antanho e os bichos-grilos de alguns anos depois, circulavam seres híbridos, ambíguos, anfíbios, em que essas duas gerações se interseccionavam, fundidas e confundidas: por um lado eram booze, como Péricles e Saul (Debout! les damnés de la terre!), por outro pot, como Bira e Grillo (Turn on, tune in, drop out!).
– Mas, afinal, que mal tem em unir Taiguara e Yardbirds? – perguntava o primo do Bira, aquele mesmo que me emprestara o smoking. – Posso muito bem ser vidrado em Stones e apreciar meu Lukács. Aliás, vocês já ouviram “Street fighting man?”


OlW



Você não viu
que eu roubei a lua?
Toma ela então
de presente
neste tubo do Ligeirinho,
com todas as estrelas
e uma bola de fogo
que ora se chama sol,
ora se chama paixão.

Otto Leopoldo Winck


MISERERE MISERERE ME



Heus, ah, miserere miserere mei
O res est quae solebant esse, nec sine
Ubi hyacintho aetheres ad omnes?
Venenum ventum est ad orientalem illius ab oriente et ab aquilone et mari
Heus misericordiae, miserere mei,
O res est quae solebant esse, nec sine
Vastata oleum super mare et super maria nostra, mercurio supernatat pisces plena
Ah, O miserere, miserere mei
Ah, non id quod sunt, esse solebat, nulla nulla
Radii per caelum et terram
Qui in avibus et animalibus debetur habitetis et non moreretur
O miserere, miserere mei
O res est quam esse solebat,
Quid de hac terra overcrowded
Quanto magis homo potest ex abusu non stabit?
O, non non; na na na na
Dominus meus dulcis
Dominus meus, mea, dulcis Dominus
IJS


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

ESTAÇÃO



Rolando na cama sem dormir
E um mundo de ternura lá fora
Escondido em algum lugar
Que não consigo alcançar.
Ternuras doces de palavras amenas,
De frases pequenas,
De suspiro solto no ar,
Saindo em golfadas de carinho,
envolvendo o espaço
Que só você pode ocupar.

A madrugada pronta para a partida!
Na estação, com pouca bagagem.
Ali mesmo trocando a roupagem,
Deixando o sobretudo austero,
Vestindo tons branco e amarelo,
Calçando luvas tão macias
Para apalpar as almas vazias
Dos notívagos sem farol.
Que, tristes, revolvem o lençol
A procurar ternuras doces, palavras amenas
Ou frases pequenas que nunca vão rimar!

(Carretel de Rosas)


Lucelita Maria   

Outros





Há quem bata palmas

para suas reservas de dor

essa gente que nunca suo frio

no último segundo no ponto de ônibus

Exaltando teu desespero

perdido na saia aqueles dedos que

não estariam mais lá

no fundo da garganta agora

RV

O riso do morto



Naquela noite fria de julho, o céu deveria estar estrelado como nunca, mas não estava. O céu encoberto e sem lua fazia da noite ali na roça um escuro só. Nem sequer um vagalume dera as caras. As mulheres tiraram seus xales dos baús, os homens vestiram seus casacões pesados e pelos caminhos poeirentos do lugar foram para a casa onde o morto era velado. Na sala pobre, o morto, sobre um estrado improvisado, repousava sobre as tábuas forradas de pano, enquanto não chegava o caixão encomendado na vila.
Os amigos, os parentes e os curiosos foram chegando e se sentando nos bancos encostados nas paredes. De vez em quando alguém puxava uma reza. De vez em quando alguém passava uma bandeja de café. Na cozinha os homens se serviam de aguardente, que era para esquentar o frio e espantar a tristeza. Tudo de acordo com o costume do lugar. Para matar o tempo, conversava-se de tudo, se falava do morto, dos vivos e do que não é nem uma coisa nem outra.
Os mais íntimos se revezavam junto ao corpo, e aproveitavam para louvar as qualidades do defunto. Foi então que o morto começou a sorrir, isto é, foi então que um ou outro teve essa impressão. À fraca luz das velas que circundavam o estrado, parecia que o morto sorria quando alguém se aproximava. Na verdade, um sorriso debochado, silencioso mas debochado, com certeza um riso de escárnio. Quem viu tratou de comentar com outros e, um por um, todos foram comprovar o despautério.
No começo foi um susto geral, coisa de arrepiar os cabelos, de dar mesmo um frio na espinha, de sair correndo. Logo virou uma festa. O morto ria, era verdade verdadeira. Normalmente o morto tinha uma cara inexpressiva e sombria que é a cara que qualquer morto tem, mas de repente o rosto se descontraia e a boca traçava um contorno de risada, o sorriso de quem se diverte com uma situação.
Mais de um dos presentes foi cutucar o falecido para ver se ele estava realmente morto. Ele estava. Morto, mortíssimo, morto a bala. O coitado morrera baleado numa emboscada numa curva traiçoeira da estrada. Quem o matou, não se sabia. De certo algum bandido que nem por lá morava e que acertou o coitado por engano, por distração ou por razão nenhuma. O homem não tinha inimigos nem credores. Não tinha dinheiro nem bens que valessem a pena. Na verdade, ele tinha, mas só ele sabia. Tinha um relógio de bolso de ouro maciço, de cem rubis, preso a uma grossa corrente igualmente de ouro. Herança de um padrinho rico que ele nunca mostrava a ninguém. Com medo de roubo, inveja ou quebranto, mantinha o relógio escondido num bolso disfarçado no forro do paletó. Olhar as horas ou dar corda no relógio, somente quando não havia ninguém olhando. Pelo menos era o que ele pensava, que ninguém, além dele e da já falecida sua mulher, sabia do relógio.
De todo modo, na câmara ardente, a balbúrdia estava instalada, o morto ria e ninguém sabia o que fazer. Um dos vizinhos, sentado num canto da sala, até então quieto como uma pedra, mas que já havia ido muitas vezes à cozinha, onde, sozinho, já esvaziara uma garrafa, levantou do banco e se aproximou do morto. Bem na cara do defunto, ele gritou alto:
 ― Está rindo do quê, seu desgraçado?
O riso do morto rompeu o silêncio e se transformou numa comprida gargalhada. Depois, o defunto olhou bem para o homem que o interpelava e disse:
― Estou rindo de você, é claro, meu caro compadre. Primeiro você me matou numa emboscada. E agora está aí se borrando nas calças de medo de ser descoberto, seu covarde cagão.
Em seguida o morto se calou, dessa vez para sempre, e não riu mais.
A confusão agora não tinha mais medida: gente gritava, gente corria, gente desmaiava. Em meio ao pandemônio em que virou o velório, o assassino desmascarado tentou fugir. Foi impedido por dois policiais do vilarejo, que, à paisana, tinham ido tomar seus tragos no velório. Mais tarde, na casa do assassino, a polícia encontrou o revólver e o relógio: a arma e o motivo do crime.
No dia seguinte, com o assassino preso, o caixão entregue e o morto sossegado, o enterro transcorreu tranquilamente.

[Nota: “O riso do morto”, com outro formato, foi originalmente escrito para o livro Minha querida assombração, publicado pela Companhia das Letrinhas em 2003, mas acabou ficando de fora.]

Reginaldo Prandi




Contém um conto/companhiadasletras

Aquela água toda




Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta, se comparada à que o esperava lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou de uma vez, como se natural: iriam à praia de novo, igualzinho ao ano anterior, a mesma cidade, mas um apartamento maior, que o pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato, num instante azul-azul, os pés na areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe, aquela água toda nos olhos, o menino no mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na memória.

É verdade, mesmo?, queria saber. A mãe confirmou. O irmão a abraçou e riram alto, misturando os vivas. Ele flutuava no silêncio, de tão feliz. Nem lembrava mais que podia sonhar com o sal nos lábios, o cheiro da natureza grande, molhada, a quentura do sol nos ombros, o menino ao vento, a realidade a favor, e ele na sua proa...

O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou pela casa. A mãe ia de um quarto ao outro, organizava as malas, Vamos, vamos, dava ordens, pedia ajuda, nem parecia responsável pela alegria que causara. O menino a obedecia: carregava caixas, pegava roupas, deixava suas coisas para depois. Temia que algo pudesse alterar os planos de viagem, e ele já se via lá, cercado de água, em seu corpo-ilha; um navio passava ao fundo, o céu lindo, quase vítreo, de se quebrar. Não, não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus pés. O menino aceitava a fatalidade da alegria, como a tristeza quando o obrigava a se encolher — caracol em sua valva. Não iria abrir mão dela. Viver essa hora, na fabricação de outra mais feliz, ocupava-o; e ele, ancorado às antigas tradições, fazia o possível para preservá-la. A noite descia, e mais grossa se tornava a casca de sua felicidade.

Quando se deu conta, cochilava no sofá, exausto pelo esforço de preparar o dia seguinte. Esforçara-se para que, antes de dormir, a manhã fosse aquela certeza, e ela seria mesmo sem a sua pobre contribuição. Ignorava que a vida tinha a sua própria maré. O mar existia dentro de seu sonho, mais do que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar sobre as águas — o pai o levava para a cama, com seus braços de espuma.
Abriu os olhos: o sol estava ali, sólido, o carro de portas abertas à frente da casa, o irmão em sua bermuda colorida, a voz do pai e da mãe em alternância, a realidade a se espalhar, o mundo bom, o cheiro do dia recém-nascido. O menino se levantou, vestiu seu destino, foi fazer o que lhe cabia antes da partida, tomar o café da manhã, levar as malas até o carro onde o pai as ajeitava com ciência, a mãe chaveava a porta dos fundos, Pegou sua prancha?, ele, Sim, como se num dia comum, fingindo que a satisfação envelhecia nele, que se habituara a ela, enquanto lá no fundo brilhava o verão maior, da expectativa.

Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada um construía — seus castelos de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em ondas, ele só percebia que o tempo era o que era quando já passara, misturando-se a outras águas. Recordava-se de estar ao lado do irmão no banco de trás, depois junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica que, para suportá-la, dormiu.

Ao despertar, saltou as horas menores — o lanche no posto de gasolina, as curvas na descida da serra, a garagem escura do edifício, o apartamento com móveis velhos e embolorados — e, de súbito, se viu de sunga segurando a prancha, a mãe a passar o protetor em seu rosto, Sossega! Vê se fica parado!, ele à beira de um instante inesquecível.

Ao lado do edifício, a família pegou o ônibus, um trechinho de nada, mas demorava tanto para chegar... E pronto: pisavam na areia, carregados de bolsas, cadeiras, toalhas, esteiras, cada um tentando guardar na sua estreiteza aquele aumento de felicidade. O menino, último da fila, respirava fundo a paisagem, o aroma da maresia, os olhos alagados de mar, aquela água toda. Avaro, ele se represava. Queria aquela vivência, aos poucos.

O pai demarcou o território, fincando o guarda-sol na areia. O irmão espalhou seus brinquedos à sombra. A mãe observava o menino, sabia que ele cumpria uma paixão. Não era nada de mais. Só o mar. E a sua existência inevitável. Sentado na areia, a prancha aos seus pés, ele mirava os banhistas que sumiam e reapareciam a cada onda. Então, subitamente, ergueu-se, Vou entrar!, e a mãe, Não vai lá no fundo!, mas ele nem ouviu, já corria, livre para expandir seu sentimento secreto, aquela água toda pedia uma entrega maior. E ele queria se dar, inteiramente, como um homem.

Foi entrando, até que o mar, à altura dos joelhos, começou a frear o seu avanço. A água fria arrepiava. Mas era um arrepio prazeroso, o sol se derramava sobre suas costas. Deitou de peito na prancha e remou com as mãos, remou, remou, e aí a primeira onda o atingiu, forte. Sentiu os cabelos duros, o gosto de sal, os olhos ardendo. O desconforto de uma alegria superior, sem remissão, a alegria que ele podia segurar, como um líquido, na concha das mãos.

Pegou outra onda. Mergulhou. Engoliu água. Riu de sua sorte. Levou um caldo. Outro. Voltou ao raso. Arrastou-se de novo pela água, em direção ao fundo, sentindo a força oposta o empurrando para trás. Estava leve, num contentamento próprio do mar, que se escorria nele, o mar, também egoísta na sua vastidão. Um se molhava na substância do outro, era o reconhecimento de dois seres que se delimitam, sem saber seu tamanho.

O menino retornou à praia, gotejando orgulho. O sal secava em sua pele, seu corpo luzia — ele, numa tranquila agitação. E nela se manteve sob o guarda-sol com o irmão. Até que decidiu voltar à água, numa nova entrega.

Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar num reencontro que até doía pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao outro; apenas se davam a conhecer, o menino e o mar. E, naquela mesma tarde, misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava daquela saciedade: ele nem pedira sorvete, milho-verde, refrigerante. O menino comia a sua vivência com gosto, distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.
Quando percebeu, o sol era suave, a praia se despovoara, as ondas se encolhiam. Hora de ir, disse o pai e começou a apanhar as coisas. A família seguiu para a avenida, o menino lá atrás, a pele salgada e quente, os olhos resistiam em ir embora. No ônibus, sentou-se à janela, ainda queria ver a praia, atento à sua paixão. Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas, prédios novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do ônibus, tão macio... Começou a sentir um torpor agradável, os braços doíam, as pernas pesavam, ele foi se aquietando, a cabeça encostada no vidro...

Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali de maior. Despertou assustado, o cobrador o sacudia abruptamente, Ei, garoto, acorda! Acorda, garoto!, um zum-zum-zum de vozes, olhares, e ele sozinho no banco do ônibus, entre os caiçaras, procurando num misto de incredulidade e medo a mãe, o pai, o irmão — e nada. Eram só faces estranhas.

Levantou-se, rápido no seu desespero, Seus pais já desceram, o cobrador disse e tentou acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade às pressas e, afobado, se meteu nela de qualquer jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo instante, intuindo seu desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só precisava voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...

Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-os com a prancha. O ônibus parou, aos trancos. O cobrador gritou, Desce, desce aí! O menino nem pisou nos degraus, pulou lá de cima, caiu sobre um canteiro na beira da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu correndo pelo calçadão, os cabelos de sal ao vento, o coração no escuro. Notou com alívio, lá adiante, o pai que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua direção. Depois... depois não viu mais nada: aquela água toda em seus olhos.
Este conto foi retirado do livro Aquela água toda

 João Anzanello Carrascoza

Fonte : Contém um conto/companhiadasletras


Rolézim



Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, não era nem nove da manhã e a minha caxanga parecia que tava derretendo. Não dava nem mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o dinossauro. Já tava dado que o dia ia ser daqueles que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter uma ideia, até o vento que vinha do ventilador era quente, que nem o bafo do capeta.

Tinha dois conto em cima da mesa, que minha coroa deixou pro pão. Arrumasse mais um e oitenta, já garantia pelo menos uma passagem, só precisava meter o calote na ida, que é mais tranquilo. Foda é que já tinha revirado a casa toda antes de dormir, catando moeda pra comprar um varejo. Bagulho era investir os dois conto no pão, divulgar um café e partir pra praia de barriga forrada. O que não dava era pra ficar fritando dentro de casa. Calote pra nós é lixo, tu tá ligado, o desenrolo é forte.

Passei na casa do Vitim, depois nós ganhou pra caxanga do Poca Telha, aí partimo pra treta do Tico e do Teco. Até então tava geral na merma meta: duro, sem maconha e querendo curtir uma praia. A salvação foi que o Teco tinha virado a noite dando uma moral pros amigo na endola, aí ganhou uns baseado. Uns farelo que sobrou do quilo. Arrumou até uma cápsula. O caô era que ele queria ficar morgando em casa invés de partir com nós. Teco é maluco. Até parece que ia conseguir dormir com aquela lua. Geral falou que na praia ele ia ficar tranquilão, só palmeando as novinha, dando uns mergulho pra refrescar a carcaça. Quando chegasse em casa, ia tá morgadão, dormir que nem criança. Ele disse que deixava um baseado com nós, mas que ia marcar em casa mermo. Sorte foi que o Vitim conseguiu instigar ele a dar um belengo pra ficar na atividade. Acho que era isso mermo que ele queria, um parceiro pra meter o nariz com ele, pra não ficar sozinho na onda. Oprimido. Esses moleque gosta muito, papo reto, nunca vi! Dez da manhã, um sol da porra, e eles metendo a nareba.

Eu nunca cherei. Lembro de quando meu irmão chegou do trabalho boladão, me chamou pra queimar um com ele nos acessos. Queria ter uma conversa de homem pra homem comigo, senti na hora. A bolação dele era que um amigo que cresceu com ele tinha morrido do nada. Overdose. Tava pancadão na bike, se pá até indo de missão comprar mais, quando caiu no chão. Já caiu duro. Overdose. Tinha a idade do meu irmão na época, pô. Vinte dois! Nunca tinha visto meu irmão daquele jeito, eles era fechamento mermo. Aí o papo dele pra mim: pra eu ficar só no baseado. Nada de pó, nem crack, nem balinha, esses bagulhos. Até loló ele falou que era pra eu não usar, que loló derrete o cérebro. Sem contar os neguim que já rodaram com parada cardíaca porque se derramaram na loló. Naquele dia prometi pra ele e pra mim que nunca que ia cheirar cocaína. Fumar crack muito menos, tá maluco, só derrota. Loló eu até dou uns puxão às vez, no baile, mas me controlo. Hoje eu vejo que o papo era reto, bagulho é ficar só no baseado mermo, até bebida é uma merda. Pra tu ver, no meu aniversário fiquei doidão, vacilando. Por causa de quê? Cachaça! O pior é que eu nem lembro de nada. Tava bebendo lá na treta do Tico e do Teco, jogando ronda, quando vi tava acordando em casa, todo sujo. Noutro dia é que me contaram o caô. Falaram que fiquei mexendo com as mina na rua, até segui uma novinha no beco. Mó papo de vacilação. Se vagabundo me pega numa dessa tomo um coro. Pega a visão.

O piloto nem roncou quando nosso bonde subiu na traseira, o ônibus tava como, lotadão, várias gente, cadeira de praia, geral suado, apertado. Tava osso. O que salvou a viagem foi ficar marolando, vendo o Vitim e o Teco, os dois tava trincadão, mordendo as orelha. Papo reto, eu não entendo pra que que nego usa droga pra ficar oprimido, batendo neurose com tudo. Que nem no dia que tava eu e o Poca Telha queimando um na laje da tia. Do nada brotou o Mano de Cinco com mais dois paraíba que tinha acabado de chegar da terrinha. Caralho, menó… Se derramaram legal, uma linha atrás da outra, os paraíba ficou tudo como, com uns olho desse tamanho, se mordendo todo. Aí um dos pancados já começou ouvir barulho onde não tinha e nós rindo à vera. O Mano de Cinco, que é mó piada também, deu trela, cismou que era os polícia entocado na laje ali do lado, preparando pra dar o bote neles. Mano, os pará peidou na hora, saíram voado, descendo a laje. Foi muito engraçado! Eles andando lá embaixo na rua, tudo escaldado, se escondendo nos muro, com medo dos polícia brotar.

Operação mermo só teve quase uma semana depois, que foi até quando tiraram a vida do Jean. Sem neurose, gosto nem de lembrar, tu tá ligado, o menó era bom. Só queria saber de jogar o futebol dele, e jogava fácil! Até hoje vagabundo fala que era papo de virar profissional. Já tava na base do Madureira, logo iam acabar chamando ele pra um Flamengo, um Botafogo da vida. Pronto! Tava feito! Mó saudade daquele filho da puta, na moral. Até no enterro o viado tirou onda, tinha umas quatro namorada chorando junto com a mãe dele. Esses polícia é tudo covarde mermo, dando baque no feriado, com geral na rua, em tempo de acertar uma criança. Tem mais é que encher esses cu azul de bala. Papo reto.
Chegamo na praia com o sol estalando, várias novinha pegando uma cor com a rabeta pro alto, mó lazer. Saí voado pra água, mandando vários mergulho neurótico, furando as onda. A água tava gostosinha. Nem acreditei quando voltei e vi o bonde todo com mó cara de cu. O bagulho era que tinha uns cana ali parado, escoltando nós. Tava geral na intenção de apertar o baseado, e os cana ali. Esses polícia de praia é foda. Tem dia que eles fica sufocando legal. Eu acho que das duas uma: ou é tudo maconheiro querendo pegar a maconha dos outros pra fazer a cabeça, ou então é tudo traficante querendo vender a erva pra gringo, pros playboy, sei lá. Sei é que quando eu vejo cana querendo muito trabalhar fico logo bolado. Coisa boa num é!
Quando finalmente os filho da puta decidiu meter o pé, outro perrengue: ninguém tinha seda! Mó parada, né não, menó? Vários pulmão de aço no bagulho e nenhuma seda. Pior é que perdemos um tempão só pra decidir quem ia na missão de arrumar a roupa. Ninguém queria pedir pros maconheiro playboy lá da praia, tudo mandadão, cheio de marra. Quando eles tão sozinho, olha pra tu tipo que com medo, como se tu fosse sempre na intenção de roubar eles. Aí quando tão de bondão, eles olha tipo que como fosse juntar ni tu. É foda.

O Tico e o Poca Telha tentaram a sorte e não deu outra. Tinha dois menó ali perto de nós com mó cara de quem dá um dois. Desde que nós chegou que eles tava ostentando. Passava mate eles comprava, passava biscoito eles comprava, açaí comprava, sacolé comprava. Deviam tá mermo era numa larica neurótica. Eu já tinha palmeado pelo menos uns dois menózim que tavam escoltando eles, só no aguarde pra dar o bote. E eles lá, panguando, achando que o bagulho é Disneylândia. Sem contar os camuflado de trabalhador, que ficam só de olho em quem tá de malote, esperando a boa. O que me deixa mais puto é isso, menó. Tava os dois lá, de bobeira. Aí, quando chegou o Tico mais o Poca Telha pra pedir um bagulho pra eles, na humilde, ficaram de neurose, meio que protegendo a mochila, olhando em volta pra ver se num vinha polícia. Num fode! Tem mais é que ser roubado mermo, esses filho da puta. Não fosse minha mãe eu ia meter várias paradas na pista, sem neurose, só de raiva. Foda é que a coroa é neurótica. Ainda mais depois do bagulho que aconteceu com meu irmão. Ela sempre me manda o papo de que se eu for parar no Padre Severino ela nunca mais olha na minha cara. Bagulho é doido!
Num fosse eu pra desenrolar, nós tava fodido. Os menó ainda deram mais um rolé, mas não arrumaram nada. Só um sedanapo com o amigo da barraca que tava na intenção de dar um dois com nós. Foda é que ninguém mais quer saber de napo, bagulho agora é só smoking. Antigamente vagabundo fumava até na folha de caderno, no papel de pão. Agora é essa memeia. Ganhei pro calçadão e estourei a boa: arrumei foi uma da vermelha. Tu tá ligado que se apertar no talento dá até pra cortar no meio e fazer duas. Os menó ficaram de bobeira comigo.

Pior que foi tranquilão pra arrumar a seda, pedi pra um rasta que tava vendendo pulseira do reggae. Maluco responsa, me salvou até um cigarro! Me deu o papo pra ficar na atividade, que os verme tava de maldade naqueles dias. Mataram um boliviano na areia, aí os cana tava sufocando na praia, com medo de morrer mais gente, se pá até um morador ou um gringo, e aí ia dar merda braba, tá ligado? Manchete no jornal, Balanço Geral, esses caô.

Mas os verme tavam de bobeira no bagulho, não ia morrer mais ninguém ali não. Tava tranquilo, a parada tinha sido papo de cobrança e o maluco que passou o boliviano tinha dado até um tempo da praia. O rasta mandou ficar na atividade se fosse fazer qualquer correria, mas eu disse pra ele que tava de boa, só queria curtir mermo uma praia, fumar meu baseadinho na humilde. Ele falou pra eu não perder nunca minha fé em Deus. Era um maluco maneiro, o rasta. Cria lá do Maranhão, ele. Disse que a maconha lá é arregada, que geral fuma, que ele começou a fumar com dez anos, que nem eu.

Depois do baseado fiquei viajando, olhando as gaivota voando no céu. Quando batia o olho de frente com o sol, ficava tudo brilhando, mó marola. Quando não dava mais pra aguentar o calor, fui gastar minha onda na água. Foi a melhor parte: peguei vários jacaré bolado, ficava marolando rodando o corpo todo até a onda me deixar na areia. Depois ficamo geral disputando quem conseguia ficar mais tempo debaixo da água, mó perrengue! Só fumante no bagulho!

Mas a onda máxima foi quando nós tava já saindo da água: os playboy que fez miserinha de seda tavam tirando foto, pagando de divo no bagulho. Quando foram ver, não viram nada. Dois menó passou voado e levaram as mochila com tudo dentro. Depois se enfiaram no meio da praia lotada. Os play ficou de bucha, com o celular na mão, panguando. Aí passou mais um menó e levou o celular também. Achei foi bem feito pra deixar de ser otário. Eu e os menó rimo pra caralho da cara deles. Os comédia meteu o pé, levando só a canga. Depois fiquei pensando nos menózim que saíram no pinote. Os menó era tudo rataria, mas o rasta já tinha dado o papo que a praia tava lombrada. Fiquei torcendo pra eles não cair na mão dos verme, tá ligado?
Quando nós viu já era quase de noite. Uma larica que, sem neurose, era papo de quarenta mendigo mais vinte crente. Tava na hora de meter o pé. E foi aí que rolou o caô. Nós tava tranquilão andando, quase chegando no ponto já, aí escoltamos os canas dando dura nuns menó. A merda é que um dos cana viu nós também, dava nem pra voltar e pegar outra rua. Mas até então, mano, tava devendo nada a eles, flagrante tava todo na mente, terror nenhum. Seguimo em frente.

Quando nós tava quase passando pela fila que eles armaram com os menó de cara pro muro, o filho da puta manda nós encostar também. Aí veio com um papo de que quem tivesse sem dinheiro de passagem ia pra delegacia, quem tivesse com muito mais que o da passagem ia pra delegacia, quem tivesse sem identidade ia pra delegacia. Porra, meu sangue ferveu na hora, sem neurose. Pensei, tô fodido; até explicar pra coroa que focinho de porco não é tomada, ela já me engoliu na porrada.

Não pensei duas vez, larguei o chinelo lá mermo e saí voado. O cana gritou na hora que ia aplicar. Passei mal, papo reto, fui correndo com o cu na mão, queria nem olhar pra ver qual ia ser. Lembrei do meu irmão, de nós jogando golzinho na rua. Ele era sempre o mais rápido, era neurótico na corrida. Eu tava correndo quase que nem ele, no desespero. Quase chorei de raiva. Eu sei que o Luiz não era X9, meu irmão nunca que ia xisnovar ninguém, morreu foi de bucha, no lugar de um vacilão desses daí que o mundo tá cheio. Isso sempre me enche de ódio.

Meu corpo todo gelou, parecia que tava feito. Era minha vez. Minha coroa ia ficar sem filho nenhum, sozinha naquela casa. Mentalizei Seu Tranca Rua que protege minha avó, depois o Jesus das minhas tias. Eu não sei como conseguia correr, menó, papo reto, meu corpo todo parecia que tava travado, eu tava todo duro, tá ligado? Geral na rua me olhando. Virei a cara pra ver se ainda tava na mira do verme, mas ele já tinha dado as costas pra continuar revistando os menó. Passei batido!

Este conto foi retirado do livro:


Geovani Martins. O sol na cabeça

Nascido em Bangu, no Rio de Janeiro. Trabalhou como “homem-placa”, atendente de lanchonete, garçom em bufê infantil e barraca de praia. Em 2013 e 2015, participou das oficinas da Festa Literária das Periferias, a Flup. Seu novo livro, O sol na cabeça, já foi vendido para mais de nove países  


Com a estreia de Geovani Martins, a literatura brasileira encontra a voz de seu novo realismo. Nos treze contos de O sol na cabeça, deparamos com a infância e a adolescência de moradores de favelas – o prazer dos banhos de mar, das brincadeiras de rua, das paqueras e dos baseados –, moduladas pela violência e pela discriminação racial.

Fonte : Contém um conto / Companhia das Letras.

Sagui


  
Irene, cansada, cansada, como custa esforço não pensar em nada!, como custa afastar do pensamento a criança nos braços encarquilhados da velha naquele barraco fincado na lama, o papel amarelo com o resultado do exame, o médico falando, falando, falando, o tempo passando, passando, passando numa correria, quase todo dia já é segunda-feira, ir levar um dinheiro para a velha, ir saber se o remédio prometido chegou, pegar o pacote de camisinhas e ouvir a assistente social lhe dizer que mude de vida. Irene ri, amargo e torto, com uma banda só da boca para não deixar ver a falha dos dentes da outra banda, ainda que ninguém a veja agora, ainda que ninguém lhe olhe a cara de frente, nunca. Engraçada aquela assistente social, “deixe essa vida”, está certo, eu deixo essa vida, não me importo de tudo se acabar agorinha, que essa minha vida só tem uma porta, que dá pro cemitério, mas a senhora vai tomar conta do menino e da velha? Era bom, que Irene já quase nem consegue levar dinheiro toda semana, muitos homens não querem nada com camisinha, vão procurar outra, e ela não pode fazer como Anjinha, querendo passar a doença para todo o mundo, com ódio, Irene não, não pode fazer mal a nenhum vivente, nenhum, por causa do sagui, daquele aperto na boca do estômago cada vez que lembra. Já faz tanto tempo e aconteceu tão longe, mas quando pensa no sagui a agonia é hoje e aqui. A alegria quando Simão voltou da caçada, só com duas rolinhas que nem chegavam para dar gosto à farofa d’água mas com o mico dentro do bornal, tão pequeno que Irene também tão pequena podia segurá-lo com uma mão só, sentindo o calor e o tremor do corpinho doente, ai que vontade de chorar de dó!, dias e noites cuidando dele, enrolado num trapo, encostado ao peito dela, dando-lhe água de gota em gota com o bico de uma folhinha de laranjeira, pedacinhos de fruta, o sagui cada dia melhorando, já olhando e rindo para ela feito gente, agradecido, puxando-lhe os cabelos, ai como está ficando danado esse bichinho!, não tem juízo, querendo soltar-se, voltar pro mato, pra ficar outra vez doente e morrer?, não pode, não deixo, não largava o macaquinho nem um segundo, não fosse escapar para a capoeira. Que difícil viver assim fazendo tudo com uma só mão!, a outra mão agarrando o rabo do bicho, não entregava a ninguém, com medo de traição, fossem soltar, não confiava. “Essa menina vai ficar doente, vigia que magrinha está, não come nem dorme por mor desse sagui, larga disso, Irene, solta esse bicho, dorme!” Então Simão foi para a feira e trouxe uma correntinha fina, fez uma coleirinha macia de couro de cabrito, Irene agora podia dormir, brincar de roda pegada das duas mãos, normal, trepar nas mangueiras, com o sagui seguro na ponta da corrente atada ao pulso dela, ao pé da mesa, a um tronco de goiabeira. Não sabe como foi que se descuidou, só se lembra do susto, da correria, o sagui correndo, correndo, solto no terreiro, correndo, correndo danado em volta da casa, ela correndo, correndo atrás dele, tanto, tanto que já não podia respirar, zonza, zzzonza, zzzzzzonza, a correntinha solta serpenteando à sua frente, um último impulso, a correntinha ao alcance do pé, o salto, o pé de Irene pisando a corrente, o tranco da coleira no pescocinho fino, enforcando, o corpinho peludo arrefecendo entre as mãos dela, os olhos dele pedindo-lhe socorro, apagando-se, a dor de Irene, a culpa, a culpa dela que nunca mais passou, já faz tanto tempo!, até hoje... Para de pensar, mulher, pensa nada, pensa vazio como essa rua, pensa nos cotovelos doendo de estar assim apoiados na beira da janela, estou tão magra!, é da doença... Afasta-se da janela, atravessa o quarto, as tábuas bambas do assoalho, qualquer dia esse chão afunda e a terra me engole, o saguão vazio, ninguém, não há clientes, comeram e beberam demais, estão dormindo em seus esconderijos em algum lugar dessa imensa cidade abandonada, domingo à tarde tudo dorme, as outras mulheres todas dormem, só Irene não pode, espera a sorte de aparecer algum freguês, quem sabe, alguma coisa, amanhã é segunda-feira, o menino e a velha, arrasta os pés pelo chão de mármore encardido até a porta carcomida do casarão antes senhorial, depois cortiço, puteiro hoje, olha outra vez o mormaço da rua, tontura, apoia-se no portal e quando abre de novo os olhos vê o homem, vindo em sua direção, reanima-se, volta para o quarto para debruçar-se à janela, é mais romântico, eles gostam, abre a gaveta do criado-mudo em busca da camisinha... já não há nenhuma, como é que eu nem tinha visto? ah! que importa?, um só, só uma vez, só essa vez... não, nem hoje, nem uma vez. Irene fecha a janela, tranca a porta do quarto, deita-se no escuro mas não dorme, abraça de novo o sagui vivo nos braços magros.
Este conto foi retirado do livro:


Maria Valéria Rezende.in Modo de apanhar pássaros à mão

Fonte : contém um conto/ companhia das letras


"Ela disse ao coração do cantor
não cante/aos corvos
ela disse ao mar profundo
jazem/as brumas da ira
ela disse não cante /apenas diga
ao silêncio/que plante
aquela flor/
e rasgando a sombra/cuja mão
ela /esguia como um longo cravo
segurava/disse ao tempo/
não espantes/o sol com a tua dor"

Jussara Salazar

CÂNTICO DA SAGRAÇÃO DE UM NOME


Espírito do tempo
quando teu nome
for novamente pronunciado
sentirei amor por alguns e
quando o dia amanhecer
entre os escombros
sentirei o calor das patas úmidas
do animal que ronda
depois da tempestade
pisando
sobre o algodão que brotará da pele negra da terra
e sentirei amor por todos os lobos
que agora se ocultam
bebendo o leite deste estranho anoitecer
*
*
*
|_CÂNTICO DA SAGRAÇÃO DE UM NOME. o dia em que fui santa joana dos matadouros
JS

O FOGO


Por que não deixas as roupas ao sol
quarando ao vento?
Por que não libertas
os sapatos que repousavam
geométricos
embaixo da cama diária do tempo?
Por que levá-los à cova das cinzas
ao invés de semear
os passos que hão de vir
como algaravias de criança aos domingos
*
*
*
|_O FOGO. o dia em que fui santa joana dos matadouros

Jussara Salazar

A DIVISÃO DE CRISTO



Dividamos o mundo em duas partes iguais:
uma para portugueses, outra para espanhóis.
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das naus:
a metade morreu na viagem do oceano.
Dividamos o mundo entre as pátrias.
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das guerras:
a metade morreu nos campos de batalha.
Dividamos o mundo entre as máquinas:
Vêm quinhentos mil escravos no bojo das fábricas,
a metade morreu na escuridão, sem ar.
Não dividamos o mundo.
Dividamos Cristo:
todos ressuscitarão iguais.

(poema de Jorge de Lima, (1893/1953), do livro Tempo e Eternidade (1935) feito em parceria com Murilo Mendes sob o lema Restauremos a Poesia em Cristo.


Fonte : Rubens Jardim

Há duas luas chegamos
No vapor empoeirado pelo tempo
Um tempo que brilhava
Um tempo que escondia um futuro
Sobre as cartas
Sobre os dados
Esticamos o corpo para o tempo
Para a seda e a sede
Para o acaso
Dos devotos de são mallarmé
Com seus rostos de cera
Passam em marcha sob nossas janelas
Seguram círios lumes de fogo
[bebes deste vinho?]
Mas seus cavalos
No carrossel vermelho dos bárbaros
Esticam os focinhos
Avisam ao tempo
Em seu trote de patas lentas
Sua respiração zen
Cobertos por um manto de ramos verdes
E orvalho negro
Avisam num sussurro
Que essas luas
Que essas lutas
Apenas acabaram
Apenas começaram
*
*
JS

nada podemos fazer




● o ditador acorda so de cueca e de cueca se levanta - ●
● olha bem o quarto - vai ao criado - mudo - de cueca - ●
● carnes flacidas - andar lento - gordo - exausto - lento - ●
● pega a garrafa de conhaque - bebe o vasto copaço - ●
● anda pelo quarto limpo - de cueca frouxa - descalço - ●
● é certo - volta ao criado - mudo bebe outro copaço ●
● do velho conhaque grosseiro - q logo bem entorpece - ●

● vai pra sacada da janela - cueca frouxa - bebado - ●
● o povo q sempre espera - calado - calados dizem - ●
● aquele não pode ser nosso deus - como marionetes - ●
● enquanto isso o ditador se volta e vai ate o criado - ●
● mudo - enche o copaço - conhaque e bebe - não fica ●
● bebado como quer - o ditador não se embriaga mais - ●
● a cueca suja cai - serpente mole ao redor dos pes - ●

● em seguida como podemos ver - foi ate a cama - ●
● sob o travesseiro a armarmada ja espera e sabe - nu - ●
● vai ao criado - mudo - bebe outro copaço inutil e vasto ●
● do rude conhaque - vai ao meio do quarto - para - nu - ●
● coloca na boca o cano - do re volver - aponta certo - ●
● pro ceu da boca - fecha os olhos - sempre covarde - ●
● atira caindo pra tras como fruta bichada - podre ●

● podemos ver no teto como se alguem tivesse ●
● jogado nele uma boa torta quente de morangos ●
● silvestres - o ditador nu - a cueca junto aos pes presa ●
● numa unha imensa - é tudo muito claro como tudo ●
● aconteceu - desde a hora q o ditador acordou ate isso ●
● sem cabeça - como não ha duvida limpem tudotudo ●
● pra esperarmos o proximo ditador - não esqueçam ●

● de colocar a devida escuridão - o revolver liberto ●
● com o desejo claro da bala na boca do novissimo ●
● ditador - o conhaque sujo de solidão - a sacada - ●
● o patio com os bonecos - sem ninguem - o silencio ●
● do palacio - o vazio dos oficios das leis das horas ●
● inteiras do ditador - a falta de amigos - a inutilidade ●
● do poder - do dinheiro - a fria loucura sem dormir - ●

● cuidem logo - o proximo não demora - jamais - ●
● todos eles lutam pra chegar aqui - logo surgem ●
● como amontoado de ratazanas e escolhemos um - ●
● ele gargralha e leva mordidas dos outros - rapido ●
● ta aqui no quarto e tudo precisa ta afiado - ele ●
● prontamente toma o posto - o conhaque - vemos ●
● meses anos depois - a essencia ridicula do tirano ●

● aparecer assim como podemos ver em verdazul - ●
● sozinha - antieuclidiana - essa orquidea q se forma ●
● menti-rosa - ao redor do poder - os q vivem apenas ●
● pra cobrir o esterco do horror - a grande servidão ●
ALC

Afogamento




O calor me-fez mergulhar nas profundezas
do rio livro...
Sem saber nadar
comecei a me engasgar
com as difíceis palavras...
Com rimas, versos e prosas!
Foi quando percebi
que podia respirar,
entre uma e outra palavra...
Acalmei meus olhos plainando
nas páginas; comecei a nadar nas águas das letras!

Amaury Nogueira
Poeta Paranaense

Fiz novos óculos e desde então tenho a sensação de observar o mundo pela escotilha de um navio. A vendedora disse que devo esperar uma semana para me adaptar e que é preciso ter cuidado ao navegar de bicicleta por aí. Alguém já superou essa tonteira? Só tenho miopia mas parece que comprei lentes com labirintite.

Laura Erber

SINTAXE


numa lâmina de algodão
pedras árvores estradas
um céu grinaldas
numa lâmina de algodão
lembrança de morte
carpindo o chão
numa lâmina de algodão
o silêncio a palavra
um grão de sol
numa lâmina de algodão
estrelas negras
um rumo um mapa
numa lâmina de algodão
um sonho tecido
um tangido o nada
*
*
*

Jussara Salazar

VELHO CASARÃO AZUL




Velho casarão azul,
hoje no seu silêncio
leio os seus segredos
entranhados em suas tábuas
carcomidas e tristes.
Por seus cantos, tantas
promessas, tantas alegrias
tantas desilusões em
lágrimas derramadas....

Velho casarão azul,
nas suas águas sob o céu
velhas telhas, velhas poeiras
velhos ladrilhos gastos
velhas escadas de degraus cansados
velho sótão de fantasmas tristes,
velhas teias pelos beirais...

Velho casarão azul,
suas entranhas clareadas
pela luz das lamparinas
bordam crivos pelas paredes
iluminam retratos antigos e esquecidos
em cima de uma piano empoeirado...

Velho casarão azul,
de suas varandas floridas
onde os beija-flor faziam ninhos,
só um cacto espinhento e
velhas heras que serpenteiam
dando abrigo a passarada...

Velho casarão azul,
de sua alma de lavanda
dos lençóis de linho, das cortinas de renda
do cheiro de pão e vinho,das flores sobre a mesa
dos braços que me abraçavam, dos lábios que me beijavam
restou somente um divagar incerto
nos meus passos de criança
... e o eco das minhas risadas.


Luciah Lopez

transiente




aquele que acende a intimidade com a escrita

que ordena uma luz depois que se apaga o relâmpago

o da primeira hora, votiva, éter antes confundido ao facho e aos seus motores

e que agora difunde uma nova sinfonia de seres despertos, mudos

entre o sono e a névoa, o perfume e a névoa

o tingimento da voz, os resíduos; tudo coberto pela fina película de orvalho

o que se enche de cuidados, mas se sabe já fora de um mundo

e se derrama sobre a primeira mancha de oceano - à costa de um litoral sem lei

um movimento deflagrado, pueril, de alvoreceres e crimes

este um mundo findo, arcaico, miragem pós-mundo

o que cultivou da raiva o milagre, o que jogou a bomba e foi dormir

os fluidos que rondam os olhos, o olfato, os buracos todos

este sal de miasmas fecundos, este amor entre spartacus, pajés, espadachins

um vulto por entre as folhagens, o metal brilhando

deste escrever sem aparas, este ressuscitar da mulher que caminha em direção a si

(Autoria: Roberta Tostes Daniel)

COMO SE FÔSSEMOS UM SÓ



___________________ reinvente a vida
vem, adormeça em meus braços
antes que a noite acorde o dia
e o sol
brilhe a poesia presa nos meus olhos
(tão prestes a chorar mais uma vez.)

Onde estão as garças?! Voaram?

O céu é um silêncio pintado de azul
onde podemos desenhar todos os sonhos
até mesmo os mais secretos...

Tente mais uma vez, eu sei, você pode
e os meus braços
sentem a sua ausência e as minhas palavras
te buscam onde quer que você esteja
até o seu perfume ((ainda esta em mim))
e a musica que ouço agora
ainda diz versos que ouvi
da sua boca
antes de beijar a minha.

___________________reinvente a vida
só mais um pouco, por favor
eu não sei se vou aguentar muito tempo
antes de chorar essa solidão
que é tão sua e tão minha
como se fôssemos um só e a
sua dor, é minha também.

Estou aqui
bordando o tempo com poesias
enquanto espero que a vida
ressurja/fonte d'água viva em você
saciando a minha sede
de também existir___________por amor, existir!!


Luciah Lopez

Os vestidos



eram costurados à sombra dos cajueiros
entre pássaros e conjuros
na queda do sol ao entardecer. Feitos
de fios de sonho e ouro
por que arrancar o gesto das mãos
e as cantigas
que lavaram
as manchas do ingá maduro?
*
*
*
|_dos vestidos arrancados de um sonho
Jussara Salazar

SIMPLES CANÇÃO DA VISITANTE





Poderá ser pleno dia,
como funda noite morta:
baterá docemente ou
com estrondo à minha porta.

Bem mais do que à porta, ao peito
chegará a visitante.
Plena nitidez que emerge
de antiga sombra insinuante.

E pedirei: pouse suave,
exile toda a amargura
e em meu coração se deite
como fonte de ternura.

Que assim seja. E me console
de todos os sonhos meus,
quando, num último abraço,
soprar-me seu nome: Adeus...


 • Ruy Espinheira Filho

    Publicação original: in Babilônia & Outros Poemas (2017)


Tato




O muro é o aperto de mãos com o vizinho.
A fechadura é o piparote no ladrão.
Meu quarto é a mão que me faz carinho.
Aponta o caminho da rua o portão.

A sala de estar aplaude a visita.
Fuck-you para o sereno: contrato.
A janela faz figas por uma manhã bonita.
Minha casa, meus senhores, tem tato.


Cidadão das nuvens
Renato Silva

Skeleton against “Metaposition” penmanship sheet.




 Courtesy of BOND/360.

A MORTE DO POETA



A morte do poeta; o sonhador,
Em meio à dura e fria realidade,
Do etéreo, este banal navegador,
Que ao fim não deixará sequer saudade...

Cultiva no seu peito, o riso e a dor,
Buscando esta ilusão; eternidade.
“Poeta, com certeza um fingidor”
Transformando utopias em verdade.

Amante das espúrias ilusões,
Um vagabundo e tolo coração,
Um náufrago sedento de emoção,

Entregue muitas vezes aos leões,
Um cínico palhaço, um menestrel,
Que mesmo em pleno inferno encontra o Céu...

Marcos Loures 

Luz dos olhos



Sombras nadam pelas paredes
ocultando alimentos do meu semblante
cortante num fim de anzol em um azul qualquer
sem destino que acaba dentro de um xícara de café,
noite refinada, firmamento merecido.

Passam pessoas, algumas fascinantes
peço carona com roupas de palavras seladas
de contrabando insípido pela fronteira
com o coração empoeirado e o deserto vira
uma tempestade de impulsos que assumem o leme
enquanto abro a pagina da noite que brilha em brasas vigiadas.

Tempo leva tudo sem perguntar em progressivos círculos
disponíveis para a odisséia do esquecimento, mas uma coisa
é certa bebi todos os sucos, degustei todos os sabores da satisfação,
tempo danado avião no ar te usei e abusei, somos iguais demais.

Sou um expoente despejando neblina psicodélica,
venham nuvens, venham nuvens mais e mais
a cada piscadela marginal celebro a cartase com noção
de estar caminhando no obvio chão ou num vilarejo do céu
assim meio celestial e um tanto de bestial.

Aharon


Manguelândia



 - Para Lêdo Ivo.

Aqui não se vê vergonha.
A cara do povo é robalo,
Caranguejo, lodo, lama.
O sonho? Como sonhá-lo
Entre a terra decomposta
E o mar? Nunca só suponha
O tamanho da alegria

Das crianças a brincar
Com inverterbrados cães,
Brinquedos sujos de barro,
Cipós, garrafas de plástico,
Camaleão na cabeça,
Atração para os turistas.
Aqui vive a dor quem ama

O peixe fritado em posta,
As picadas dos mosquitos,
As moscas, mormaço, maré,
Camarão, chama-maré,
Lagosta, mexilhão, craca.
A vida apenas é o que é:

Caranguejo aratu, uçá,
Guaiamum... Tudo atolado
No arcabouço das raízes
Aéreas... Graça das garças
A ver o porvir ruir
Rente à predatória luz
Da esperança. O litoral

Biodiverso abriga o tempo
Da promessa, do progresso.
Aqui toda praça pública
É canoé. A luz elétrica
É o farol... De vez em quando
Deuses aparecem cá,
Além das mãos calejadas,

Feitos martins-pescadores.
Os moradores não choram
Pelo leite derramado,
Não cantam a vã vitória
Das sangrentas e sagradas
Guerras diárias... Seus prantos
São tais lágrimas crustáceas!

Adriano Nunes 

A RECRIAÇÃO DA MÁGICA




Quando olha o espaço
sabe da vertigem
nas músicas
em tom menor

dança sobre o nada
e a orquestra em cordas
o sustenta

a maciez da voz
o embala no gravador

o espaço permanece
na ocupação do corpo
ao término da música

o silêncio parte o vazio
onde se cala o corpo
sustenido.

(Pedro Du Bois, A RECRIAÇÃO DA MÁGICA, III, Edição do Autor)


A doce lira de Perséfone




A recusa da guia, em
Substantiva aporia.
Julgaria tardia a tenra
E salobra sangria.

Quando ali estrebuchava
Estrelas pela boca
A exercer a lágrima que
Escorria,
Pelas surdas paredes.

O sonho se dissolvia
No arquétipo em carniça
Tal espírito e ponte.

A julgar a problemática
Histórica da literatura.
Assim se satisfaria.

Porém, controle remoto
Empunhado, meus olhos
Queria.

Passei e fui aos topos
Das fendas dos abismos
No ser.

Ainda perguntam se quero
Preencher
Com dourados clichês.

Pisoteio amarguras com
Meus pés emoldurados pela ágil
Sabedoria universal.

Entabulo arestas rotas
Austeras trouxas às quais
Quiçá dignidade estética

Comisera significar.
ACM


Abismo nela



Como flor na tempestade
você ao cinza se contrapõe
a sagacidade dos teus olhos de menina
faz deixar o nó para um outro dia
refletido nas poças d'águas teus pés limpos
me pisam a alma cinza
ganha meu dia perdido
E eu te salvo em minuto de qualquer agonia
e quando o nevoeiro dessipar-se
amarre fitas vermelhas no cabelo



Redson Vitorino



Meia-noite para um sabiá



            (Luz é o copyright)

A efêmera frase feita,
Factual e sóbria, após
Nada gozar.

O ritmo fúnebre das páginas
Emprestadas destapam olhos
E inconscientes, mentes e faróis.
Pois desperto se foi, sol.

Ao pé da ágora que se
Instaura sem aura ou

Não sou.

Voo, vou, velejo aos ventos
E não ao mar.

Sói encontrar significado
No verbo conjugado
Regido, concordado
Em não se ufanar o
Escarlate pedantismo à
Luz de uma só aurora
De olhar.

Diria que elevava,
E reverberara, tal forma
Fosse par.

Com quantos dinheiros
Não iria
(Sim, bela Iria)
Assim me comprar.

Lembre-se desse nada
Que sou.

ACM

Um conto quase mínimo




O importante neste conto quase mínimo é que ele traga momentos muito breves de felicidade, para quem o lê e para quem o escreve. Pode ser assim. Um homem que, por circunstâncias de uma viagem de carro, deve passar a noite com sua cunhada numa pousada à beira de estrada, no interior de Minas. Ambos estão fatigados de uma longa viagem, de Goiânia, onde residem os pais dela – e ele estava lá justamente buscando um carro –, até o Rio, onde eles dois moram. Vêm se revezando na direção e agora é ele quem dirige. Estacionam o carro no pátio da pousada e, como são pessoas modernas, nem precisam dizer que dormirão no mesmo quarto, pois é tão natural isso, que esses quase parentes dividam um aposento. Como ela é mulher do seu irmão, seria impensável que os dois transassem, mas, para evitar qualquer mal-entendido, pediram duas camas de solteiro, embora estejam as duas camas lado a lado. E avisaram aos respectivos companheiros lá no Rio, pelos celulares, que haviam decidido passar a noite na estrada, pois estão cansados.
Quem vai primeiro no banheiro é ele, toma uma chuveirada rápida, com água morna, depois veste uma bermuda limpa, que trouxe numa sacola, uma camiseta sem mangas e vai deitar-se na cama que lhe cabe. Ela, ainda vestida, cruzou com ele em direção ao banheiro, tocou-lhe o braço com um dedo por um momento infinitesimal de tempo, à guisa de um cumprimento brincalhão.
O banho dela é mais demorado, pois lava a cabeça, livrando-se da poeira da estrada, depois usa o secador. Por uma pequena fresta da porta, ele a vê passando para lá e para cá, mas não dá para distinguir claramente nenhum detalhe de seu corpo. No entanto, pensa nela graciosa, como sempre pensou.
Pela mente do quarteto inteiro, os dois irmãos e as duas moças, já se passaram fantasias em que se trocam os parceiros. Apenas fantasias, pois não são modernos a esse ponto e também temiam o que poderia acontecer a partir daí. Nenhum dos dois foi fiel na vida aos respectivos companheiros, mas envolvendo outras pessoas que não irmãos ou cunhados, pois caso contrário a coisa poderia ser grave, talvez definitiva, cheia de culpa.
Mas ambos estão sentindo um prazer quase inocente com a intimidade que ora desfrutam. Porém, ele não quer embaraçá-la e cerra quase totalmente os olhos quando ela sai do banheiro enrolada numa toalha. No quarto quase escuro, pois há apenas uma luz baça que ficou acesa no banheiro, ela certifica-se de que os olhos dele estão fechados, como quem já dorme. E pega em sua maleta de viagem uma camiseta e uma calcinha, e só então tira a toalha do corpo. Depois vai ao banheiro e apaga a luz.
Agora está tudo imerso num breu tão negro que ela tem medo de tropeçar numa cadeira ou nas camas. Então vai à janela do quarto, visível apenas por frestas, e puxa a correia da cortina, deixando a janela um pouco aberta, para que não sintam calor à noite (ah, deve ser isso). Há algumas luzes no jardim da pousada, suficientes para iluminar um pouco o quarto e para que se projetem no corpo muito branco da mulher – através das frestas e da abertura na cortina – num leve balançar-se, folhas e galhos das árvores do jardim, enquanto se ouvem os ruídos de muitos insetos.
Com o coração a bater forte, o homem, com seus olhos entreabertos, vê a mulher nua, as folhas e os galhos se mexendo no corpo dela, numa espécie de caleidoscópio de sombras. É uma visão magnífica e o homem acaba por abrir inteiros os olhos.
Intuindo que está sendo espiada, ela olha diretamente para a cama, ele não mais disfarçando que a observa, mas depois ela finge que continua a olhar pela janela, de perfil. E sorri, como se fosse para ninguém em especial. E, em vez de vestir-se imediatamente, pois traz a camiseta e a calcinha nas mãos, ela se dá um pequeno tempo, para que ele a veja bem, inclusive de frente e de costas. Depois, com gestos muito sedutores e agora meio séria, começa a vestir-se vagarosamente, com uma sensualidade ainda maior do que se estivesse se despindo.
Ambos sabem que nada deverá acontecer entre eles e ela agora termina de se vestir e vai deitar-se na cama, cobrindo-se com um lençol. Não se dão nem boa-noite, pois, para todos os efeitos, já deviam estar dormindo. E de fato ela adormece logo, mas ele não. Conserva a imagem dela na mente e está muito excitado, mas seria detestável se se satisfizesse sozinho. Preferível continuar a pensar nela nua, cheia de folhas e galhos refletidos em seu corpo tão belo e magro: que ele sente como não menos que maravilhoso.
Na manhã seguinte, eles se vestem cada um a seu tempo, ele no banheiro, ela no quarto, tomam café juntos e seguem viagem. Jamais tocarão no que aconteceu àquela noite, claro, mas para a vida inteira compartilharão aquele segredo: que ela se deixou ver e ele a viu, por um breve tempo, que foi dos mais significativos na vida deles dois.
Quanto aos seus verdadeiros companheiros, terão sentido a desconfiança, quase a certeza, de que algo se passou entre eles àquela noite, mas sem saber o que ou como, exatamente. E, enquanto pensavam em probabilidades, logo após eles dois terem chegado, sentiram um enorme desejo de foder. E, após o almoço, entregaram-se loucamente a seus parceiros fixos.
O tempo passa e chegou o Natal. Houve uma festa de família e se deram presentes. Ela deu um livro para ele que, ao abri-lo, viu que era uma coletânea de poemas selecionados de John Keats, no original. E, com uma voz inocente, ela lhe disse, com um sorriso angelical: “Você deve conhecer aquele famoso verso de Keats, não: A thing of beauty is a joy for ever”?    

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