sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

CORPO SANTO



Exausto das lides do amor,
lavo teus olhos
em que ficaram impressas
as imagens do dilúvio que nos afogou
e cujas pestanas se fecharam sobre o meu corpo torturado.
Escaldo teus pés
que conheceram as errâncias dos caminhos mais adversos
e calcaram a cabeça da serpente numa tarde de maio.
Banho o teu dorso
dócil às minhas mãos maduras
e acostumado aos trabalhos nas galés.
Com a água da primeira chuva do outono,
enxáguo teus lábios
que proferiram blasfêmias de inigualável encanto.
E finalmente banho o teu púbis,
escuro como a noite primeira,
e, dentro dele,
o fabuloso sol
que me incendiou.

Otto Leopoldo Winck

Sobre literatura e sinceridade



"O primeiro personagem que o escritor cria é ele mesmo.
Só os imbecis procuram um eu atrás do texto literário. Em literatura, a própria 'sinceridade' é, apenas, uma jogada de estilo. Um escritor medíocre não consegue ser 'sincero'. Técnica, coração.
Para ser sincero é preciso dispor das técnicas que indiquem, signem, sinceridade. Sem isso, a mais pura das explosões verbais, a mais direta, a mais 'espontânea', será apenas mais uma manifestação de imperícia literária. Um amontoado de bobagens que o tempo vai se encarregar de destinar ao lixo, onde jazem as ilusões."

Paulo Lemisnki, "Ensaios e anseios crípticos".

Dois mil e vinte


Dois mil e vinte
não permita
que a gente
se distraia
enquanto
a ráfia
escangalha
esse pedaço
de paisagem
que nascemos
ou escolhemos
pra dançar.

Não permita
dois mil e vinte
os piores
no caminho
nem que a besta
a fera e o lobo
açulados
pelo sangue
tirem nacos
dessa carne
do futuro
no futuro.

Leandro Sarmatz

RESSACA




A noite inteira
o mar bateu nos diques do meu coração.

Marinheiros bêbados,
prostitutas de olheiras antiquíssimas,
vagabundos, junkies, velhos nostálgicos
– vieram olhar com espanto
as ondas que se arremessavam loucas
no meu peito.

(Senti saudades do tempo em que fui peixe
e não havia guerras, fomes nem cartões magnéticos...)

Sim,
a noite inteira
o mar chorou embriagado, destroçando tudo:
pontes, prédios, pergaminhos, prolegômenos
e
um
olhar
– de quem, meu Deus, já não me lembro.

A noite inteira...

Pela manhã foram me encontrar na praia,
coberto de algas.

Otto Leopoldo Winck

Genuíno Estrelato



Se de luzes ou esperanças,
Em terras secas pela luz.

Pela mesma luz.

Se de horizontes aos intrínsecos
Catálogos de significados
Às reais metáforas.

Vivo.

E amo, escrever.

ACM




ANDAR, ANDAR




Ah, suave é ser sozinho
quando o perfume do vento
não nos traz melancolias
e andamos ao crepúsculo
apenas com a vontade
de andar e ir andando.
Atrás, saudade nenhuma
e nenhum desejo à frente:
somente o vento indeciso
a nos brincar nos cabelos
como os dedos de uma extinta
namorada, embalando
o coração quase sereno,
quase alegre – e um tanto triste.
Sejamos como uma eterna
despedida, pois os laços
– de amizade, de ternura –
são algemas invisíveis
ancorando os nossos passos
na estação já percorrida.
E não volvamos o rosto
para os rostos indistintos
– e já distantes – do cais:
eles vieram chorar
nossa morte diante deles.
Sim, morremos. Nada mais
nos reclama nesse porto.
Fantasmas que aqui nós somos,
não velaremos as cinzas
do cadáver que ontem fomos.
Seguiremos adiante,
não bem necessariamente
em frente, mas para onde
quiserem os nossos passos
vagabundos, indolentes,
sem saudades, sem desejos,
nem recordação de beijos
– se acaso os tivemos –,
com os corações vazios
e livres como esse vento
preguiçoso acarinhando
as profundas águas mansas
que refletem nossas sombras.
Sim, suave é ser sozinho,
tendo os seixos como cúmplices
e as flores por confidentes,
seguindo, seguindo sempre,
quietos sobre a estrada,
solenes sob as estrelas,
e sem desejar mais nada
que não seja andar, andar,
caminhar por tudo e sempre,
mas com a condição expressa
de ser – sim! – dos nossos passos
o nosso rastro e o caminho
entre auroras e poentes.
Ah, suave é ser sozinho.

Otto Leopoldo Winck

2020


2020
vai ser o seguinte

mais um ano
mais dois
mais três
mais mil
até que tudo que entristece
que empobrece
que aborrece
vá pra puta que pariu
...
antonio thadeu wojciechowski


Sim, sim, você é poeta que rima,
Olha pros lados, pra baixo e pra cima.
Pode rimar até com Getúlio Vargas
Nas suas horas doces ou amargas.
Pode rimar sobre Nelson Rodrigues
Com suas amigas, amigos e amigues.
Pode rimar mesmo com Eurípedes
(Aquele que te pegava nos velocípedes).
No entanto, contudo, com Carlos Lacerda
A rima não sai como você gosta?
Será que esse legado você não herda?
Ou acha esse final uma grande...

proposta?

Ijs

poema à irmã Aurea Leminski




minha hermana
meio Margareth Thatcher
Madre Teresa
Marilyn Monroe
Chiquita Bacana
me ensinou a dançar e ouvir rap, jazz, mantras
me cuidou nos fins de semana
brigou para escovar os dentes e ir pra cama
me ensinou que
a gente não
mas a vida sim
assobia e chupa cana
o que sou eu
mas não em mim
nela
emana

Estrela Ruiz Leminski

(Poesia é não. São Paulo: Iluminuras, 2011.)

Fonte : Ivan Justen Santana

Como assim "nem Jesus agradou a todo mundo"? A mensagem cristã é desagradável, sim: você deve perdoar, amar o próximo da mesma forma que ama a si mesmo, aliás inclusive amar os inimigos e oferecer a outra face ao levar uma bofetada.

Jesus ainda não foi digerido. Jesus é a náusea do mundo.


Ivan Justen Santana

O Coração É




O meu coração é uma criança num balanço
Atinge alturas altíssimas
e na descida o frio na barriga
até encostar os pés no chão
espalhando folhas
e levantando nuvens de poeira

O meu coração é um feirante em dia de frio intenso
De repente, lá na esquina, uma velhinha aponta com
Sua capa de chuva e o seu passo leve
Um e outro, um e outro, ele espera paciente

O meu coração é um farmacêutico sem diploma
que distribui receitas para doenças incuráveis
com a convicção dos crentes ateus,
mas às vezes acerta que a febre vai passar

O meu coração é o incrível Hulk destransformado,
pegando aquele ônibus para uma outra cidade
com aquela mochila nas costas
e o monstro no espírito

Assionara Souza