sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Familiar

A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Tudo muito natural acha a mãe
E o pai que faz o pai?
Negocia
A mulher faz tricô
O filho luta na guerra
Ele negocia
Tudo muito natural acha o pai
E o filho e o filho
o quê que o filho acha?
Nada absolutamente nada acha o filho
O filho sua mãe faz tricô seu pai negocia ele luta na guerra
Quando tiver terminado a guerra
Negociará com o pai
A guerra continua a mãe continua ela tricota
O pai continua ele negocia
O filho foi morto ele não continua mais
O pai e a mãe vão ao cemitério
Tudo muito natural acham o pai e a mãe
A vida continua a vida com o tricô a guerra os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.

Jacques Prevert

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Trilha

Na ponta da esferográfica
sangro azul
e singro realidades abissais

A amplitude é claustrofóbica
se não passa pelo funil
do saber empírico

Burilo lembretes em letras graúdas
Migalhas de agora
que não permitem voltar atrás

mas de longe estrelas miúdas
alumiando-me na noite afora
do meu labirinto onírico

Iriene Borges
(postado originariamente no "Bar -do- escritor " )

Equação de Fuga

Se noturno enterneço emudecido
dividido por enes frustrações
eu me meço,
eu me somo,
e me engrandeço
assumindo imensas proporções
e no uso do sono dos meus medos
eu me dito o que penso que mereço
e me peço as saídas das prisões...

Altair de Oliveira – In: O Embebedário Diverso

Heróis & dias Amenos

Temos que a vida não dói.
- Viver é tudo que temos!
Ao menos somos os heróis
Da história que nos fazemos.
E, enquanto o tempo nos rói,
Tecemos planos de engenhos...
Vamos em busca de sonhos
Usando de asas e de remos.

Galgamos sobre o passado
Buscando os dias amenos
Tememos sobre o futuro
Que nem sabemos se temos
Jogamos os nossos melhores
Tentando ganhos pequenos
Treinamos poses de heróis
Da história que nós queremos!

Enfim, nós somos assim:
Restos de tudo que fomos
Mas sempre somos heróis
Da história que nos contamos
Nos cremos por maiorais
Que, ao certo, um dia seremos
Morremos sempre no fim...
- Fingimos que não sabemos!

Altair de Oliveira – In: O Lento Alento
"Cada leitor é,quando está lendo o leitor de si próprio."
Marcel Proust
"No combate entre um texto apaixonante e seu leitor,
o romance ganha sempre por pontos,enquanto o conto
deve ganhar por nocaute."

Júlio Cortázar.

Fila de Banco

Do tempo de um relógio espero
Perdido. Tão estranho entre os estranhos
O que me faz olhar para todos os lados quase severo
Sentindo-me mais um neste rebanho

PAULO MIRANDA (A Folha)

Beijo de Aniversário: O Melhor Presente

Beijo de Aniversário : o Melhor Presente

O beijo de aniversário é o melhor presente ...
Pois deixa qualquer anfitriã contente !
Ele não se perde e nem é esquecido ...
Ele surgiu na flechada do cupido !

Seu papel é uma saliva adocicada ,
Que deixa qualquer boca aliviada !
Não é possível trocar , mas dá para pedir mais ...
Um beijo de aniversário sempre tem gosto de paz !

O beijo de aniversário tem uma nobre cobertura :
Um sabor de chantili com gota pura de ternura !
Ele é mais saboroso do que o bolo da confeitaria ...
Um beijo de aniversário tem som com melodia !

Receba o beijo de aniversário antes de fazer o pedido ...
Antes de cortar o bolo sinta este beijo colorido !
O beijo de aniversário é o melhor presente ...
Pois deixa qualquer anfitriã contente !

Ele não se perde e nem é esquecido ...
Ele surgiu na flechada do cupido .

Luciana do Rocio Mallon

Inversos do Surrealismo

Os elefantes voam alto
e algum condor rasteja
e a chorar de alegria
para mim verseja,
e se faço a poesia,
ponho o poeta na mesa
a comer feijão com passas.

Retorno para onde nem sei
e se cheguei foi tarde.

Os elefantes dançam,
são atrevidas artes
e os que aqui ponho
são brinquedos que componho
para de mim achar graça!


Paulino Vergetti Neto

Publicado no Recanto das Letras em 19/10/2008

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Salvador Dalí

Súplica ao meu Assassino

Súplica ao meu assassino

Cala-me suavemente.
Cessa o estertor violento
de minha verve lírica
em vísceras alheias,
vertendo, de tua boca lacerada,
o sumo que alimenta
o meu sentir intensamente.

Deita-me languidamente,
entre versos brancos
e a tessitura vaporosa
de silêncios enternecidos.
E acomoda em meus contornos
tua alma sinuosa

Deixa-me repousar
às margens da vertigem.
E antes que se dissipe
o êxtase de minhas veias,
e eu pereça lentamente
no torpor da tua ausência
mata-me delicadamente.


Iriene Borges
Leio o Uivo enquanto ando nos trilhos invadidos pelo mato,
que na chuva se prolifera como gremlins
às vezes tropeço em correntes elétricas
sigo na página 49, fazendo o shopping das imagens
sem Walt Whitman.

Bebo um gole de erva-doce
que tem gosto de hortelã
e minhas narinas logo percebem a atmosfera alfazemica.

Olho para os casebres de madeira desbotada,
vejo sair das chaminés uma fumaça roxa aveludada
proveniente de uma poção genealógica.

Fincada na terra como quem cria raízes
sinto acender sobre mim a luz do poste em riste
página 65, as retinas pregadas no verso:

sim, sim
é isso que eu queria
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar ao corpo
em que nasci.


Camila Vardarac

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Menina do Brasil

Era uma menina linda
Olhos cheios de esperança
Queria pouco da vida
Apenas uma criança

Era uma menina sapeca
Revestida de alegria
Só desejava uma boneca
Pra lhe fazer companhia

Era uma menina pura
Sonhava os contos de fadas
Alma cheia de ternura
Ainda brincava de mãos dadas

Era menina faceira
Coração doce e apaixonado
Só pensava em brincadeira
Vivia num mundo encantado

Era menina tão bela
Sorriso cheio de amor
Sonhava ser cinderela
Desabrochava em flor

Era menina da favela
Pés no chão, sonhos na lua
Triste sorte da bela
Só queria sair da rua

Era menina de tantos brasis
Filha do sertão e da cidade
Só queria ser feliz
Num lar sem frio e maldade

Era menina brasileira
Filha da desigualdade
Sonhava pra vida inteira
Apenas a felicidade

Era menina inocente
Acreditava nos homens
E tudo que tinha na mente
Era matar sua fome



Era menina esperança
Continuava a sonhar
Só queria ser criança
Sem fome poder brincar

Era menina do noticiário
Vendida por algum dinheiro
Por mais um salafrário
A um gringo estrangeiro

Era, agora, uma menina triste...

Sirlei L. Passolongo

(postado originariamente no site "Opinião e Informação " )

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Camus

A noite não adestra insetos, nem converte alvoradas

O homem que parecia Lenin (sem as roupas da revolução) caiu no saloon, como um cowboy que escorrega no líquido das suas humilhações após tomar um tiro de vodka na garganta.
A vida é faroeste, leste, norte, sul e no centro o homem tombado, entre dois retratos matadores, pensando como levantaria sem parecer fraco e patético ou pensando em qualquer coisa aleatória, porque esperar raciocínio coerente de um homem que está agarrado ao chão como se fizesse parte dele , é exigir demais.
E então, de dentro dos retratos eles sacaram as armas, enquanto Pancho ajeitava o chapéu, Zapata precipitou-se em apertar o gatilho na direção da criatura estendida, porque é melhor morrer de pé do que viver de joelhos e aqueles joelhos já estavam entregues.


Camila Vardarac

Ile de La Cité

Angústia

a angústia
é um jardim devastado
infestado de cigarras mudas
pragas de um mal calado

é o coração coagulado
dentro de um balde azul
sobre as macas giratórias
do pensamento confuso

é um esquilo demoníaco
com olhos de fissura
gastando os dentes podres
numa noz imaginária

é alma na ponta da faca
que não corta, só ameaça
iminência da falta
que sonda o vazio

Camila Vardarac

Sexta-Feira de Lua

sexta-feira de lua
13 ou não, tanto faz.
acertaram um tórax
a ferro e fogo e completa falta de yin-yang
com um golpe turn off super man marlon brando
certeiro.
o que estava em volta do tórax
caiu como gelatina no meio da rua, basicamente osso e carne de quinta-feira ainda vivo.
uma gargalhada iluminava o beco distante
fazendo com que os ouvidos do assassino se voltassem para o eco,
seu rosto virava tal qual coruja precisa.
180 graus de fúria na cabeça, culpa nas costas e aquelas botas invocaram passos firmes na direção do voyeur que se atreveu.
a arma brilhava entre os dedos, mas o medo pingava da barba, escorria pelo pescoço.
na entrada do beco os passos cessaram, a tensão acumulada murchava. coração sem sangue.
maxilar travado, alívio, angústia...não havia ninguém.
primeiro caiu a arma, depois o assassino.
ele levava as mãos trêmulas à nuca, proximidade entre cabeça e chão.
após o ato criminoso não percebeu o som inconsciente do triunfo. não percebeu o quanto era mau, por só carregar sorrisos depois de mortes. a gargalhada era dele.
loucura e salvação nas lágrimas que molham a camisa.

Camila Vardarac

Compassion

Metrópoles

METRÓPOLES

Edifícios

Se equilibram em fios

De altos desejos

E longos medos.



Calçadas torpes

Movem vícios

Para abrigar ligeiríssimos

Hábitos

Em carros e sábados.



Metálicos acordes

Calam mundos

Num só absurdo

Sem que o tempo

A qualquer momento

Desnude relicários

E asfaltos.


Vinícius Motta da Costa
16/01/09
http://www.vivercidades.org.br

A Faixa de Gaze

Alvejada, mas não perfurada. Atingida, mas não lesionada. Explodida, mas não estilhaçada. Transtornada, dilacerada, enlouquecida, a filha de Allah - o clemente, o misericordioso - empenhava-se em atar os pedaços do pequeno Ahmed, recolher ao causticado ventre exposto as vísceras esparramadas, unir aquilo que o míssil enviado pelos filhos de YaHVeH - o clemente, o misericordioso - havia desagregado, esperança desesperada e insana de genetriz. Por fim, desmoronada, vencida, a mulher lançou de si a rubra atadura, que revoluteou, antes de imergir no profundo, revolto mar de fogo, lágrimas, sangue. Não longe dali, uma sinagoga, um rabino lê a Torah.

Carlos Cruz - 29/01/2009

(Bar do Escritor- 05/02/09 )

Instinto Feminino

Não ouse que não sou sua
Essa aura de constância
protege fêmea arisca
sob o signo da lua

Olhe sem tocar-me
a pele com teu ardor
Minha natureza repele
quem me devassa
só porque ando nua


Iriene Borges

Velha Guarda

Velha Guarda
Sai na avenida,
o suntuoso carro
alegórico,
minha requintada
coleção
de horrores,
o versejar
retórico.

Fantasia de
flores químicas,
monocromática
(o sempre
mesmo murro
em ponta de faca).

O samba enredo
minimalista:
a colombina
trapezista,
na cadência
e um pierrot
da incoerência,

estupidamente
clichês

Ricardo Pozzo

Elegia do Abandono

Elegia do abandono

Ante teus olhos minha alma impura, mas transparente
E a atravessastes como o fio de uma espada
E a olhastes como se ali houvesse nada
Sequer viste qualquer desvairada, mendiga ou indigente

Feriste-me outra vez, e nem te amaldiçôo
Mas por teres me abandonado novamente
Por teres tua alma afastado de mim de repente
Por isso, Maria, também não te perdôo

E por não teres me confortado quando em teus braços
Por não teres me acariciado se ao alcance dos dedos
Por não teres me ofertado um de teus sorrisos escassos
Por não teres ofertado teus ouvidos a meus segredos

Por não teres dado refúgio à inocência da pouca idade
Por não teres te perturbado com a silenciosa conduta
Por não teres percebido minha miséria absoluta
E por teres confundido tristeza com maldade

A, por não teres me doado um pensamento neutro
Nem, por um instante, dedicado um resquício de doçura
Minha alma tem num calabouço aprisionada a ternura
E também o teu perdão dorme profundamente lá dentro


Iriene Borges

Inusitado

O novo chega de repente.
De maneira inusitada.
Quebrando a vidraça da janela,
Subindo pelas paredes...
Ignorando as escadas.
O novo chega com o corpo ausente.
Mas, a alma estilhaçada.
E, refaz-se juntando os pedaços
De outras almas que encontra na estrada.
Corpo e alma, vidas novas...
Novos rumos, rastros indecisos.
Não sabe aonde ir,
Mas é preciso.


(Angela Gomes)

Solitudine

Práticas Antigas

Práticas antigas
Eu dançarei sobre teu túmulo
Paganismo inerte
Música que aprendi de ouvido
no pulsar envenenado
que me perverte
mas sustenta o fôlego

Desfarei no giro dos quadris
A mandinga e a modorra
que lançaste-me sobre a libido
Terei teu jazigo revolvido
e até o verme cuidarei que morra
sob as coreografias febris

Ocorre que as hordas infernais
são palavras esmurrando minha porta
e as logro no encanto das cantigas
E entre ritos novos e práticas antigas
vislumbro-te carne exposta
nas manchetes dos jornais

Breve dançarei sobre teu túmulo.


(Bar do escritor )

Iriene Borges

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Orfanato de Vila Savóia



Roma.Itália.1948

Vou Somar

Eu vou fazer par com você
vou fazer pra você ver
vou fazer pra você vir
Fazer par, fazer par, fazer par
Eu vou parar pra fazer par
Para em par partir pra frente
Par que vai de par em par
par pra frente, par pra frente
Eu e você fazendo par
Parece bom, parece paz
Par é somar, paramentar
Pra se encontrar no paraíso
Para parlar, parlar, parlar.

Maria José de Menezes

Land Distribution Meeting



Estremadura.Espanha.1936
http://museum.icp.org/special/chim

Musgo Ferro

Musgo Ferro,
a memória é fuligem
neblina de sáis,
cor dos anos,
nitrato esquecido
até onde
revivo
meu símbolo
é alcance,
solda
grão
por grão;
fuligem esverdeada,
revela,
a sala vítrea,
revela,
regresso
após regresso
a máscara inversa,
que,
ja não é breu,
inversa
tem a fuligem
e o sabor do musgo
feito página,
a cicatriz branca
na lacuna
forjada
do passo
ao passante.

Tullio Stefano

Vomitando

Vomitando de um profundo coma, um homem acorda. Anos se passaram, constata. E ao olhar o falso calendário, a medida em que o sentimento de desorientação pesava com maior intensidade, ele resolveu abandonar sua gaiola sofregamente. Aprontou a máscara e a fantasia, para poder se proteger do frio dolorosamente real que rondava lá fora. Um coração apressado regia seus passos intermitentes, ecoando na imensidão daquele cômodo. Porque escapar já não era mais uma indagação, e sim um imperativo. Feito isto, ele rodou a chave e abriu a pesada porta enferrujada.
A neblina cerrava o horizonte, dissuadindo a todos para que permanecessem em suas tocas. Fora assim por muito tempo. Não se recordava ao certo quando essa imposição começara; ela transcendia sua vida. Visualizando em cacos o que deveria ser um lago congelado, ele não hesitou em abandonar o asfalto e pisar na terra, abaixo do gelo. Onde estão as estrelas. Logo lá. Os homens daqui já não as enxergam, e aqueles que dispõem do tesouro de observá-las já não dão a mínima. Os olhos não vêem, e o coração não sente. Vagando por um tempo indeterminado, os pés conspiravam em doer. Há quanto tempo não andava no mundo real? Andara antes. Não, retire isso. Você não andava – se deixava levar. Um galho na relva prenunciava o bosque à frente, convidativo, porém inexplorado.
Escondido nos grotões da mata interior, ele compreendeu que toda sua vida tinha sido um erro. Desprovida de qualquer um propósito. Não havia fé, nem amor capazes de salvá-la. O mundo muito menos. Uma quietude extrema o apossou, como se todos seus átomos clamassem por aquela constatação. E de maneira inusitada, o reconhecimento de não se ter um propósito virou um propósito. Uma lúcida filosofia, dessas que se agarram a uma vida como um filho à mãe, recompensando serenidade.
Depois de demasiado sofrimento, ele enfim se tornara homem. Um homem banal, aquele ao qual ele tanto relutara ser? E a paz ele alcançara, algo inexistente até então. Mas quem sabe sofrer fosse a fatalidade do pensar? Quem sabe viver como animal é a maior dádiva de Deus. Somente a Ele cabe a permanência, ao homem resta apenas conformar. Dar forma ao presente, como homem e apenas homem. Cabia a ele escolher entre o sofrimento da não-verdade ou a resignação da verdade. Eis a questão. E sim, era essa consciência que caracterizava o homem.
Viver é experimentar o que não se gosta, satisfazer com o insensato. É dirigir sem pensar. Movimento, velocidade constante, incessante. Chama que se apaga. Efeméride efêmera. Angústia sem fim, ingratidão para quem vive.
E-X-P-L-O-D-I-R - ele tinha convicção de que despedaçaria em incontáveis recortes do cotidiano, fadados à repetição aleatória.
Desculpem, mas a verdade foi feita para ser dita. E a verdade os salvará.

Gustavo Dalacqua

Quarta

Era quarta-feira. Fiz tudo como esperado. Após mais um longo dia de labuta, eu havia chegado em casa me sentindo morto. Morto. Era assim sempre. Sempre? Uma pergunta inútil, que certamente levava a lugar algum. Ou a algum lugar? Enfim. Entrei no chuveiro, pois sou homem, e homem não é de ferro. Apenas os robôs o são. Na água, lavei para me lavrar de tais incongruências. Deveria estar cansado, pois tenho dormido pouco há muito tempo. Entretanto, ao desabar das últimas gotas, as perguntas continuavam lá, inabaláveis. De maneira inquestionável. Com a toalha, abusei de uma violência excessivamente inesperada. As brumas me exasperavam. Era assim sempre? Sucedera isso antes? Inquiete-se.Preciso quietar-me. O barbeador. Vou fazer a barba, ao menos um afazer para aquietar. Tamanha náusea me congestionava. Foi então que eu me olhei no espelho pela primeira vez. Sim, pela primeira vez na minha inexplorada vida. Com a minha mão, fui despojando o espelho, polegada por polegada, de sua dissimulada embaçação. E aquilo que descobri é de arrasar qualquer existência possível. O choque se apossou de mim. O susto de ver as coisas como são. A começar por mim. Descobri que tudo aquilo que eu chamava de rosto não passava de uma máscara enferrujada, e que o meu corpo era senão uma fantasia. Uma puta de uma tremenda carcaça. Lata velha maldita. Ao arrancar dessas armações, vi que embaixo disso tudo, eu era eu. Inexplicavelmente, eu ainda era eu. Sangues jorravam das minhas artérias, afirmando que o Universo era, como o Sol, vermelho púrpura. O Universo sou eu. Ele está no meio de nós. Um Universo a desvelar. Tenho de tentar explicar isso. É a minha única chance de me salvar. Mas como? Pois aquilo que eu conheci ao me desvendar milagrosamente transcende o cognoscível. O que eu tinha antes era mentira de pau. Aquilo que eu pretensiosamente denominava por vida era uma mera ilusão. Como suportar a indubitável constatação de que o falso era até o presente tido como verdadeiro? O porvir era não menos real. E o real é de uma crueza eterna. Cru até demais, deixando a ação completamente potencializada. Qualquer passo me mataria. O presente aniquilava o passado, para então ser tomado pelo futuro. Desconhecido angustiante.Eu tinha toda a barbárie do cosmos conjugada em mim. O que fazer com isso eu não sabia. Com uma força estrondosa que só os negligenciados são capazes de reservar, uma ânsia de viver irrompeu, espalhando pétalas por todo o chão. Eu só precisava de um início, quanto ao resto eu me virava. E isso estava nas minhas mãos, vermelhas. As mesmas que desligaram o despertado ao raiar do dia. Que encaixotaram garrafas. Que ergueram caixas, que machucavam as costas. A raiva chegou acompanhada do riso. Ignóbeis picuinhas. Depois de tantos anos, que desperdício foi imaginar viver, e não fazê-lo. Mas eu não podia deixar de admirar o poder que essa farsa possuía. O torpor que produzia enclausurava corações e garantia o eclipse de toda a brutalidade do real. Era nisso que eu acreditava dogmaticamente. Mas agora não. Todos os átomos de meu corpo esperneavam ao contrário das contradições cotidianas. Não obstante, meus antigos hábitos clamavam por um suporte a essa nova descoberta. Isso, entretanto, era impossível. A verdade é insuportável. Nós ocultamos a verdade porque ela machuca. Um machucado que não cessa, cuja fenda constantemente precisa ser aprofundada, para se ter a certeza de que se está aqui.Há muito que eu já não me sentia vivo. O que então valia era o aqui e o agora, mas o aqui – a lucidez do banheiro – revela ser o agora o ontem, que é a enfadonha cópia de amanhã. Porém, depois de hoje, o aqui se tornou o aqui. Não mergulharei mais em dúvidas quanto ao meu mundo, ou as escolhas e limitações que ele implica. Jamais me torturarei com a indagação de quanto tempo faz que não me sinto carne. Pois agora sou só carne. E a carne arde. Jogue fora o álcool ou qualquer pano que pretenda amaciar as amarguras que sofremos por provarmos. Há coisas que devem sair, assim como há coisas que devemos sentir. Senão não se está vivo. E eu estou. Demasiadamente. Ímpetos adormecidos demandam com o maior apetite do mundo, e eu sem ponderar, corto mais e mais. Cada rasgo urgia um próximo, fazendo com que as feridas se contagiassem mundo afora. Existe todo um processo para isso. Diria até que consiste em uma ciência. Há primeiro a epiderme, depois a derme e então: você!Como era bom ser eu mesmo. Isso resultava em uma outra questão igualmente intrigante: o que fazer comigo mesmo? Desconcertante liberdade. Talvez fosse natural um estranhamento entre nós, como todo primeiro encontro gera um constrangimento. Mas, paulatinamente, nos familiarizaremos. Saberei como dar forma a ambos: com ela e com ele. Digo isto com a convicção de quem não viu nada, e viu tudo. Os dois estão intimamente ligados. Analisando meus olhos, obtive a derradeira comprovação de minha condição selvagem. Outrora, aprazia-me comprovar minha alma sufocada em um minúsculo ponto no interior de minha pupila. Por ora, isso não mais acontecia: qualquer humano que olhasse meus olhos acabaria por inexoravelmente bendizer: você é você. Consistindo uma novidade para o espectador, a imagem se reteria na mente, indelével. Nem intente em obliterar a paixão que os seres livres apresentam. No caminho para o trabalho, eu atravessava a metrópole e analisava milhares de rostos. Apesar disso, o mundo me parecia carecer de convivência humana, de pessoas. Esta fora uma das inúmeras fissuras que minha máscara possuía; a sensatez do espírito ainda perpassa a mais grossa das maquilagens. Julgamentos coerentes ameaçam brotar mesmo nos ambientes mais hostis e inóspitos para tanto. Pequenas panes do sistema, em constante supervisão.O reflexo disso tudo já não me bastava. Incontrolável, estilhacei o espelho em trezentos e noventa e nove pedaços. Eles me pertenciam. Imagino que na minha solidão considerei meu próprio reflexo uma fonte de alienação. E isso eu não mais o era. Acho que é por isso que fiz aquilo. E para dar certeza de que eles estavam em minha posse, e não o contrario, eu afundei, caco por caco, em mim. Um processo doloroso, mas definitivamente necessário.Podia sentir meu coração batendo irregular e exaustivamente. Sabendo quem sou, julgo ser capaz de discernir meus desejos. E isso basta por si só. Valeu a pena; estou na obtenção daquilo que todos os humanos aspiram na convenção representada pelo que vulgarmente denominam como felicidade. Com isso em mente, eu decidi querer vagar pelas ruas, embebedando-me de pura liberdade. Mas não mais podia! Costurar a pele a seu lugar original era inconcebível. Uma vez descascada, para sempre será.Então tudo isso era em vão. Será que era melhor não ter me descoberto? Ficar somente na superfície era melhor? São perguntas sem respostas; perguntas que não se devem fazer.Eu tinha dito que hoje sucedera um dia como todos os outros, mas eu menti. Uma espinha virou um caroço, e esse caroço era um linfoma. Eu ia morrer de qualquer jeito. Sempre fiz as coisas como alguém que tivesse muito tempo nas mãos. Muito tempo para viver. E não temos. Do permanecer ao perecer bastam algumas letras a menos. E sob esse prisma, decidi tudo mudar.

Gustavo Dalacqua

Direto ao Ponto

Desceu a boca até a fonte da seiva, cobrindo de beijos as partes internas das coxas, sentindo o perfume que inebria seus instintos e os chamam à rosa em botão da pele. Poros em alto relevo indicam a insígnia plena do desejo, algemas naturais dissolvidas aos poucos, expondo seus recônditos sussurros até abrir enérgica a fenda guardiã. Como o fogo, que derrete o metal que antes torna brasa, sua boca aderida à polpa eriçada, penetrava mais fundo o sulco latejante sorvendo o perfumoso líquido clandestino.
São os gemidos que levam ao desatino, e ele, sem poder controlar o efeito de tantas sensações busca, na cancela entreaberta, a trilha para o interior do ápice fabuloso. Encontra-a e percorre seu relevo rugoso com a áspera língua como se saboreasse, com requinte natural, um fruto saboroso. Ela, contorcendo-se em delírio quer fosse mais que a flor aberta e pulsante, lasciva, escorrendo em lavas de erupções contínuas.
Então ele sentiu, como um relâmpago em sua boca, algo que engolia. Afastou-se por um instante enquanto a moça desfalecida, no interlúdio dos murmúrios febris, observa-lhe a face intrigada, perguntando o que lhe tinha acontecido. Ele, sem dizer palavra, tateou com o pensamento as possibilidades lógicas do evento. Mas, sem chegar à conclusão alguma, começou a sentir em si os efeitos do que pressentira ter engolido.
E assim, sem sobreaviso, maremotos agitaram seu coração. A mente, igual aos primeiros raios de Sol que faíscam ao alvorecer, resplandecia. Em sua compreensão tudo o agora tornava claro. As cores eram outras, nítidas, profundas e de seu pensamento emergia a percepção da estreita ligação entre os seres e a significação da vida. O tempo dilatou-se entre o hoje, o ontem e o amanhã, e ele encontrara o fio condutor de toda sua existência até então, se sabendo um desde o início do mundo. Era ao mesmo tempo réptil estendido ao Sol e o próprio Sol.
Olhando-a com ternura, sem responder como, nem porquê, sabia ter engolido seu ponto G.


Amanhece; transcendente...


Ricardo Pozzo

White Angel Bredline



San Francisco,CA.USA.1933

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Infernópolis:ooo Pecado de Ser Pobre

Ação da Polícia Militar de SP na segunda maior favela da cidade peca pela agressividade contra pobres e o direito de protestar, mistifica a origem dos confrontos e alimenta a idéia de “limpeza social”.
Tudo começou com o atropelamento e morte de um garoto que teve duplo azar na vida: nasceu pobre e morreu nos primeiros anos de sua frutífera vida. Seguiu-se ao acidente uma manifestação dos moradores por equipamento público, para coibir novas mortes. Nada mais justo e compreensível.
Na manifestação ocorreram quebradeiras provocadas por garotos que não têm muito a perder, mas não contavam com o apoio dos manifestantes e da Associação de Moradores. Quando se vive no limite, relegado a uma mobilidade restrita numa metrópole repleta de possibilidades, sem a presença efetiva de equipamentos públicos de qualidade, assombrado pela violência, pelo desemprego, miséria, álcool e rendimentos risíveis, a fronteira entre o legal e o ilegal é muito tênue. Não se trata simplesmente de “desvio de caráter”, ou de vandalismo inconsequente como parte da imprensa e a própria SSP fez crer. Mas o teatro estava apenas no começo.
Paraisópolis é uma grande mancha urbana de pequenos casebres, alta densidade demográfica e com indicadores sociais perversos: apenas 0,45% dos jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior. Em 1991 o índice era de 1,19%. Apenas 20% do mesmo grupo social estão no ensino médio (Moema tem percentual de 84%) e a baixa escolaridade colabora no desemprego: 1 em cada 4 adultos está sem trabalho. A renda média entre seus moradores é de R$ 367,00 ao passo que na cidade de São Paulo o valor chega a R$ 1.325,00. A degradação persistente da qualidade de vida destas pessoas desceu em profundidade abissal.
Ao seu redor encontramos situação inversa: cercada de edifícios majestosos, casas de alto padrão, com imensos terrenos gramados e arborizados, seguranças particulares e abastecidos de total infra-estrutura. Seus vizinhos gastam mais dinheiro num ano em manutenção das piscinas do que o Estado em educação a estes deserdados urbanos.
Cito esta contradição explícita na paisagem da geografia local para reforçar a idéia de que o convívio permanente entre os socialmente desiguais é sempre explosivo, apesar da repetitiva ladainha que o problema reside na personalidade das pessoas, que a delinqüência vem de berço e a violência está no sangue de alguns. Tolos, não percebem que este mesmo discurso embala as políticas de segurança pública há décadas sem solução definitiva.
Também não façamos coro com a tese dos “dois Brasis”, pois as relações entre estes dois mundos são próximas. Trabalhar com o doméstica nestas residências é uma das principais fontes de empregos para as mulheres de Paraisópolis e o assistencialismo corre solto e evidencia sua incapacidade em apontar saídas: Kaká doou bolas, ONG´s distribuem alimentos e roupas, a BOVESPA montou uma Biblioteca, Colégio de classe alta da redondeza oferece bolsas de estudos, enfim, ações apoiadas em responsabilidade social que não dão conta de suprir a irresponsabilidade social dos governos constituídos.
Quando carros foram atacados, pneus queimados e comércios destruídos, num ato espontâneo de revolta contra uma realidade insuportável, a resposta foi o show da operação policial. Estar rodeado de ricos e, principalmente, muito próximos do Palácio do Governo de São Paulo, habitado e dirigido pelo Sr. José Serra, foi outro baita azar.
Na ótica do governo, era preciso agir e rápido. Primeiro, a desculpa padrão: a culpa é da própria população que protege os traficantes que atacaram a Polícia. Segundo, uma movimentação policial exemplar: desfile de viaturas pela Marginal do Rio Pinheiros mostrando que o Governador não tergiversa, age. Terceiro, a grande mídia entra em cena: como sempre criando cenários que levam a conclusão imediata de que a ação se justifica, e mortos e feridos são inevitáveis.
O mais irônico é que ocupar casas sem mandato de segurança virou rotina, matar jovens suspeitos, uma necessidade e, aterrorizar a população local, um aviso. Minha suspeita é que por detrás deste modus operandi, que se diga não é uma exclusividade de São Paulo, existe uma política mal disfarçada de redução das pressões populacionais por emprego e serviços públicos, que acomete principalmente crianças e adolescentes pelo Brasil afora. São grupos de extermínio institucionalizados e que comumente recebem aplausos de telespectadores confortavelmente instalados diante de seus televisores, e crentes de que o melhor foi feito.
Poderia haver o caminho do diálogo, sem dúvida nenhuma, houvesse interesse do Gabinete do Governador. O Cel. Ailton Araújo Brandão, comandante da ação em Paraisópolis tem, inclusive, folha corrida a este respeito. Ele foi um dos participantes daquela malfadada reunião ocorrida com a cúpula da Polícia Militar de SP e o PCC, em 2006, quando era Comandante da PM na ponta oeste do estado de São Paulo, justamente onde estavam presos os membros da cúpula da organização. Um ano depois recebeu o título de cidadão prudentino, com direito a almoço e placa da honraria pelos serviços prestados.
O Cel. Brandão apontou seu dedo para as novas tecnologias como culpada pelo sumiço de gravações contra a PM pela morte de 104 pessoas nos confrontos com o PCC. O gravador do 190 falhou e o backup automático também falhou.
Mas ele foi condecorado pela Assembléia Legislativa de São Paulo em setembro de 2007 como Comandante do Policiamento da Capital da Polícia Militar do Estado de São Paulo, junto com o Governador Serra. Recebeu importante medalha dos paulistanos, embora o povo de Paraisópolis possivelmente nem saiba que ela exista. Talvez por isso a raiva.
A PF também chegou ao referido Cel. através da Operação Santa Tereza. Em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo foi revelado um esquema de distribuição de ingressos para uma festa de peão no interior de São Paulo com artistas consagrados. O “mimo” era a contrapartida pelo oferecimento de segurança pública a um prostíbulo privado que lavava dinheiro do BNDES na capital. Vê-se, portanto, que o crime maior não está em Paraisópolis, mas em outros lugares e o Cel. sabe quais são.
A ação da polícia é a síntese de uma imbricada teia de interesses que passa pela definição, a priori, de que pobre em favela é culpado antes de mais nada, de que é preciso fazer alguma coisa contra a criminalidade e é na favela que o tráfico manda. Humilhar pessoas, revistando-as, invadindo suas casas, num show travestido de caça aos traficantes explicita mais do que uma prática condenável, mas um tratamento de choque para um problema social.
A ocupação da favela de Paraisópolis na cidade de São Paulo, neste começo de fevereiro, é emblemática sobre o papel do tucanato diante dos problemas sociais no estado de São Paulo. Para fazer justiça, o Demo Kassab também foi condecorado na Assembléia Legislativa num ambiente agradável e de confraternização.
Pena que enquanto alguns desfrutam deste conto de fadas com dinheiro público outros vivem num inferno constante e são condenados ao castigo da morte lenta e silenciosa. Mesmo vivendo na “cidade do paraíso”.

Ricardo Alvarez

Professor e editor do Blog Controvérsia

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sem Título

Passos na sombra
Reflexo sempre adiante
Inalcansável.

Lança-te
Ao contrário
No ímpeto de segurar
Autocontrole.

Tolo fostes tu
Não vês ter sido
Inútil?

Por mais que corra
ou desdobre
Tudo foge
Nada fica.

Gustavo Dalacqua