sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Quarta

Era quarta-feira. Fiz tudo como esperado. Após mais um longo dia de labuta, eu havia chegado em casa me sentindo morto. Morto. Era assim sempre. Sempre? Uma pergunta inútil, que certamente levava a lugar algum. Ou a algum lugar? Enfim. Entrei no chuveiro, pois sou homem, e homem não é de ferro. Apenas os robôs o são. Na água, lavei para me lavrar de tais incongruências. Deveria estar cansado, pois tenho dormido pouco há muito tempo. Entretanto, ao desabar das últimas gotas, as perguntas continuavam lá, inabaláveis. De maneira inquestionável. Com a toalha, abusei de uma violência excessivamente inesperada. As brumas me exasperavam. Era assim sempre? Sucedera isso antes? Inquiete-se.Preciso quietar-me. O barbeador. Vou fazer a barba, ao menos um afazer para aquietar. Tamanha náusea me congestionava. Foi então que eu me olhei no espelho pela primeira vez. Sim, pela primeira vez na minha inexplorada vida. Com a minha mão, fui despojando o espelho, polegada por polegada, de sua dissimulada embaçação. E aquilo que descobri é de arrasar qualquer existência possível. O choque se apossou de mim. O susto de ver as coisas como são. A começar por mim. Descobri que tudo aquilo que eu chamava de rosto não passava de uma máscara enferrujada, e que o meu corpo era senão uma fantasia. Uma puta de uma tremenda carcaça. Lata velha maldita. Ao arrancar dessas armações, vi que embaixo disso tudo, eu era eu. Inexplicavelmente, eu ainda era eu. Sangues jorravam das minhas artérias, afirmando que o Universo era, como o Sol, vermelho púrpura. O Universo sou eu. Ele está no meio de nós. Um Universo a desvelar. Tenho de tentar explicar isso. É a minha única chance de me salvar. Mas como? Pois aquilo que eu conheci ao me desvendar milagrosamente transcende o cognoscível. O que eu tinha antes era mentira de pau. Aquilo que eu pretensiosamente denominava por vida era uma mera ilusão. Como suportar a indubitável constatação de que o falso era até o presente tido como verdadeiro? O porvir era não menos real. E o real é de uma crueza eterna. Cru até demais, deixando a ação completamente potencializada. Qualquer passo me mataria. O presente aniquilava o passado, para então ser tomado pelo futuro. Desconhecido angustiante.Eu tinha toda a barbárie do cosmos conjugada em mim. O que fazer com isso eu não sabia. Com uma força estrondosa que só os negligenciados são capazes de reservar, uma ânsia de viver irrompeu, espalhando pétalas por todo o chão. Eu só precisava de um início, quanto ao resto eu me virava. E isso estava nas minhas mãos, vermelhas. As mesmas que desligaram o despertado ao raiar do dia. Que encaixotaram garrafas. Que ergueram caixas, que machucavam as costas. A raiva chegou acompanhada do riso. Ignóbeis picuinhas. Depois de tantos anos, que desperdício foi imaginar viver, e não fazê-lo. Mas eu não podia deixar de admirar o poder que essa farsa possuía. O torpor que produzia enclausurava corações e garantia o eclipse de toda a brutalidade do real. Era nisso que eu acreditava dogmaticamente. Mas agora não. Todos os átomos de meu corpo esperneavam ao contrário das contradições cotidianas. Não obstante, meus antigos hábitos clamavam por um suporte a essa nova descoberta. Isso, entretanto, era impossível. A verdade é insuportável. Nós ocultamos a verdade porque ela machuca. Um machucado que não cessa, cuja fenda constantemente precisa ser aprofundada, para se ter a certeza de que se está aqui.Há muito que eu já não me sentia vivo. O que então valia era o aqui e o agora, mas o aqui – a lucidez do banheiro – revela ser o agora o ontem, que é a enfadonha cópia de amanhã. Porém, depois de hoje, o aqui se tornou o aqui. Não mergulharei mais em dúvidas quanto ao meu mundo, ou as escolhas e limitações que ele implica. Jamais me torturarei com a indagação de quanto tempo faz que não me sinto carne. Pois agora sou só carne. E a carne arde. Jogue fora o álcool ou qualquer pano que pretenda amaciar as amarguras que sofremos por provarmos. Há coisas que devem sair, assim como há coisas que devemos sentir. Senão não se está vivo. E eu estou. Demasiadamente. Ímpetos adormecidos demandam com o maior apetite do mundo, e eu sem ponderar, corto mais e mais. Cada rasgo urgia um próximo, fazendo com que as feridas se contagiassem mundo afora. Existe todo um processo para isso. Diria até que consiste em uma ciência. Há primeiro a epiderme, depois a derme e então: você!Como era bom ser eu mesmo. Isso resultava em uma outra questão igualmente intrigante: o que fazer comigo mesmo? Desconcertante liberdade. Talvez fosse natural um estranhamento entre nós, como todo primeiro encontro gera um constrangimento. Mas, paulatinamente, nos familiarizaremos. Saberei como dar forma a ambos: com ela e com ele. Digo isto com a convicção de quem não viu nada, e viu tudo. Os dois estão intimamente ligados. Analisando meus olhos, obtive a derradeira comprovação de minha condição selvagem. Outrora, aprazia-me comprovar minha alma sufocada em um minúsculo ponto no interior de minha pupila. Por ora, isso não mais acontecia: qualquer humano que olhasse meus olhos acabaria por inexoravelmente bendizer: você é você. Consistindo uma novidade para o espectador, a imagem se reteria na mente, indelével. Nem intente em obliterar a paixão que os seres livres apresentam. No caminho para o trabalho, eu atravessava a metrópole e analisava milhares de rostos. Apesar disso, o mundo me parecia carecer de convivência humana, de pessoas. Esta fora uma das inúmeras fissuras que minha máscara possuía; a sensatez do espírito ainda perpassa a mais grossa das maquilagens. Julgamentos coerentes ameaçam brotar mesmo nos ambientes mais hostis e inóspitos para tanto. Pequenas panes do sistema, em constante supervisão.O reflexo disso tudo já não me bastava. Incontrolável, estilhacei o espelho em trezentos e noventa e nove pedaços. Eles me pertenciam. Imagino que na minha solidão considerei meu próprio reflexo uma fonte de alienação. E isso eu não mais o era. Acho que é por isso que fiz aquilo. E para dar certeza de que eles estavam em minha posse, e não o contrario, eu afundei, caco por caco, em mim. Um processo doloroso, mas definitivamente necessário.Podia sentir meu coração batendo irregular e exaustivamente. Sabendo quem sou, julgo ser capaz de discernir meus desejos. E isso basta por si só. Valeu a pena; estou na obtenção daquilo que todos os humanos aspiram na convenção representada pelo que vulgarmente denominam como felicidade. Com isso em mente, eu decidi querer vagar pelas ruas, embebedando-me de pura liberdade. Mas não mais podia! Costurar a pele a seu lugar original era inconcebível. Uma vez descascada, para sempre será.Então tudo isso era em vão. Será que era melhor não ter me descoberto? Ficar somente na superfície era melhor? São perguntas sem respostas; perguntas que não se devem fazer.Eu tinha dito que hoje sucedera um dia como todos os outros, mas eu menti. Uma espinha virou um caroço, e esse caroço era um linfoma. Eu ia morrer de qualquer jeito. Sempre fiz as coisas como alguém que tivesse muito tempo nas mãos. Muito tempo para viver. E não temos. Do permanecer ao perecer bastam algumas letras a menos. E sob esse prisma, decidi tudo mudar.

Gustavo Dalacqua

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