sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Caro Amigo

Caro amigo
Amigo raro
Na prosperidade
Na adversidade 
Amigo puro
Seguro fiador
Amigo na dor
Igualmente no favor
Jamais nos desampara
Será consolo
Tesouro precioso
Dádiva do céu. 
Luiz Romaguera Neto
Academia Paranaense de Letras.
Gazeta do Povo. 10/01/01.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

 

entre uma noite

e outra

um ligeiro fulgor:

esta é a vida

isto é tudo

que temos

e somos

 

por isso vamos dançar

ébrios da luz

dessa chama breve

que a vida

é este pouco

este quase nada

 

isto é tudo

e este tudo basta:

 

uma chama

um chamado

uma dança

de duas breves

borboletas

 

Otto Leopoldo Winck

 

quero me cortar

com gilete farpas lascas latas

e cacos de vidro

quero sangrar

chorar estrebuchar dançar

e grafar no muro mais sujo

teu santo nome em vão

quero viver morrer matar

me alistar na legião estrangeira

farcs hezbolah pkk

só pra aflorar

teu instinto maternal

e te ouvir gritar

meu bem meu bem

não vá

 

Otto Leopoldo Winck

EM RESUMO

 


 

O pouco que eu sabia me bastava,

meu sonho era maior do que o universo.

Eu, guri, com olhos jaboticaba,

pela janela, perseguia um verso.

 

As estrelas, ligando o pisca-pisca,

iam além da casa dorminhoca

e eu, como um frango, no quintal, que cisca

à cata de buracos de minhoca,

 

riscava o céu de coração aberto.

A via láctea acesa me dizia

em letras garrafais: VOCÊ ESTÁ CERTO!

No sonho, o que eu criava acontecia.

 

Foi do céu que meu coração caiu,

como uma bomba no meio do peito.

Nem sei como essa luz me consumiu,

eu, simples verbo sem nenhum sujeito.

 

Bem mais velho aprendi, eu era humano,

vinha de um cemitério de farsantes,

onde um coveiro-deus ia empilhando

as sobras dos meus sonhos delirantes.

 

Contra o silêncio cúmplice da raça,

eu quis gritar meu desespero eterno.

Botei a humanidade na carcaça

e, juntos, fomos todos para o inferno!

 

antonio thadeu wojciechowski

TEU NOME

 


 

Teu nome poderia ser Suzana

se não houvesse tantas

neuzas, solanges, beatrizes

santas

ou não-santas.

 

Teu nome poderia ser Silêncio,

se não doesse tanto.

 

Mas dói e no entanto eu canto e rimo

sono,

sino,

carne.

E rimos sem querer,

porque o instante existe e a canção é tudo e derramamos vinho no tapete.

 

Teu nome poderia não ser nada,

uma palavra que o vento esqueceu

de madrugada,

em algum velho banco de praça,

velho canto de bar

(lugar-comum, não é?).

 

Espelho, por que me olhas com meus olhos?

Infiel! Enquanto eu viro, tu me trais e envelheces.

Teu nome poderia ser... sei lá!

Ser, simplesmente ser.

Mas dói

e é triste acordar todos os dias

com a saudade de não-sei-o-quê.

 

(Olha, enquanto falávamos

a porta bateu com o vento

e o tempo passou

e passamos também.)

 

Teu nome poderia ser Saudade

porque este sol morreu

e em seu lugar

o luar não veio

e ficou em meus dedos somente

a leve sugestão de um seio.

 

Porém,

perdido vou me refazendo no caminho

e buscando aflito

a sina,

o sinal,

e o sentido

do teu nome.

 

Otto Leopoldo Winck

 

(Do "Flor de barro".)

ELEVADOR DE ALMAS

 


 

Esta noite aqueceu meus pensamentos,

não consegui dormir de tão contente.

Então sentei-me à mesa e calmamente

abri meu coração aos quatro ventos.

 

É nessas folhas soltas sobre a mesa

que o outono do poeta cai em versos.

Sei, meu mundo não é o dos espertos,

bato tambores com delicadeza.

 

Há em mim uma prece que me apressa

como se fosse o último minuto.

É a vida que tem pavio tão curto,

que vai eliminando o que não presta.

 

Meu velho e bom mau humor, meu cinismo,

fazem piadas da miséria humana.

Mas não rio mais dessa gente insana

com seus céus e ataques de estrelismo.

 

Os meus olhos estão nas coisas simples,

porque é nelas que tudo está escrito.

Não há pegadas nos passos seguintes

nem nas visões que elevo ao infinito!

 

antonio thadeu wojciechowski

 

Por que perturbamos

o fluxo dos dias

com nossas retinas

cheias de cobiça?

 

Melhor descansar

e esperar que o outono

leve enfim as folhas

do verão fanado

-- e nos acostume

ao sono sem sonhos

que em breve seremos.

 

Otto Leopoldo Winck

BEAT

 


 

entre a santidade

e a insanidade

não há mais que um vão

 

pois é: passei o Rubicão

 

sou agora

– totalmente perdido

e beatificado –

pura iluminação.

 

Otto Leopoldo Winck

EU NÃO SABIA

 


eu devia saber

o sol ia estar por cima da carne seca

e nada seria diferente

do que teria que ser

 

a minha alma vesga

indecente

não se contentaria com menos

eu devia saber

 

não foi a primeira vez

os detalhes, sim, os pequenos

subestimei-os talvez

pode ser, quem sabe?

 

eu devia saber

ela chegou falando a verdade

o importante é ser; não, ter

mas eu andava meio surdo

 

dela – aquilo era tudo pra mim

dela – a causa do meu surto

dela – a raiz ruim do jasmim

dela – esse ela e eu

 

carne, nervo, músculo, esperma

e o silêncio que veio viu e venceu

ficamos assim à espera

deitados, que em pé cansa

 

muitas luas depois

ainda havia dança

eu e ela, não os dois

eu devia saber

 

tentou me fazer compreender

que desse jeito não podia ser

mas era cedo demais para ver

o melhor de mim ainda ia nascer

 

antonio thadeu wojciechowski

NIETZSCHENEANO

 


As musas estão mortas

e o Espírito do Senhor já não me visita com a mesma regularidade.

Ando a esmo,

procurando o outro no mesmo

e o todo no nada.

Ainda resta

uma réstia de sol detrás dos últimos edifícios.

Mas é difícil virar a esquina, engolir a saliva

quando, morto o amor, não sobra nem raiva nem rima.

Mas quem sabe

se eu te visse sem blusa,

do grande caos que há em mim

nasceria

uma estrela bailarina.

 

Otto Leopoldo Winck

TEMPO SUJO

 


 

No Brasil, é agosto

o mais cruel dos meses.

Apesar do escândalo dos jasmins

e da solar promessa dos ipês,

a tarde virara uma noite de agudas estalactites.

Não ousei virar o rosto para trás,

pois não pode haver passado onde o futuro é um acinte.

As trombetas talvez soem álacres

diante do impropério de estar vivo. Rasguemos

as ilusões: o horizonte agora é outro.

Na esquina, um pedinte exibe as chagas e o sangue é vil e sujo como a vida. Volto para a casa,

anônimo de mim. Tornei-me enfim adulto.

(Sei que em algum lugar uma criança negra morre

com um tiro na cabeça.)

Não tenho adagas para me rebelar.

E a adega dos poemas está seca. Como os olhos.

Carlos, o tempo ainda não chegou de completa justiça.

O tempo ainda é de fezes, alucinações e golpes sujos.

 

Otto Leopoldo Winck

(De 'Cosmogonias')

TRABALHÓLATRA

 


É altamente efiiciente

Ficar doente nas férias

Nunca parar pra espirrar

Desobstrui minhas artérias

Nem descanso me dará encosto

Nenhum espelho para meu rosto

Estou a anos-extra da folga

Um simples cafezinho me droga

Deus não me ajuda, mesmo assim madrugo

O sétimo dia foi seu maior absurdo

 

(Antonio Thadeu Wojciechowski e Sergio Viralobos)

quinta-feira, 25 de junho de 2020

NEGRO FORRO



minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.
minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.

Adão Ventura


Os escombros caem da geometria
E tudo brilha aos pedaços.
São puras as letras do poema
E o caldo que me bebe é o escuro.
Sou aos pedaços, sou outro
E pouco caibo nas altitudes do homem.
Meu olho vela nas sombras.
Minha mágoa é pouca e tanta
Que pouco sobra em meus ossos.
Todo poeta se vê na agonia.
Todo poema é um relato de nada."
RR

RELENDO CLARO ENIGMA


                   
Fronte contra a pedra
se elabora
uma comum temperatura.
– O punho duro cava o peito:
ira?
Ou contenção madura?
Água ou suor, a pedra
inspira?
E tua fronte – chora?

Maria Ângela Alvim


Os menestréis do mundo são bem poucos.
Uns arrebentam arrebentam amores enlutados,
Outros se encantam nas paixões, já loucos."
RR

DE VASTA AÇÃO



Vai seiva secando
das selvas que ando
lanhando e lenhando
das caças em bandos
vou em debandando
as unhas e os voos
nos amplos dos campos
o peixe vai pondo
desovas no chão
dos côncavos quando
as águas bebendo
eu vou destes rios
e no mar urinando
ah tempo a sugar
o suco do sangue
que vem sua lama
secando nas almas
vai lua velando
com sua mortalha
um sol que me lanha
com suas navalhas.

Libério Neves 
#PVpoetas2020
fonte : Romélio Rômulo


Quem ama a casa secreta
Do meu olhar, pura nona
Sinfonia de poeta?"
RR

CANÇÃO DO EXÍLIO



Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
Obs.: Ao usar o mesmo título do conhecido poema de Gonçalves Dias, “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o Sabiá / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá”, Murilo Mendes, modernista, cita e parodia o poeta romântico.


Murilo Mendes


#PVpoetas2020
fonte : Romélio Rômulo

 [... O banzo da província
cedeu ao underground
xintoísta? Ou está
injetado nas estações
tubo?...] 

Tímida Babilônia, Ricardo Pozzo

OS MENINOS E EU



Os meninos empinavam pipas;
Eu, pássaros
Os meninos folheavam revistas de garotas nuas;
Eu assistia ao namoro dos sapos
Os meninos iam ao cine;
Euatravessava a pé o igarapé
Os meninos desenhavam piratas tesouros, navios;
Eu, a escafandrista solitária
Agora
Solidão nos devora
Em negros prédios
Meio à elite ignara
Os meninos vestem
Negro/desencanto
Seguem com cifras
Nas pupilas vítreas
Tão tristes os meninos
Reclusos, bebendo
O índice Dow Jones
Com café
Trocando de amantes
A cada inverno
A alma pesada os faz andar
Em cadência de elefante
Eu desenho gravuras
Teço minhas roupas
Escrevo poemas
Não atravesso
O vidro frio do templo moderno
- Shopping center –
Não atravesso
A porta de cedro
Do antigo templo
- Enquanto o Vaticano
Não doar aos pobres
Todo o ouro seu -
Vivo nas esferas
Desço ao chão
Para pisar águas dos igarapés
Adormeço
No berço-arraia
Que me embala/azul
No “mar / belo mar selvagem…”

Bárbara Lia

MACHADO DE ASSIS: OPRESSÃO, OBSTINAÇÃO, SUPERAÇÃO -- A MORTE NÃO O QUIS CRIANÇA



*
Ele nasceu com todas as pré-condições para dar errado na vida, para não ser nada na vida, para não ser notado, não ser visto nem admirado na vida.
Imagine alguém nascido assim: preto; pobre; descendente de escravos; pai preto e pobre, pintor de paredes; mãe lavadeira; morador de morro; com problemas nervosos; gago; epiléptico; sem estudo...
Imagine que a morte não o levou criança e ele  “escapou” com vida ao duro período ali do primeiro aos cinco anos.
Mas, como desgraça pouca é bobagem e atrás do pobre corre um bicho, sem contar que além da queda vem o coice, aos seis anos, a mãe morre.
Depois, morre a irmã.
Aos doze anos, morre o pai.
A madrasta e viúva, pobre, torna-se doceira em uma escola.
E o menino, órfão de mãe e pai, torna-se vendedor de doces na escola.
Nas “folgas”, o pequeno vendedor de doces, para ter alguma “educação”, espia as aulas ministradas para os estudantes.
Não fez curso superior.
Com tudo isso “contra”, essa pessoa escreve. Torna-se fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. 
Escreve muito. Escreve bem. Escreve excepcionalmente bem. Escreve em qualquer gênero. Contista, cronista, crítico literário, dramaturgo, folhetinista, jornalista, poeta e, sobretudo, romancista, romancista dos melhores  --  senão o melhor --  do Brasil. E o maior escritor negro de todos os tempos, na opinião mais do que abalizada de Harold Bloom (1930-2019), historiador literário, escritor, professor, crítico literário e jornalista norte-americano, dos mais respeitados do mundo.
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839. Nasceu hoje e renasce sempre, a todo instante, com estudos nacionais e internacionais sobre sua obra. Com publicação e republicação de seus livros no Brasil e no estrangeiro. Com citação de suas frases nas redes sociais, nos grupos digitais.
Falecido em 29 de setembro de 1908, na mesma cidade em que nasceu, Rio de Janeiro (RJ), Machado de Assis tornou-se exemplo de qualidade como escritor e de superação como pessoa.
Já escreveram, e continuam escrevendo, quase tudo sobre ele. Viraram de ponta-cabeça ele, seus livros e seus personagens.
Com menos de 70 anos de idade deixou uma vida que não morre...
...e uma morte que não se esquece...
Viva Machado de Assis.

EDMILSON SANCHES


A morte é tanta
Que no dia morto
Sai a visão, o tempo
Pouco visto
O olho não é olho, é só
Um quisto
Meu mundo é quando, o
Meu corpo é torto."
RR


Amedrontados avaliam que as manifestações das torcidas organizadas podem ser desculpa pra uma tentativa de Golpe. Quando se pretende um Golpe a desculpa aparece, qualquer que seja.
As populações do mundo vão pra rua e vão forte: pode ser na Grécia, França, Espanha, UK, EUA e outros. E o pau come.
A esta hora o valentão Trump, que disse ter cães matadores, está escondido sabe-se lá em que ponto da Casa Branca."
RR

NO ALVO



os dados
da roleta rolam
no sentido inverso
da lógica anti-horário
há uma idiossincrasia
no vulto dessa engenharia
de ressignificações
embaralham-se as cartas
entre ágeis trapaças:
o feitiço enfeitiça o feiticeiro
não há punhos nem cartolas
a desafiar a matemática
desse cassino de signos
sinais do caos no tao do cosmos
uma catastrófica manhã
de sangue respingado
no linho do terno extremado 
façam seus jogos, senhores,
a aposta posta à prova
o mestre de cerimônia
com sua gravata de fuzis
será alvejado na testa
o jogo é suicida
o tiro, certeiro
Luis Turiba, 20.06.2020


SONETO METÁLICO(Para Timon)



Na margem esquerda do Parnaíba
Nascida da Vila de Flores
Uma terra de gente aguerrida
Que aos ancestrais canta louvores
Defronte à capital do Piauí
De onde vemos o sol levantar
E a Lua nascer a sorrir
Vivemos a lhe contemplar
A Ponte Metálica onde passa o trem
Que se arrasta na estrada que vem lá da ilha
Além da passagem,  nos faz grande bem
O apito da locomotiva dita o tom
Unindo os Estados na mesma família
Ligando Teresina à nossa amada Timon.


 Soneto(Lucas Stefano, em Timon, 08/06/2020)



AREIA



Da estátua de areia,
nada restará,
depois da maré cheia.

Helena Kolody


Áspero rancor, onde eu espero
na estrada final da agonia
minha gana de morte. Eu só iria
ter este som no sangue, onde te quero."
RR
Romério Rômulo


Áspero rancor, onde eu espero
na estrada final da agonia
minha gana de morte. Eu só iria
ter este som no sangue, onde te quero."
RR

Tropicanalizado




Deixar de falar em inglês, para começar, por uma semana, nem a palavra wifi que soletrarei como pífia ao não bem  fluturar num ar de pífanos
Transformando-a em português oxigenado, num átimo, em vivificação
Comer muitas bananas muito loucamente, ananizar
Me espanejar de bananas
Me untar, melar-me o pau de bananas amassadas, unguento, lambuzando de melancia celeste o resto do corpo
Mergulhar com a cara num explodido abacaxi
Com as próprias mãos de comer de enfiar nas frutas
Não usar mais talher
Comer com as mãos e a boca de mar ostras imensas na mais distante vila caiçara do litoral de são Paulo
Mergulhado nos sabores e tremores dos tensos frutos densos da Serra do mar
Em sabores novos com leite de torvelinho novinho não mais me envenenar
Nem gritar palavras dos outros, das águas dos cocos beber sem final
Com a língua saborear canção dos sabores sem fim
Com goiabas me ajuntar na areia da praia com todos os abacates
Numa festa de entonações comportamentais inesperadas
E comer sem parar as jabuticabas ancestrais já dentro do mar e mergulhando para me refrescar da pimenta brava mais doce, de alturas cósmicas desconhecidas, depois cantar na praia uma novíssima canção guarani com gosto de fruta ainda mais nova e superpostamente
Ainda mais tenazmente, viva
Só falar tupinambá
Tupi estelar, sementes iluminadas transsilabares
Com vozes da África
Do céu noturno sideral
Cintilando em meus colares
Suas luzes frugíveras
Seu mel inconquistável
Imelginação?
A partir dessa semana só luz,
noites estreladas
Nunca mais vou falar qualquer palavra inglesa, encheu, enjoou, impregnou, nada agora fora do nheengatu
Vou me esborrachar em mamões como um gato maracajá
Voltando a ser o pajé de uma aldeia remota
Depois de numa clareira sombreada me refestelar no carnaval pastoso de todas as frutas
Me alisar com a polpa doce dos melões, untar-me com a completa mente-bruma de sucos do ambiente
Vou me irmanar com as atas, me lambuzar delas, para fugir das palavras em inglês
Com milho para mastigar nas praias da montanha do mar
Em festivais de fogueiras alegres
E nômades viagens pelo mar em flautas-canoas à ilha coberta de matas com olhos de cachoeira do sol-com-atabaques saindo do nevoeiro
Mandiocas voadoras em caçarolas de argilas primevas loucas
Flutuando intergalácticas sobre o mar da floresta atlântica
Girando cada vez mais ultrarrápidas girando até o fulgor.
Tapiocarei, frugívoro, para esquecer para sempre William Shakespeare
Num marítimo pomar nu esporrando sucos de eternos frutos tropicais


Poema de Carlos Emílio Corrêa Lima
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terça-feira, 9 de junho de 2020


a mosca azul não era sorte
era o abutre sobre o teu cadáver
de que me adiantam as janelas
se velo o féretro que me escampa

só me resta do caixão fechar a tampa

a trampa tácita da tua partida
um dia cinza pós apocalíptico
aqui o que me resta é a paz do rito
a tua alma que paira empoleirada

& eu que me deito e medito neste nada

William Teca


as horas




● ?posso te pedir uma coisa ●
● a escuridão ta doida demais com tudo isso ●
● esteiras de tanque passos tiros gritos silencios ●
● nos furam como espinhos de cactos secos ●
● temos bastante vinho o q conversar e recordar ●
● temos ideias do nosso horror e devemos calar ●
● ?posso te pedir q fique comigo so agora ●

● nada podemos ver alem das vidraças ●
● mas com certeza ha mortos em todos os lados ●
● ha paredes desabadas casas destruidas ●
● fogo grosseiro em tudo q nos rodeia e esmaga ●
● temos pão temos vinho queijos e ovos duros ●
● ate musica se bem q devamos fazer silencio ●
● ?posso te pedir q fique comigo essa noite ●

● sim recitaremos no escuro o canto 8 12 e 34 ●
● no q nosso mundo se transtornou e nos rasga ●
● eu bem docemente no teu ouvido como se fosse ●
● pra ser assim mesmo não sendo aquela beleza ●
● q nos exaltava na luz do sol e cheiro de mangue ●
● so não posso falar alto nem podemos rir não ●
● ?posso te pedir q fique comigo nessa vereda ●

● ouve a historia de bal shem q invocava deus ●
● morrendo disse o lugar e como arder a madeira ●
● como orar e deus viria e a segunda geração ●
● esqueceu o fogo a terceira esqueceu o lugar ●
● na quarta geração ninguem lembrava nada ●
● ninguem jamais viu deus nem mesmo bal shem ●
● ?posso te pedir q fique comigo nessa solidão ●

● vc ja sabe q não voltaremos as estrelas a morte ●
● essa sim sabe dançar sabe cantar e se alegrar ●
● sabe tudo q esquecemos tudo q nem sabemos ●
● se fomos um dia e apenas sonhamos q sim ●
● sabendo q esse sim não basta e rosnamos sim ●
● vc sabe no q nos tornamos eu choro sossozinha ●
● ?posso te pedir q fique comigo de mãos dadas ●

● a calma vem como laminas polidas pelo tempo ●
● se não fossem as vidraças ja tariamos fatiados ●
● sem esse piano praonde olhamos imaginando ●
● todas as nossas musicas sem poder tocar ●
● alem do vinho temos conhaque rum whisky ●
● gim com aguatonica gelo e limão verdamarelo ●
● ?posso te pedir q fique comigo inda vivo ●

● sente o vento q não nos toca ele passassim ●
● como um cavalo sem cabeça e esqueletos ●
● de rebeldes esqueletos de mulheres e crianças ●
● de pobres e gays negros torrados em postes ●
● todos queimados tentando sonhar nesse odio ●
● tudo q não é nada tudo q nunca pudemos ser ●
● ?posso te pedir q fique comigo sem querer ●

● ha leite farinha de trigo assucar e passas ●
● podemos fazer um bolodepassas fazer cafe ●
● fatiar o bolo pronto e comer com goles de cafe ●
● so nos olhando sem pensar em nada la de fora ●
● nos olhando comendo bolo de passas com cafe ●
● a conversa faz o tempo passar isso é bom ●
● ?posso te pedir q fique comigo nesse inverno ●

● pega os primeiros figos deste ano perverso ●
● sente as gotas escorrerem depois da dentada ●
● as sementes sob a lingua a carne doce do figo ●
● descendo pela garganta a alegria da vida a vida ●
● a vida plena a vida q inda resiste apesar de tudo ●
● sempre apesar e continuam figos eis a vida sim ●
● ?posso te pedir q fique comigo lutando sempre ●

● ha pas e martelos picaretas e carrinhos de mão ●
● podemos cavar no porão a covardia e o medo ●
● criar aqui embaixo um labirinto sem minotauro ●
● criar depois de muito cavar paz e leveza sim ●
● mesmo sabendo q isso é impossivel eu sei sim ●
● mas la fora ta tão escuro tão brutal e insano ●
● ?posso te pedir q fique comigo mesmo vc morto ●

*

postado  no face e no meu blog de Alberto Lins Caldas  em 21 de julho de 2019.

para Íris Luíz q o encontrou enterrado e Ursula q o tornou um momento de vida e respiração, obrigado.




BEM NO FUNDO



Paulo Leminski

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

TO BE OR NOT TO BE (a questão não é essa)



...ultra polarizado, "o país" se divide entre "quem é" e "quem não é", seja comunista, fascista, pacifista, de esquerda, de direita, socialista, neutro, contra, a favor, em cima do muro,gay, homofóbico, sindicalista, vilão, mocinho, honesto, corrupto, querido, amaldiçoado, canalha, pelego, desempregado, etc...
..."o público" e "o privado" não se dividem entre o "civil" e o "militar", uma vez que, ambos, associados ou separados, unificam-se na composição do "Estado", que também possui suas divisões conceituais - no nosso caso, somos uma "República Federativa", sem parlamentarismo e com mais ministros do que ministérios (algumas secretarias tem caráter de ministeriável e, até igrejas também chamam de ministro seus pastores)
...a charada, que podemos atribuir conceitualmente tanto à Kant quanto à Wittgenstein, impõe suas alternativas lógicas a favor do negativismo, quando "a nação" que institui "o Estado" é dividida pelo vetor ideológico simplista em 3 espaços adjacentes, nem sempre radicalmente excludentes (caso dos poderes executivos, judiciários e legislativos)...
...nem sempre consecutivos, embora se proponham colaborativos, esses 3 poderes interagem em questões comuns da "vida pública" que afetem a "vida privada".
...dois desses "poderes" possuem suas subdivisões (o Legislativo tem duas casas e o Judiciário, instâncias hierárquicas definidas no "status" de Tribunais, havendo até um Tribunal exclusivo para casos fora da esfera "civil"), e o Executivo, com a hierarquia do Vice, apesar de sua "unidade vocativa", requer observação rígida sobre seus atos, é passível de interpelação pelos outros poderes que o sustentam à luz e orientação dos artigos constitucionais...
...a charada torna-se complexa e inexpugnável quando os poderes concentrados no "Estado" não se complementam em relação às demandas oferecidas pelas questões "públicas" nem se suplementam na ordenação, disciplinar ou regulatória, das questões "privadas"; sendo que, em ambos os casos, os posicionamentos autoritários, nem sempre passíveis de serem carimbados com o selo de "ditadura", não beneficiam nem resolvem as questões que são próprios ao funcionamento de uma sociedade livre e acabam por gerar conflitos com consequências imprevisíveis, sendo que as mais prováveis são a ruptura harmônica do bem-estar social, separando "o estado" da "Nação", e a indiferenciação do "Estado" e do "País", cujos resultados são o "caos institucional" e a precipitação de medidas de exceção que podem ser "revolucionárias" ou "reformistas"...
...ao cidadão, seja ele chamado de "comum" ou não (teoricamente, todos o são ou deveriam ser), as charadas políticas oferecem insegurança em todos os níveis, quando suas soluções promovem paradoxos, cuja latência é capaz de provocar paradoxos, como o que estamos a vivenciar, tanto no Brasil quanto no resto do mundo: a eclosão de um  anarquismo de extrema-direita!
...a intromissão da pandemia do Corona Virus nos estatutos consuetudinários da civilização veio a desestabilizar o conjunto, não só no território dedicado às políticas públicas; como também, nos ambientes domésticos da vida privada.
...cada "país", de acordo com o modus operandi de seu "Estado", tem oferecido o suporte que lhe é possível à "Nação"; assim como cada "Nação", tem demandado à seus "Estados", atenção e medidas públicas que mantenham "o País" controlado, diante dos desafios que um "gene virótico" invisível e impiedoso.
...voltamos à charada inicial, instalamos seu "é o não é?" (uma variação "axiológica" do hamletiano "to be or not to be") no perímetro do "país" chamado de Brasil e observamos que, em seu potencial ideológico, a "Nação" que hospeda, de forma inequivocamente democrática, o "Estado" que a governa, ao invés de estar sendo exposta a uma solução, tem que lidar com um paradoxo excessivamente complexo para sua capacidade de compreender a questão e, com método e participação voluntária, colaborar para uma resposta eficaz do problema ... fora o fato de que o modelo "nacional" oferecido, discorda e vai n contramão de todas as orientações "internacionais", oferecidas por um organismo suprapartidário que, imagina-se, formado por pessoas com excelente nível técnico.
...nossa charada, não é de hoje, tem se tornado um paradoxo que desafia tanto à ciência quanto à religião:
- quanto à polaridade, você é alguma coisa, desde que identifica que outra pessoa seja outra, o que inverte o sentido "ético" da oferta, posto que você depende que o "outro" seja alguma coisa que você "não é, para você ser o que "é"..
...o resultado desta posição narcisista é que você não oferece ao "outro" a escolha de aceitá-lo como você "é"; mas insere uma identidade negativa no "outro" para tornar afirmativa a sua própria identidade - o que, mais cedo ou mais tarde, comprometerá sua saúde mental de modo tão irreversível que nem a tríplice ferramenta "moral" da "culpa-arrependimento-perdão" que norteia a justiça...
...o paradoxo político deste anárquico jogo, em que "escravos de Jó não jogam mais caxangá", mas um "pique-esconde", em que todos se escondem ao procurarem qualquer um, possui uma equação matemática que demanda conhecimentos de álgebra linear (tabuada aritmética não consegue fechar a conta) e profundo conhecimento de algoritmos trigonométricos:
- aqui "quem é" e "quem não é", seja o que for ou deva ser, tem como regra pétrea o trato coletivo de que os "que são o que são" ou acreditam ser, dependem dos que "não são" continuarem a "ser o que "são" ... ou seja, você só "é quem você é" se existirem outros que "não sejam como você é" e a sua vontade deve permanecer num nível superior e inquestionável, cada vez que você proceder a identificação do "outro".
...tudo isso fica cada vez mais impraticável quando você perceber que você identifica que "você é" alguém (que tem outro nome, outra vida e outros afazeres que não são para o seu bico) que outra pessoa "não é" e que existam outras pessoas que "são" como você "é" - não para espantar a solidão, mas para saber que as pessoas que "são" como você acredita que "é", são outras pessoas, que "devem ser" diferentes daquelas que você determinou que não "são" e, para fechar a "prova dos nove", também devem acreditar que "são coo você" quando identificam outras pessoas que "não são"
...era uma vez, um "país" em que o verbo SER foi tirado da língua que a "nação" inteira falava ... um "país" em que ninguém escolhia quem seria o presidente, enquanto chefe do "Estado".
...neste "país" imaginário e tão distópico como uma utopia sem metafísica e sem dialética, a "nação" escolhia o "Estado" que o presidente deveria governar.
...há quem diga que este "país" era democrático e quem dissesse que, apesar disto, a "nação" não era...
...até hoje, não se sabe se, durante as eleições deste "país", ao darem seu voto, os eleitores continuavam a ter propriedade sobre ele
...como diria William Shakespeare, na primeira fala da peça "A Noite dos Reis", cujo título original em inglês era "Twelfth Night, Or What You Will" e ainda precisa de uma melhor tradução Thereza Rocque da Motta e Antonio Thadeu Wojciechowski (copiada por Francelino Pereira e Renato Russo) e onde tudo que era poderia não ser:
"– Que país é esse?"

NEGAÇÃO IRRESTRITA


vire teu rosto assim que me vir
quebre a esquina em pedaços
não há teu lugar em meus abraços
teus pregos e facas me fizeram faquir
mantenho distância do teu porvir
não ouso ocupar os mesmos espaços
faço a pista e apago todos os traços
nunca mais vou estar onde você tem que ir
antonio thadeu wojciechowski

MULHER DE SARGENTO



Nunca tive um marido
Tinha um cachorro
Que latia e mordia
Nunca tive um periquito
Meu canário belga era paraguaio
Mesmo assim eu levava no bico
Penso nisto enquanto da escada caio
Antonio Thadeu Wojciechowski e Sergio Viralobos



de tudo
alguma coisa fica
alguma vai
quem me dera
ter tua pica
meu pai
Paulo Leminski
Inédito
Poema feito no meio de uma conversa entre Leminski e Antonio Thadeu Wojciechovski

quinta-feira, 21 de maio de 2020


Foi quando eu abri a janela
e entendi que a noite acabara.
Da madrugada só restara
a prata velha do orvalho
no mato antigo da estrada.
E um vulto escuro contra o dia
que, incontestável, surgia.
Era o passado? Era o futuro?
Não sei. Só sei que quanto mais
o fitava, mais o perdia.

Otto Leopoldo Winck

Senhor


by Jamil Snege

Hoje amanheci insatisfeito.
O pão estava amargo
e até o jornal que leio
todos os dias me pareceu de
uma insipidez atroz.
De repente, Senhor, lembrei-me
dos que não lêem jornais -
mas os usam para embrulhar
restos de pão que os paladares
amargos deixam no prato
após uma noite insatisfeita.
Como deve ser delicioso
esse pão, Senhor,
depois que tu o adoças com
tua própria boca!
Às vezes lamento minha
má sorte - e o que me espera
em seguida é um dia luminoso.
Às vezes bendigo minha
fortuna - e logo após um
furacão desaba sobre minha cabeça.
Brincas comigo, Senhor?
Ou será que devo lamentar
a minha fortuna e bendizer
a má sorte como se o avesso
e o direito fossem iguais
para ti?
Quando eu era pequeno,
topava contigo a cada instante.
Adolescente, passei
a encontrar-te cada vez menos.
Adulto, duvidei que
algum dia tivesse visto o
brilho de tua face e
te busquei incessantemente
por todos os caminhos.
Não te encontrei,
Senhor, nem poderia.
O piolho que segue na juba
do leão jamais terá
consciência de que possui um
leão inteiro.
Tenho procurado por
todos os meios me destacar
dos demais.
É minha a intervenção mais
inteligente, o lance
intelectual mais audaz.
Procuro as luzes do palco
com o mesmo fervor
com que o peregrino procura
a tua face.
Que tolice, Senhor.
Dentro de alguns anos, numa
tumba escura, que
artifícios usarei para
chamar a atenção sobre o meu
pobre crânio descarnado?
Para onde vai o canto,
depois que os
lábios se fecham?
Para onde vai a prece,
depois que o coração silencia?
E os rostos que amamos
para onde vão, senhor,
depois que nossas
pupilas se transformam
em gotas de lama?
Ontem vi uma andorinha
que devia ter uns
cinco milhões de anos.
Será que eu também
sobreviverei
ao que restar de mim?
Quando menino, nascido
serra acima, o que
mais eu desejava era o mar.
Eu queria apenas o mar
a mais nada - para nele
desfraldar meus
sonhos marinheiros.
Fui crescendo e ampliando
meus desejos.
Uma casa junto ao mar,
um barco a motor, festas,
empregados, piscina.
Obtive tudo isso, Senhor.
Mas aí então o mar dentro de
mim já havia secado
Não sou melhor que
uma pedra, uma folha,
a madeira de uma ponte,
o pó das estradas.
Sou apenas mais frágil,
Senhor, pisa-me com carinho.
Na minha infância, havia
um jogo que consistia
em se colocar um porquinho-da-índia
no interior de um círculo
formado por
casinholas numeradas.
Vencia aquele cuja
aposta correspondesse ao
número do esconderijo
escolhido pelo animalzinho.
Nunca mais vi esse jogo,
Senhor, mas eu sei que
alguns religiosos continuam
a praticá-lo contigo.
Cercam-te com suas
igrejas almiscaradas -
e correm a vendar apostas
aos seus fiéis.
A última tentativa
de me entrevistar contigo
foi um grande fracasso.
Acendi incensos, decorei com flores
- e nada de ti, Senhor.
Amanheci frustrado e
fatigado como se dançasse
a noite inteira nos infernos.
Resolvi então fazer
tudo ao contrário: dancei,
me embriaguei, libertei
fantasmas, invoquei
demônios.
Tive um sono embalado
por anjos em doces paragens
celestiais.
És sempre assim, Senhor?
Imprevisível? Desconcertante?
O velho índio foi encontrado
vagando pela floresta,
aparentemente perdido.
Perguntaram-lhe. Respondeu
cheio de brios: "Perdi
foi minha casa; não consigo
encontrá-la".
Quanta lição, Senhor.
O homem pode perder sua casa,
sua rua, os rostos que
ama - sem jamais se perder
de si mesmo.
Um dia tu serás demonstrado
cientificamente,
como o eletromagnetismo e
a gravitação universal.
Professores te reproduzirão
em laboratório,
crianças enfeitarão com tua
fórmula suas mochilas
e os grafiteiros rabiscarão
teu princípio pelos muros
da cidade.
Nesse dia, Senhor, alguém
estará restabelecendo
teu mistério... à luz
de uma vela, numa galáxia
bem distante.
Ontem não fui solicitado
como gostaria de ser.
Ninguém me pediu conselhos,
ninguém fez caso
de minhas opiniões -
até pareceu que o mundo
e as pessoas poderiam viver
bem melhor sem mim.
Sensação terrível, Senhor.
E pensar que já passei
dias e meses da minha vida
infligindo idêntico
tratamento a ti...
Não ouças qualquer
juízo que eu faça sobre
meu semelhante.
Amordaça-me.
Corta minha língua.
A pessoa que acusei
de furtar minhas luvas
não tinha mãos.
Ontem vi um jovem preso
a uma cadeira de rodas.
Mãos, pernas, tronco -
imobilizados numa rigidez
de pedra.
De vivo apenas seu olhar -
atento, vigilante,
como se contemplasse tudo
das alturas.
Que expressão, Senhor,
que força poderosa...
Tua puseste todos os seus
músculos ali.
Tenho pensado ultimamente
em comprar um carro novo.
Trabalho com afinco,
faço tudo o que devo fazer,
mas nunca me sobra dinheiro.
Outro dia, fazendo
minhas contas, cheguei a
botar a culpa em ti: "Deus
não tem me ajudado".
Que vergonha, Senhor.
Tantos homens trabalharam
com afinco a vida toda,
fizeram tudo
o que podiam fazer,
e jamais te pediram sequer
a passagem do ônibus...
Dois meninos, magrinhos,
irmãos, aproximam-se
do balcão de pães.
Escolhem um bem pequeno -
o que pode comprar a moeda
que um deles guarda no
côncavo da mão.
Saem os dois com seu
pãozinho - uma fome tão
antiga, entre acrílicos
e colesteróis.
Eu gostaria de ajudar
todas as crianças pobres,
carentes, desnutridas.
Gostaria, Senhor...
mas tenho a alma fatigada
de proteínas.
Ontem, por uma fraqueza
de caráter, resolvi
separar as pessoas de meu
convívio em dois blocos distintos
- os bons e os maus.
Que terrível, Senhor.
Depois de muito ajuizar,
os bons me fitavam com
expressões demoníacas
enquanto os maus, todos,
me exibiam a tua face.
Um homem mata outro e
tu o consentes.
O perverso agride o inocente
e tu não o fulminas.
O poderoso humilha o fraco
e tu aumentas-lhe o poder.
Que Deus és tu,
Senhor, que tudo podes
e tudo permites?
Que deus extermina órfãos
e ilumina a face dos
tiranos com os carmins
da longevidade?
Não respondas, Senhor,
não digas nada.
É esse mistério que me atrai
irremediavelmente a ti.
Toma a máquina do meu
corpo e nela
transporta socorro para
os teus aflitos.
É de pouca serventia,
Sei - o coração me arde,
meus músculos estão
fracos - mas podes
usá-la à exaustão.
E quando não mais prestar,
Senhor, escolhe uma tíbia
e faze uma flauta.
Hoje sairei à caça de lucros,
exatamente como o faço
todos os dias.
Tentarei ser o mais astuto,
o mais sagaz, e a terra
tremerá sob meus pés.
No entanto, Senhor, vai
comigo um menino magrinho,
olhos distraídos, que
não consegue entender por
que meus interesses
são mais importantes que
as nuvens e as borboletas.
Conserva-o assim, Senhor.
Mesmo que ele me atrapalhe,
mesmo que
me obrigue a ceder
no momento em
que preciso ser duro e inflexível,
conserva-o comigo.
E se um de nós não voltar,
Senhor, que seja eu - não ele.
Posso viver bem melhor
sem mim.
Já inspecionei a proa,
amarrei a carga,
desatei a vela.
O vento sopra forte e
enfuna meu coração de alegria.
Agora é contigo, Senhor.
Toma o leme e risca
o rumo do meu barco - não
penses que irei por
este mar sozinho.




[chovia naquela noite quase na esquina
eu caminhando só o aperto na garganta
um filme classe bê dos anos cinqüenta
a rua asfaltada e de iluminação fraca
o aperto na garganta eu caminhando só]


 © Sérgio Rubens Sossélla

INSCRITURAS



Inscrevo estrelas
na córnea dos teus olhos
insones. Carruagens
de fogo nos desnudam.
A vida ora é azul
como brisa,
ora escura,
como blues.
Se corto meu pulso
o que escorre é a nostalgia
de uma era em que tudo era crível.
Todas as estradas do mundo
são insuficientes
para o anelo de meus pés descalços.
Acorda, olha lá fora:
é dia mas uma lua de sangue,
enorme,
derrama seu mênstruo
sobre a cidade.
Inscrevo cometas
na sola dos teus pés cansados.
Depois os apago
com o sal de minhas lágrimas.
A vida é qualquer coisa assim
entre um conto
e um assombro.
Otto Leopoldo Winck

PERSISTÊNCIA



A minha voz
– folha seca, passarinho –,
voando na voragem vã do vento,
quer repouso,
quer silêncio.
A minha voz quer ser pedra
(no meio de todos os caminhos),
quer ser bronze, raiz, altar, cimento,
mesmo sendo tolice,
mesmo sabendo que será pó do mesmo jeito.
É por isso que ela,
cansada no ar,
no vento
e no céu,
cai
de
boca
e
sangra
– na superfície branca do papel.
Otto Leopoldo Winck
(Outro poema dos meus 18 anos, do livro "Flor de barro", encontrável só nos sebos.)

A noite dos vivos



 (Bárbara Lia)

O homem sem sapatos trajando bermuda bege sobe na lateral do chafariz e conversa com o cavalo. Espero o amigo, anoitece. A lua crescente; a vida minguante. O homem diz ao cavalo as coisas do dia, seu dorso negro acaricia e se afasta para dizer em tom de brincadeira a frase tão verdadeira:
- Mas, você é feio, hein?
A água não jorra, neste fim de tarde, do símbolo fálico do chafariz do Largo da Ordem.
Um cavalo que baba (goza?)... O que secou? O sêmen ou a lágrima? Muito estranho esse cara que fala com o mármore com intimidade de amigo. A água parada, a vida parada, o homem descalço a conversar com as pedras e eu a esperar o amigo...
Esse espaço de pedras é por onde passam os vivos. Réstias de frases cintilam em um espaço por onde caminhei hoje e ecoam em mim como notas de um piano antigo...
- Aquele professor de Geopolítica é genial...
- Eu não sei desenhar na pedra...
- Então... O que teu pai disse?...
Sair com uma frase incompleta de cada colisão com pessoas dialogando no caminho, um conto na cabeça, uma dor no pé de pisar pedras tortas. Depois, sentar no banco para ouvir o diálogo (monólogo?) do homem livre. Esperando o amigo que disse um dia:
- Cansei de vomitar vinho Campo Largo...
Pedras raras ainda guardam vômitos de meninos como se eles vomitassem o sangue dos parasitas, dos falsos profetas, dos inquisidores, dos covardes...
O homem se despede e algo se move, como se o cavalo voltasse sua horrenda face (ele é mesmo feio) para se despedir do amigo. O único que se enternece e lhe diz boa noite, mesmo que depois diga:
- Como você é feio!
O mundo se parte ao meio e eu fico com o pedaço de mundo onde tem o Relógio das Flores (memória de um sonho como iluminura medieval), com as pedras lavadas do bom e velho vinho Campo Largo e o lampião antigo que acende para ajudar o pálido crescente - foice fosca do apocalipse - a iluminar a noite dos vivos.

Paraísos de Pedra (Editora Penalux) - 2013. Páginas 21/23
Conto publicado no Jornal Relevo


ESACORDE



Acordo em total desacordo
comigo, de acordo
com o ricto sutil no espelho
e o desacorde dos dias.
– Bom dia – saúdo o vizinho,
sabendo que o dia é avaro
e o bem é restrito.
Na valise que arrasto nas ruas
há um deságio de sonhos
e esperanças vencidas.
Acordo em total desacordo
comigo. Mas de acordo
com todos. – Bom dia – responde
o imbecil do vizinho.
Otto Leopoldo Winck

Passionata



o amor foi feito para
a imperfeição, para o silêncio
entojado de som e fúria
e gentilezas.
o amor foi feito para errar,
dar com os burros n´água,
perder a paz
e odiar de um ódio patético
e gago.
o amor é assim: uma bomba
de delicadeza e desejo
que arrebenta nossas manias,
nossas veias mais grossas,
nossos relógios e bibelôs,
nossas fotografias antigas,
estudos, trabalho,
o passatempo mesquinho,
a conversa fiada e o futebol
(na hora do gol,
você pensa nela e olha além,
através do alambrado, buscando
a improbabilidade
do jasmim).
as vacas, em sua mansuetude,
não amam.
mas os homens...
“um grave acontecimento
na vida de um sujeito ordinário
naquela tarde como qualquer outra.”
o amor nos emburrece,
nos embrutece (cavalos doentes,
anjos idiotas),
como se não tivéssemos nunca
amado
e desamado, amado
e desamado.
o amor remoça
e envelhece dramaticamente.
a mulher pode dormir virgem
e acordar na menopausa.
o homem pode acordar
analfabeto e se deitar um poeta,
esbofeteado por asas.
no meio do sono,
eqüidistância perfeita
entre sonho e realidade,
o homem, a mulher
trazem abaixo
com uma serra de sândalo
a árvore genealógica.
e há quem defeque estrelas,
estupidificado de infinito.
e há quem não consiga,
um trapezista interior,
levantar o garfo até a boca
ou amarrar os cadarços.
quase tudo o que se viveu,
todas as lições e sobrevirtudes
esfarrapadas, como se amadurecer
fosse a antevéspera do podre
e da semente.
o amor não se cura.
fica incubado
esperando a primavera,
a próxima (sempre prima)
MENTIRA
ah como eu minto
pra você pra mim, meu amor!
o amor
o amor,
a desaprendizagem.
o amor
sem o qual a vida
seria uma verdade (como a morte).

 © Rodrigo Madeira

segunda-feira, 18 de maio de 2020

De Ricardo Reis, um dos poetas da minha vida, uma de suas odes exuberantes: ODE de RICARDO REIS* Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam. (* Ricardo Reis é um dos tantos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa.)




Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(* Ricardo Reis/ Fernando Pessoa.)
               

A Pedra





A pedra?
No meio do caminho?
Eu queria mesmo descansar
Do que?
De você, de Mim, de tudo
Da guerra não fujo
Mas as batalhas sou “Eu” quem escolho
Pois mentiras, prefiro as minhas
Portanto a pedra tem o significado que “Eu” quiser
E as minhas pedras não estão nos sapatos
Não estão na funda
Tampouco lançadas à minha cabeça
Estão debaixo da minha “Bunda”
Pois pra Mim, as pedras são pra se sentar

Gutemberg de Moura



A luta se desenha quando apenas
Percebo o que tentara e não consigo
Apenas vislumbrando este perigo
Que tanto noutro engano me condenas,

E sei das noites claras e serenas
Buscando tão somente algum abrigo
E tanto que eu pudera e não prossigo
Cansado destas lutas rudes, plenas.

Meu mundo sem saber de outro horizonte
Ainda que decerto em paz desponte
A lua em claridade mais audaz,

Meu tempo se anuncia no vazio
E quando o próprio tempo eu desafio,
Percebo o quanto a sorte atroz me traz.

Marcos Loures 


A luta se desenha quando apenas
Percebo o que tentara e não consigo
Apenas vislumbrando este perigo
Que tanto noutro engano me condenas,

E sei das noites claras e serenas
Buscando tão somente algum abrigo
E tanto que eu pudera e não prossigo
Cansado destas lutas rudes, plenas.

Meu mundo sem saber de outro horizonte
Ainda que decerto em paz desponte
A lua em claridade mais audaz,

Meu tempo se anuncia no vazio
E quando o próprio tempo eu desafio,
Percebo o quanto a sorte atroz me traz.


Marcos Loures 

Galope






Pra galopar no azul do meu cavalo alado,
encilho o verbo, busco as trilhas dos sonetos
e troco as ferraduras do tempo passado,
pois do passado eu quero apenas esqueletos.

Arreio a sela, aperto a cilha nos quartetos,
confiro a tralha, monto o baio nas esporas
e solto o tempo e as rédeas dos meus desafetos,
pois desafeto ao vento eu corto em poucas horas.

Cavalgo a liberdade e estradas sem porteiras,
levando no embornal os versos de outras beiras
e uma cabaça co’água fresca da nascente.

Descanso os pés no estribo e vôo nas palavras
e, quando o som da rima espanta a passarada,
solto o cabresto e o verso alegre segue em frente.


© Nathan de Castro