quarta-feira, 28 de setembro de 2016

ESTATÍSTICA


nasceu morto-vivo
um naco de bacon roxo enforcado nas tripas da mãe
a parteira cravou: o pivete tem 89% de chance de não vingar
o pai mastigava pinga com água sanitária
desintegrou-se numa segunda-feira cinzenta do mês do cachorro louco
a vizinhança cantou a bola
: o pé de cana tem 73% de chance de desaparecer num buraco de tatu
primeiro beck aos 5 anos
aos 8 foi expulso da escola depois de dar uma tesourada nas tetas da Tia da cozinha
a diretora previu
: o pequeno psicopata tem 68% de chance de se transformar
no Inimigo Nº 1 da Humanidade
veterano da FEBEM aos 13 anos
aos 15 deu um tiro na cara de um cara durante um baile funk
os comerciantes de Parelheiros sentenciaram
: o delinquente tem 90% de chance de ser fuzilado por um gambé de chico
foi encontrado com a boca cheia de formigas num terreno baldio do Capão Redondo
a Secretaria de Segurança Pública anunciou
: 35% dos indomáveis descansam em paz no céu das estatísticas

Vlado Lima

terça-feira, 27 de setembro de 2016

DOURO


Cai o sol nas ramadas.
O sol, esse Van Gogh desumano...
E telas amarelas, calcinadas,
Fremem nos olhos como um desengano.
A cor da vida foi além de mais!
Lume e poeira, sem que o verde possa
Refrescar os craveiros e os tendais
De uma paisagem mais secreta e nossa.
Apenas uma fímbria namorada,
Vermelha e roxa, se desenha ao fundo
O mosto de uma eterna madrugada
Que vem do incêndio refrescar o mundo.
Diário I

Miguel Torga

SEMPRE HAVERÁ UM NOVO AMANHECER


Sempre haverá um novo amanhecer
Após noites de chuvas tempestuosas,
Acompanhadas de raios assombrantes,
Nas caladas das noites escuras apocalípticas
Sorria...
Mesmo quando não houver sinal de luz lá no fundo do túnel
Sorria
Creia...
Que sempre haverá
Sim sempre haverá um novo amanhecer
Sorria...
O Sorriso não é o melhor remédio
Ele é a poderosa arma para a defesa
Após um declínio da queda causada pelo inimigo!
Levante e ande e creia que...
Sempre haverá um novo amanhecer
Depois duma noite de trevas tenebrozas
Depois duma noite escura fantasmagórica de breu
Sempre haverá um novo amanhecer
Sempre haverá um novo amanhecer
Após duma noite de lua cheia radiante vertida em lua de sangue
Um crepúsculo surgirá,
Lá no céu do azul celeste!
Ainda que sozinho estiveres,
No meio do mar em noites de silêncios dormente
A sós no meio do lago medonho da noite
Sempre haverá um novo amanhecer
Num crepúsculo da aurora do Sol Nascente do Leste!

Moisés Antônio

Cangalha


Sentia selvagerias
Sofisticados horrores reeditados
no campo-da-morte – o corpo
Era um arranhar de vísceras,
afogamentos miúdos contra a
correnteza dos fluidos.
Cavar, cavar, cavar estranhamentos
(arrancar células e palavras mortas)
até sangrar a alma,
assim ia .
As tardes escorriam
na grande vidraça da dúbia janela
junto aos poderes que sumiam
na rangedura dos dentes
... ao de quimeras
.
E, na entrada das noites
aparecia o derramamento súbito
da escuridão mesma -
rosário esculpido no outrora
rezando o destino
Se-ia juntando os pedaços
nos ermos, nenhuns, silêncios...
em nadas vivendo
Melaço corria da espada – seu fio
Há um senhorio com mãos feito enxada
abrindo um vazio nos contos de fada
(um amor senil!)
No curso das desdobraduras
(dormente, dorsal, dornalha)
um feixe de siso, percorre a loucura
em chiste (selvagem perdido)
- num ato, palavra, irônico riso ou rito -
lhe salva a cangalha

Maria Regina Alves. Vidráguas

domingo, 25 de setembro de 2016

S. Martinho de Anta, 22 de Setembro de 1940 — O dia foi em Guiães, a caçar e a vindimar de manhã, e a ler de tarde versos num cemitério que só visto. Se um dia vier a talho de foice, hei-de escrever uma página sobre estas necrópoles transmontanas, de granito, aninhadas no cimo de uma serra, com ar de quem lava as mãos disto da vida e da morte.

Miguel Torga

Diário I

SOLIDÃO CRIADORA


Dorme e sonha a meu lado
Tão alheia de mim
Que me sinto um amante abandonado
Acordá-la?
Gritar?
O poeta é uma angústia que se cala,

A cantar.

Miguel Torga

Diário V

Negro forro


Minha carta de alforria
Não me deu fazendas,
Nem dinheiro no banco,
Nem bigodes retorcidos.
Minha carta de alforria
Costurou meus passos
Aos corredores da noite de minha pele.


- Adão Ventura, em "Os cem melhores poemas brasileiros do século". [organização Ítalo Moriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 275.

O polichinelo


O seu segredo era como o dos outros.
Seus olhos eram de vidro azul
e na boca vermelha
o riso da ironia.
O humor profundo, amargo e doloroso
vinha de sua boca;
o riso da sabedoria
e do desespero
gritava da sua boca aberta em sangue.
O riso do polichinelo
vinha do coração ausente, era uma advertência.
era apenas o riso
e falava de um mundo
maior que sua alma.
- Paulo Plínio Abreu, em "Poesia". 2ª ed., Belém: EDUFPA, 2008.

Editorial - Eduardo A. Rueda Barrera. http://ow.ly/jXJ3304wuII

Vencedor


Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E á rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
.
- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias". 42ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

a grande tristeza


● se não pode a beleza erguer e sustar ●
● o fino fio q se retesa e agora se parte ●
● isso é caminhar entre cinzas diz a beleza ●
● quase rindo afastando os ossos a carne o ar ●
● q se perdeu o esperma na pele q se estragou ●
● diz a beleza quase rindo abrindo o gozo sim ●
● a beleza q se arruinou não toca mais a pele ●
● nem o esperma sobre a pele rindo os olhos ●
● abertos abismados o esperma jorrando ●
● é branco é cristal é quente dizia a beleza ●
● fenda como tarantula q se aninha e vela ●
● pas q no teto espalham o ardor vivo do rio ●
● mormaço das lamas do mangue o corpo ●
● violento sangrado do rio nem a breve pele ●
● coberta e nua de esperma entre o pubis ●
● o bico liso dos seios entre a erma barriga ●
● tesa e a lingua fina q se afasta entre dentes ●
● isso q morde e se gasta no desejo aquele ●
● entre as pas no teto sob o calor do rio gotas ●
● de suor como serpentes frias o grilo agora ●
● treme saciado e sereno inseto a fome sim ●
● q tudo devora a escadaria a hora a paga ●
● a hora assim a beleza se entrega sorrindo ●
● ?como é possivel tudo isso findar assim ●
● como se nunca tivesse existido e ja ja ●
● desaparece quando a carne transparece ●
● quando a carne os ossos se tornam o rio ●
● o mangue as arvores tortas a cada torção ●
● o corpo o gozo o nectar eis a alegria rindo ●
● quase dançando pele contra pele a pele ●
● da cidade ruas no sabor vivo do mangue ●
● entre as pontes a lama viscosa esperma ●
● seco contra a vidraça do tempo a beleza ●
● q se gasta tanto q some devorada sem ser ●
● nem mesmo o q foi nem a hora nem agora ●
● isso q se perdeu e não não vai retornar ●
● todas essas coisas pequeno idiota diz ●
● a beleza no grande tempo se passaram ●
● agora nem cinzas pra brincar como um cão ●
● são mais possiveis nem a corda retesada ●
● entre margens q se dissolveram fecha então ●
● teus olhos e aceita logo a escuridão ●
*

Alberto Lins Caldas

minha pessoa nessa noite


● oh meu deus oh meu deus ●
● diz minha pessoa vendo chegar ●
● perto demais perto demais diz ●
● minha pessoa apavorada e nua ●
● por dentro da noite nessa esquina ●
● oh meu deus oh meu deus berra ●
● minha pessoa pra baixo pra baixo ●
● não ha nada nada mais a fazer ●
● senão tropeçar cair cair e cair ●
● berra minha pessoa nua nua ●
● nua demais é sempre muita merda ●
● merda demais berra minha pessoa ●
● apavorada e nua oh meu deus ●
● oh meu deus q merda agora foi ●
● um olho depois serão as pernas ●
● oh meu deus oh meu deus ●
● se restarem os dedos ha o piano ●
● berra minha pessoa apavorada ●
● depois os ossos depois os aneis ●
● os amigos os inimigos os cães ●
● todos os gatos da cidade se vão ●
● oh meu deus oh meu deus nua ●
● sempre nua e apavorada agora nua ●
● sem outro olho as orelhas e sangra ●
● nua aterrada e nua oh meu deus ●
● oh meu deus berra minha pessoa ●
● agora sem as pernas sem os braços ●
● se pelo menos ficassem os aneis ●
● os aneis oh meu deus oh meu deus ●
● nem a lingua nem mais a lingua ●
● oh meu deus oh meu deus berra ●
● minha pessoa sem saber o q fazer ●
● assim sem nada de minha pessoa ●
● dentro dessa noite escura demais ●
● sem nem um pedaço nem a lingua ●
● os olhos oh meu deus oh meu deus ●
*

Alberto Lins Caldas

The affair é uma série incrível


The affair é uma série incrível. A primeira temporada estreou no Netflix... E já vi a segunda, por puro desejo.


Para quem escreve, é possível reconhecer-se em vários momentos... Sem spoiler, mas é só atentar para a estrutura de cada capítulo. É tudo ficção, mas há uma ficção dentro da ficção. Uma explosão viva em um cenário estupendo (Montauk). Dois casamentos supostamente sólidos abalados por um acontecimento: a chegada de uma família a Montauk, para passar mais um verão. O pai é um professor pobre que casou com a menina rica, tiveram quatro filhos, ele lançou um livro e quer terminar o outro, mas, não tem dinheiro para um refúgio de férias e vão para a casa dos pais dela. Na chegada param em um lugar para comer. E acontece um daqueles encontros que mudam a vida, quando ele conhece a garçonete do lugar. Por ora é só, mas devo dizer que a série é densa, poética, erótica em um nível acima das séries normais. É apresentada de uma forma rara, em cada capítulo duas versões do mesmo evento (atentem para os capítulos do escritor), acho que fiquei entusiasmada... e triste, e angustiada, e excitada e feliz em alguns momentos. A vida não é mesmo para amadores, nem o amor.

Bárbara Lia 

minha pessoa e os crocodilos


● minha pessoa tem sido quase ●
● uma grande pessoa muito sabia e satisfeita ●
● porq descobriu q crocodilos ficam aqui ●
● com a boca aberta ao sol ●
● assim minha pessoa penetra nessa bocarra ●
● enquanto dorme o crocodilo ●
● vai comendo a garganta e tudo ao redor ●
● come os pulmões do crocodilo q dança ●
● se debatendo nessa morte indelicada ●
● tão doce quando minha pessoa devora ●
● a dor o coração o figado o baço os rins ●
● quando volta pra terminar a lingua ●
● abrir a boca do crocodilo e olhar o nilo ●
● q se estende como uma escrava gasta ●
● diz minha pessoa querendo gargalhar ●
● inda mastigando a longa lingua ●
● do crocodilo devorado por dentro e alem ●
● porq logo logo minha pessoa devora ●
● a boa carne do cu e do rabo do crocodilo ●
● a palma das mãos braços e coxas da carne ●
● deliciosa do crocodilo e vai dormir ●
● satisfeita e tão saciada q vai sonhar ●
● como se minha pessoa fosse nessa noite ●
● nada menos q o farao e sua vasta familia ●
● mas minha pessoa tem medo desse ●
● sono porq essa fome é a mesma do farao ●
● a mesma fome da familia do farao ●
● q enquanto minha pessoa dorme ●
● com a boca aberta pode entrar pela boca ●
● de minha pessoa devorando tudo ●
● adentro ate o fim como fazem os faraos ●
● com escravos usados demais depois dos dias ●
● q de repente desabam sem nada por dentro ●
● sem nada por fora devorados sem saber ●
● quando nem por quem foi devorado o escravo ●
● aos pedaços sem nada dentro sem nada fora ●
● enquanto la distante o farao e sua familia ●
● passeiam tomando vinho de tamaras ●
● enquanto escravos esmagam carnes ●
● porq não ha hora q faça cessar o vinho ●
● de tamaras nem as carnes esmagadas ●
● pro farao e sua grande familia ●
● se não fossem as carnes e o vinho ●
● o farao e a familia faminta viria flanando ●
● pra boca de minha pessoa devorar ●
● de minha pessoa pulmões coração e baço ●
● figado rins o vasto rabo e o cu de minha ●
● pessoa enquanto minha pessoa dorme ●
● mas isso haveria de ser menos q ninharia ●
● porq minha pessoa transfigurada andaria ●
● sempre entre crocodilos homens e escravos ●
● levando a todas as margens do velho nilo ●
● e alem a fome q so minha pessoa e a familia ●
● do farao conhece como a sublime alegria ●
● a vida q devoramos sem nos saciar a carne ●
● de crocodilos e escravos desde a garganta ●
● os pulmões o coração o figado o baço ●
● os rins vindos gulosos pra lingua ate ●
● a boa carne do cu e do rabo adentro e alem ●
● porq essa é a lei da nossa fome ●
*

Alberto Lins Caldas

RABISCANDO O QUÊ?


A história é longa, a frase curta:
à pomba da paz, quase morta,
amarga murta
ronca a fome, tudo se come
Inspiração é água em ebulição:
poemifica-se antes que morne
e à calmaria torne
água fria se nega à poesia
À sombra das mamoranas,
eis o que eu reescrevia...
naquele dia,
Émile.
____________

(Ildefonso de Sambaíba: 11.08.16)

EVOCAÇÃO PASTORAL DO MENESTREL


Surges nu, de arrabil, no tempo azul e alto,
quando as grandes palavras parecem coroar-se
de beleza alcançada: vai em meio a caçada:
soltaram-se os falcões e gerifaltos,
que enfiam através sonoras torres
levantadas no ar a sopro de bucinas!
Glorioso no ademã dos teus cantares,
teu corpo evolve
róseos meandros
em volumes brandos, arredondando
as juntas, à sombra
das romãs - e exorta a claridade
dos cimos: ei-lo subindo
além dos gerifaltos!
Por um momento, aborrecendo olhares doces
as peripécias gárrulas da faina, as bem-talhadas
ondulam por teu corpo, e aos tornozelos teus
colando os lábios de amaranto,
suspiram bálbuces.
Logo, porém, sentido em meio às coxas
um úmido pulsar de línguas tesas
precipitam-se quentes, intumescendo
enquanto correm,
à Marcha Triunfal dos Cem Faisões!
Eis que te abates sobre os seios do instrumento,
chorando por extenso a luz que foge ao corpo
e galga, heróica, junto aos clangores da vitória,
as grandes nuvens suseranas e estivais,
as Nuvens - mirante de fanfarras sobre um corpo gaio!

- Décio Pignatari (Rumo a nausicaa/Noigandres 1 - 1952), em "Poesia Pois É Poesia - 1950|2000". Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, p. 67.

viajante,
já naufraguei em tantas almas,
oceanos turbulentos,
eu e meu barquinho à vela
naqueles mares estranhos
onde sempre me atirava
acreditando nos mapas, nas cartas náuticas do ser.
.
viajante,
já naufraguei em tantos outros,
acreditando que o amor me apontaria
as ilhas,
os portos seguros,
que os ventos seriam a brisa salgada
batendo-me no rosto nu, e
óh!, como foram tantas
as tempestades
.
viajantes,
tantos naufragaram
nesse mar de mim,
aturdidos pelas calmarias, as águas sem vento,
aturdidos pelos furacões, as águas em furor
selvagem,
mares de mim que eu desconhecia,
que dirá os pobres viajantes?
.
e eu aqui, sendo barco e oceano,
desejos de pôr-me ao largo
e receber o viajante
.
conhecer e ser conhecido,
enxergar e ser enxergado,
amar e ser amado,
.
navegar e ser navegado,
.
essa coisa rara, esse mistério,
do ser barco e de ser mar,
.
ah, vida!
.
como navegar
é preciso!
.
******
.
(eduardo ramos)


MALDIÇÃO DE DUAS LETRAS


Estou convencido que as letras "P" e "M" representam gravíssima ameaça à democracia brasileira.
Senão vejamos:
Polícia Militar.
Qual a sigla?
PM.
Ministério Público.
Qual a sigla?
MP.
Medida Provisória.
Qual a sigla?
MP!!
A bem de nossa vida institucional, proponho a supressão das referidas letras ou a definição de que sua utilização só pode se dar em situações muito especiais.
Puta Merda.

Ihhh... Qual a sigla?

Gilberto Maringoni

quinta-feira, 22 de setembro de 2016


fique em silêncio
como um ramo seco
vem aí
uma primavera
a te florir


bárbara lia

domingo, 18 de setembro de 2016

'Brasilha’ da fantasia


*
Ninguém acorda com culpa na Ilha da fantasia,
ninguém se sente culpado na ilha da fantasia
e não ser de todo inocente
é sempre muito normal na ilha da fantasia.
Na ilha da fantasia não interessam
os olhos inocentes dos filhos antes de dormir
os filhos apontados na rua
o que dirão os colegas na escola
e as crianças dos vizinhos.
Não fere arde envergonha
o olhar confuso das crianças
ao ler o que sai nos jornais.
Vamos ao que importa na ilha da fantasia:
a gratificação a estabilidade
a comissão as garantias
o adicional os benefícios
os 18% que me cabem
se não vou aos jornais
e conto da parte que não te cabia mas você levou
na ilha da fantasia.
Eu te filmei eu te gravei
eu sei de tudo da tua
deliciosa doce vida,
portanto, morreremos de mãos dadas
abraçados
atirando uns nos outros
até que nos esqueça a fugacidade da imprensa
e nos confortem as mãos amigas da Justiça
o entendimento do digníssimo desembargador
a interpretação da lei no tribunal superior.
Venha a meu gabinete
passe em meu escritório
vá com sua mulher lá em casa
daremos uma festa
faremos um jantar
quem sabe outros agitos até de manhã.
Ninguém é culpado na ilha da fantasia
ninguém deve nada
à mulher que espera o ônibus
e não combina bolsa e sapato,
à outra que atravessa a BR
longe da passarela,
nenhuma explicação merece o homem cansado
que sai tão cedo e volta tão tarde
levando no rosto
o resto de sonho desfeito.
Todos deitam sem culpa na ilha da fantasia
depois que se apagam as luzes lilases das festas
que se esvaziam as travessas
sossegam-se as bebedeiras
calam-se os vômitos
encerra-se o pó
e a paz reina envergonhada.
*
André Giusti

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já é setembro, né?
então disfarça
e pega no jardim do prédio
alguma flor que te sirva no cabelo.
mas vá logo
antes que venha outubro
e apareça o síndico milico reformado
explicar com detalhes que
a convenção do condomínio
proíbe o roubo de flores.
depois, vista aquela saia laranja
de estrelas lilases e círculos vermelhos
que te mostra acima dos joelhos,
e ao piano
toca Chopin para animar e alegrar os anjos.
eles andam cansados e tristes por causa desse mundo
indiferente às crianças palestinas mortas na guerra
às crianças judias mortas pela estupidez das bombas
às crianças mortas pela insensatez da fome na África
às crianças sírias que aparecem mortas na praia
às crianças pobres abandonadas pelos pais miseráveis
às crianças ricas abandonadas pelos pais ocupados demais.
os anjos estão desiludidos com o mundo indiferente às crianças às crianças às crianças
e aos velhos espancados pelos filhos e netos queridos
às mulheres tratadas aos chutes
aos homens sozinhos sem sonhos
sem mulheres que os entendam chorar.
colha flores, toque piano,
porque a morte, quem sabe, em algum ano
poderá vir na primavera,
mas enquanto ela não vier
haverá chance pro síndico
para todas as crianças
e todos os velhos
mulheres
caras solitários,
afinal, é setembro, e sempre dá
mais vontade de viver e ter esperança.
*
andré giusti, 2015

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"Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada."
.

- Caio Fernando Abreu, em “Os Dragões não conhecem o paraíso”, São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Trecho de Voando pela Noite (até de manhã )

“O drive-in não passava de um terreno baldio e escuro, cheio
de árvores. O proprietário, sem dinheiro para construir um motel,
ergueu uma porção de boxes separados por muros de cimento, onde
se estacionava para namorar. O preço era uma bagatela e dava para
ficar ali até o amanhecer. A única exigência era entrar com os faróis
baixos para não iluminar nenhum par de peitos no carro dos outros.
– Onde fica a tela desse negócio? – Evelyn perguntou.
– Na sua imaginação. – ele respondeu, sem acreditar que ela
fosse tão inocente.
– Mas e o filme? – ela insistiu.
– É o mesmo. Há milhões de anos.
– As pessoas vêm aqui para transar?
– Não necessariamente.
– Mas num lugar escuro como esse, um homem e uma mulher
não ficam dentro do carro apenas conversando e escutando rádio...
– Provavelmente não.
– Então o que a gente vai fazer?
– Conversar e escutar o rádio. O que você acha?
– Não acho legal.
– Então, só resta uma opção.
Ela sorriu. Chegou mais perto dele. Evelyn tinha os seios lindos.
Talvez mais lindos que os de Maggie.”
André Giusti

Livros da minha vida 10 - As Forças Desarmadas


*

Por ocasião de feriado de sete de setembro, postei no feici búqui que meu desfile do Dia da Independência seria com trabalhadoras, campoenses, médicos, professoras e por aí vai.
Nada contra os militares, mas até hoje não entendo porque, sendo a pátria e sua independência (?) lugar e conquista de todos, porque, então, apenas um estrato da sociedade deve estar representado na marcha comemorativa?
Bem, mas não é sobre isso que quero falar.
Encerrei o post daquele dia avisando que meu desfile seria o das forças desarmadas, e é aí que entra o que tenho a dizer.
As Forças Desarmadas foi um dos belos livros de contos que li em minha vida, ainda bem jovem, mas o curioso é que só cheguei a essa conclusão algum tempo atrás, já bem mais pros 50 do que pros 40.
O autor, Júlio César Monteiro Masrtins, apresentava um pequeno programa sobre livros e literaturea na primeira rádio em que trabalhei em minha vida profissional, ainda como estagiário, a Estácio FM.
Em uns dez ou doze contos (não lembro bem, não tenho mais o livro na estante, apenas em minha lembrança), Júlio César apresenta uma visão crítica da juventude da época - primeira metade da década de 80 -, perdida nas drogas e no tal vazio existencial da falta do que e de quem amar, oprimida pela agonizante ditadura militar e já escravizada pela indústria cultural.
Acho que o livro tem um cheiro de Caio Fernando Abreu, grande influência da época. Se por acaso você aceitar minha dica e se interessar em ler, diga depois se achou o mesmo.
Júlio César Monteiro Martins escreveu mais livros. Lembro que li outros dois, mas me passaram em branco.
Fiquei anos sem ter e procurar notícias dele. E sem lembrar de As Forças Desarmadas.
Até que, há não muito tempo, soube pela internet que fora viver na Itália ainda nos anos 90, me parece.
E que falecera em 2014.
Impactado pela notícia, o nome do livro pulou automaticamente de velhos fichários mentais, trazendo pela mão seu conteúdo e seu valor.
Saiu do ostracismo de minha memória de meia idade para desfilar na avenida chamada Livros da Minha Vida.
*
André Giusti

sábado, 17 de setembro de 2016

 “Eu precisaria de alguém que me ‘ouvisse’, mas que me ouvisse sentindo cada palavra como um tiro ou uma facada. Porque é assim que eu ouço as palavras ligadas a esta história. Cada uma tem seu significado sangrento, no estranho ‘Sertão’ que venho edificando aos poucos, ao som castanho e rouco do meu canto, como um Castelo de pedra erguido a partir do Sertão real.”
.
- Ariano Suassuna, em “História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão ao Sol da Onça Caetana”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977, p. 80.


Do universo à jabuticaba

"Senti que o tempo é apenas um fio. Nesse fio vão sendo enfiadas todas as experiências de beleza e de amor por que passamos. Aquilo que a memória amou fica eterno. Um pôr do sol, uma carta que recebemos de um amigo, os campos de capim-gordura brilhando ao sol nascente, o cheiro do jasmim, um único olhar de uma pessoa amada, a sopa borbulhante sobre o fogão de lenha, as árvores do outono, o banho da cachoeira, mãos que seguram, o abraço do filho: houve muitos momentos de tanta beleza em minha vida que eu disse: ‘Valeu a pena eu haver vivido toda a minha vida só para poder ter vivido esse momento. Há momentos efêmeros que justificam toda uma vida’."
.

- Rubem Alves, em “Do universo à jabuticaba”. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010, p. 144.
Contemplando nas cousas do mundo desde o seu retiro, lhe atira com o seu ápage, como quem a nado escapou da tormenta
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
.
- Gregório de Matos, in 'Obra poética'. (Org.) James Amado. (Prep. e notas) Emanuel Araújo. (Apres. ) Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.


ando pensando


A Ronda Noturna


Meu ipê- amarelo


Dentro da noite veloz


Se morro
universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos - da - ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó -
dos - andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.
Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.
Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

- Ferreira Gullar, em "Dentro da noite veloz", 1975.

Homenagem a Carolina


Paisagem sexual


Maciços de catingueiras
salpicados nos tempos de chuva de vermelhos
ao sol como pingos de sangue fresco:
e de amarelos vivos
e de roxos untuosamente religiosos.
No verão, chupados pelo sol de todo esse
sangue e de toda essa cor
e quase reduzidos
aos ossos dos cardos
e a um mundo de formas esquisitas
de ascéticos relevos ósseos,
de meios-termos grotescos entre o vegetal e o humano,
de plágios até da anatomia humana
mesmo das partes vergonhosas.
Não haverá paisagem como esta
tão rica de sugestões
nem animada de tantos verdes,
tantos vermelhos, tantos roxos, tantos amarelos,
e tudo isso em tufos, cachos, corolas e folhas.
Como os cachos rubros em que esplende a Ibirapitanga
e arde o mandacaru,
como as formas verdadeiramente heráldicas em
que se ouriçam os quipás
Como as folhas em que se abrem os mamoeiro,
Como as flores em que se antecipam os maracujás,
como as manchas violáceas das coroas-de-frade.

Gilberto Freyre


- Do livro "Poesia reunida", ed. 2000.

No Terminal do Hauer, Curitiba


Posso me desfazer de alguma memória crivada,
Aferroada na alma, alongada e infértil.
Posso desobstruir o passeio,
Levando dele o que secou, o que passou.
Posso pinçar uma dor revoltosa,
Montada sobre o dorso do sonho.
E dos nítidos lanhos, traçar uma arcada na pele,
Um desenho, uma pintura em vermelho.
Transformar em signo, música,
Místico enredo, trama de ave canora.
Mas é da sua alma que tudo rebenta.
Das suas mãos que tudo escoa.
É do que você evoca que aconteço.
Não vou a parte alguma, amor meu,
Enquanto ouvir você dentro de mim.

Rosa Maria Mano

O Pescador e o Poeta


Ricardo Pozzo

Já Curitiba é uma farsa midiática, cuja burguesia, quase extinta, sofre do complexo do Barão do Serro Azul, reza para Deus, acende vela pro Diabo, mas mantêm-se neutra em tudo, menos na manutenção do próprio poder.
Matamos os índios, excluímos os negros, o que nos restou foi o sertanejo [mistura de negro, índio e português] mas do qual sentimos um certo acanhamento em pertencer.



O Discófilo


Sonho no corpo do poema


há rosas e caminhos de cereja em teu corpo.
suaves maçãs aéreas de delicados perfumes
florescem em teus seios como um olhar azul.
percorro densa alameda de caminhos
no balé de carícias que envolvem minhas mãos.
tateio calidamente tua pele de poema
que viceja acesa na sutileza alada de teu púbis.
sendas despertam a flora úmida.
afogo minhas palavras na tua língua edênica,
e sou pleno sonho no sonho lúcido de teu corpo.

(poemas são tatos e delicadeza de caminhos)

Sérgio Villa Matta

Historiador do Presente (2)


SEIS DORES DE SOLIDÃO E O MAR


Por Lívio Oliveira

(I)
Rochedo e sono
Inaugurada a tarde interna – esforços bravos
firmam-se em mirar entre as palhas secas: vidas
lá longe o frio se arrasta leva a folha ao fundo
dos meus olhos que explodem ao meio-dia ainda
em cataclisma em catapulta aleatória.
Há os ventos que penteiam a duna inteira
e as faíscas que pulam das areias duras
se aliam ao mar que cabe dentro hostil
armando os templos imemoriais
enfrentam rochas: barco só e tosco.
(II)
Barulho e caverna
Ouve os sintomas das marés que avançam
molhando os corpos das razões e so(m)bras
os sais brilhosos das costas e testas
não refletiram o marco firme o umbigo
do oceano que adentrou o milênio.
Força agora um tempo estranho e roto
de multidões de caranguejos vagos
cascas que rolam soltas – superfície
prateada: a juba cheia atlântica
recuada ante os mais fortes ventos.
(III)
Despertar atônito
As tais surpresas transportaram em ondas
aterrissaram em margens assimétricas
foram tragadas do mar alto em torno
vieram brancas como voz em vibrato
as velas ornamentais dos inibidos passos.
Estar à margem não era então vergonha
havia um ponto em que engolia algas
alimentava a luz do sol tardia
a primitiva explosão em mar vulcânico
que se espalhava em sobejos ardidos.
(IV)
O delírio aceso
Custava tanto entronizar o santo
dos rudimentos que chegavam em barco
assoviava então canções de esperanças
mergulhos sonhos que escalavam locas
onde as cores afiavam os dentes.
Até a tona o ritual seguia
incandescente dentro dos pulmões
robustos peixes rotundas aves
chegavam remos aos portões da noite
salvando o dia ainda não guardado.
(V)
A voz devagar
Era no mar e não havia espasmos
que impedissem a correnteza bruta
escorregando em meio aos corpos nus
carnes abertas seios de sereias
bocas imensas de arrecifes negros.
Tudo era tragado e o urro lento e forte
ditava horas para os navegantes
de dentro a pedra e a canção de fé
de uma criança solitária e inerme
ousada em crença de retorno à terra.
(VI)
A dor ainda
A intensidade da dor lancinante
causava estrondos nas falésias – montes
de pés sobre o mar pisando a enseada
redesenhando as posições dos homens
que se jogavam em loucas aventuras.
Não eram incautos eram somente ilhéus
que se lançavam das graves alturas
buscando rotas que acalmassem prantos
feridas que se rasgariam ao vento
o sangue: mistura ao mar e ao sal.
(VII)
Derradeira ilha
Apascentada em luminosa estrela
virou o raio a direção eleita
até o ponto em que o brilho elevava
a nova fé que aproximava margens
demoliu dores resgatando o sonho.
Os continentes até então distantes
se religaram estreitos monumentos
vencidos demônios de escurecidas almas
o sol retorna à margem à praia ao dia
e o que era ilhado agora é continente.
_________
Poemas publicados na revista "Barbante".


G.G.Flores & R.T.Gonçalves

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Referências Bibliocráticas

Novelo
Zelo
Arte e desvelo da consciência

A ciência do léxico inexistir
Como elenca às pencas
Às telas
Cadelas
Do eterno lodo do devir

Não demoro
O que oro
O que silencio
Metro
Cadência
Norma, forma, torna
A se gerir

Sociologia tácita
Tela flácida
Acenando nádegas a mim
Suor do povo bobo
Livros que leio todos
Entonação da voz

Pois sempre o espetáculo
Do bom-gosto
Não contraditório
Com seu princípio normativo
Inerente
Imanente
Gente
Sente
Qual meu coração

Elucidar novamente
A constituição
Reescrevê-la, sem lê-la
Um parágrafo sequer

Escreveria,
Sim escreveria
A caneta
Preta
A caneta
Azul
Caneta tenta
Lenta ao sul
Caneta vereda cerda
Ao norte em ode ao céu anil

Se quis reescrever o Brasil
Se tornou a esfacelar a moeda
Que nos provém o pão
Com os sem-grão afã de ser
Qual lerda herança que não tarda
A usar a farda do refrão
- Que entoarão, em pensamentos -
Dentro o momento atento
Ao léu que o céu vive querendo:
Amar a dois, depois e sem os bois
Manipulados pelos mesmos
Parlamentos.

Olhe para a sina
Da Argentina
Será o revide da estirpe e bile
- Do Chile -
Ao Brasil que copula, enjaula
- que engula - em aula
O infante semblante
Em fauna humana que imana
Ao norte da bandeira
Que cobre

O caixão fétido da tela
Que subiu ao Olimpo
                      Roubar o fogo.

ACM

domingo, 11 de setembro de 2016

Lenda da Capivara Mágica do Parque Barigüi


                                                                   
Reza a lenda que quando o pirata e mago Zulmiro chegou em Curitiba, ele decidiu enterrar o seu baú de tesouros debaixo dos túneis das Mercês. Mas ele precisava de um bicho para ser o guardião desta arca. O problema é que os animais da região não aceitaram a sua proposta. Deste jeito este homem ficou triste e decidiu repousar debaixo de uma árvore quando, de repente, uma capivara disse-lhe:
- Soube que procura um animal para ser guardião do seu tesouro, que fica debaixo da terra e que nem a toupeira e muito menos a anta, que são do ramo ,aceitaram a sua proposta. Porém eu quero esta missão.
Desta maneira, a capivara virou uma espécie de vigia e permaneceu de tocaia nos túneis.
Um certo dia este bicho ouviu passos de ladrões se aproximando. Por isto, com medo de que os bandidos roubassem o tesouro, a capivara engoliu o baú. Desta forma os marginais se decepcionaram ao ver que no lugar de um arca, havia um animal e voltara para a superfície.
Zulmiro ao descobrir o ocorrido comentou com a capivara:
- Parabéns pela sua atitude!
- Em forma de agradecimento, como sou bruxo, libertarei você desta missão de ser guardiã debaixo do solo e darei de presente umas terras que no futuro se chamará Parque Barigüi. Lá você se proliferará em paz. Porém tem mais detalhes: além de receber tudo isto, você ganhará a vida eterna e se uma pessoa fizer carinho em seu pelo, ela receberá o tesouro que está dentro de sua barriga. Pois, no mesmo instante, você vomitará o baú precioso por inteiro.
Dizem que é por causa desta lenda que o Parque Barigüi é cheio de capivaras e que a capivara do tesouro continua lá esperando para ser tocada e desta forma presentear o felizardo.
Luciana do Rocio Mallon


TROVA


Se o silêncio revelasse
os segredos que contém
esta angústia em minha face
chegaria ao fim também.


PAULO MONTEIRO
Com os anos esquecemos que amávamos a gaivota
Sobre o mar azul, na tarde antiga
E procuramos briga por qualquer coisa
Nos desentendemos na cama, na política e na vida
Somos tão mais infelizes e nos achamos inteligentes
Passa um pássaro e a gente não vê
Passa um pássaro raro e a gente não vê
Passa um pássaro raríssimo e a gente não vê
Entretanto, amávamos a singeleza da gaivota sobre o mar azul
E nos achávamos nos azuis
E nos perdíamos nos azuis
Agora, cérebros rotos,
Olhos cansados, amarronzados de certezas
Vazamos um do outro, sem marés.


Lázara Papandrea

UMA CARTA DE SUICÍDIO

Ontem às 13:44 ·



Não me venha falar desses rifles armados em cima da mesa
nem das baratas voadoras que infernizam nossa desordem cotidiana
nem dos carrapatos que invadem meu corpo e me devoram como se eu fosse uma cadela
nem do sexo mal feito nem do beijo sem línguas nem da naftalina que surpreendemos entre os lençóis
nem me fale dos ratos que simularam voos nos canos e acabaram sufocados nos ralos dos banheiros
nem me fale dos matagais que cobriram os pardieiros
nem dos pardais mancos ou dos gatos que se jogaram do décimo andar
nem dos amigos e suas mandíbulas felizes para autorretratos
não me acorde se não te ocorre nenhuma notícia amena para me dar
antes encha meu café com ansiolíticos
diga aos inimigos que a burocracia me venceu
cubra meu corpo com escombros
sim esse mesmo que você ajudou a produzir
e se perguntarem diga que envelheci como os animais selvagens e inconscientes



 Marcia Barbieri

LARGO DA ORDEM


Domingo poético,
Filosófico e eclético.
Se achas patético
Não me importo
Faz parte.
A voz do violão
Foi a que tocou o coração
Dizendo em bom tom:
Acordes!
A vida é arte.

Angel Popovitz

A Greve dos Bancos e a Inocência


Moro em frente a uma praça florida e por isto costumo admirar a paisagem da minha janela. Neste domingo vi uma menina, de uns quatro anos de idade, com os braços grudados num banco e aparentando não querer sair do lugar. Pois, sua avó gritava:
- Laura, vamos para casa!
Então cheguei perto e perguntei:
- O que houve?                              
A menina respondeu:
- Eu ouvi na televisão que terça –feira terá greve de bancos. Por isto, tenho medo de que este banco da praça entre em greve e não queira voltar de novo. Eu até dou razão dele estar brabo. Afinal, ele está riscado e com uma parte arrebentada. Mas, eu amo muito este banco.
Desta forma, eu expliquei:
- Criança, não se preocupe, pois a paralisação será dos bancos de dinheiro, e , não dos bancos de praça.
Ao escutar isto, a menina beijou o banco e foi embora contente para casa.

Luciana do Rocio Mallon

Sincericídio



Sincericídio é falar a verdade
Justamente quando não deveria
Apesar da dura brutalidade
Sempre há um toque de poesia!

A amada fez uma simples pergunta:
- Será que estou feia e muito gorducha?
Ele respondeu de uma forma sincera:
Você está gorda, fedida e imunda
Precisa tomar logo banho de bucha
Daquela bem áspera e amarela

Este homem que disse a plena verdade
Fez sincericídio para a cruel infelicidade
Cometer sincericído e confundir sinceridade
Com a mais tosca e assustadora grosseria
É um erro que pode causar depressão e alergia
No final o ser fica envergonhado com tamanha baixaria!

Um homem cometeu um sincericído inocente
Quando viu a esposa do seu patrão idoso,
Que era uma menina nova e adolescente
Assim ele falou de um jeito nada jocoso:

“- Nossa, que mágica e divina maravilha:
- Sua esposa tem idade para ser sua filha!”
Ele cometeu sincericídio e perdeu o emprego
Sinceridade demais causa pânico e medo.

Luciana do Rocio Mallon

Hoje, os Alunos Querem “Likes” em Vez de Estrelas



Toda a vez que admiro as estrelas no céu, lembro de que na minha época de estudante, nos anos oitenta, as professoras do primário costumavam premiar os alunos que faziam todas as tarefas, corretamente, colando estrelas coloridas em cada lição feita nos cadernos. Por isto, quanto mais constelações uma criança tinha, nas suas brochuras, mais esforçada ela era considerada.
Recentemente fui substituir, por uns dias, uma amiga que era professora e para estimular o gosto pelas tarefas de casa, disse aos alunos:
- Colarei estrelas coloridas em cada lição de casa que vocês realizarem.
Logo, uma aluna disse:
- Em vez de estrelas, podemos trocar por outro prêmio?
Então respondi:
- Acho que sim.
A garota falou:
- Será que a senhora poderia dar um “like”, em cada foto do Facebook, nas páginas dos alunos que fizerem as tarefas?
- Afinal, professora:
- Ninguém aqui deseja ganhar estrela. Mas todo mundo sonha em ser um “pop star” e um “like” de uma pessoa como a senhora já seria um bom cometa, quero dizer: um bom começo.
Ao escutar estas palavras, simplesmente fiquei boquiaberta.

Luciana do Rocio Mallon

O Professor


                            
O professor é um ser imaculado e divino
Porque ensina a menina e o menino!

O professor torna-se um eterno mestre
Quando vira um excelente exemplo
Assim nasce uma estrela celeste
Que nunca se apagará com o tempo

O professor é filho da sabedoria
Com o sábio conhecimento
O professor possui a magia
De despertar o sentimento

Porém ser professor é perigoso
Pois ele, raramente, é valorizado
Não podemos deixar que este ser maravilhoso
Permaneça desprezado e deixado de lado

Tem professor que é agredido
Por alunos violentos e ruins
Que precisam ser punidos
Em castigos educativos sem fins!

O professor trabalha bastante
Para ganhar pouco dinheiro
O professor é a estrela brilhante
Que precisa ser valorizada por inteiro.

Luciana do Rocio Mallon

Lenda da Menina dos Lenços Coloridos da Reitoria

                                                   
Sempre sofri com um problema chamado rinite, que é a irritação crônica da mucosa nasal. Na minha juventude, este transtorno funcionava assim: se estava frio a coriza escorria demais, mas se esquentasse minhas narinas sangravam. Por isto até hoje vivo com nariz “vazando” e estou sempre com vários lenços pequenos no bolso para me socorrer. O problema é que, como sou distraída, sempre acabo derrubando estes meus lenços pelo caminho.
Quando eu era criança, meu nariz escorria bem mais. Porém, como os lenços de pano eram artigos caros nos anos 80, eu costumava usar rolos de papel higiênico para enxugar o catarro.
Em medos dos anos 90 fui para a faculdade, na mesma época em que surgiram as famosas lojas de artigos de R$ 1,99. Ao descobrir, um comércio destes, logo pensei:
- Finalmente poderei trocar rolos de papel higiênico por lenços de pano.
Então entrei na loja e comprei várias caixas de lenços coloridos.
Só que eu notava que a cada lugar onde eu ia, um lenço desaparecia.
O campus do meu curso era na Reitoria da UFPR e o meu melhor amigo chamava-se Príncipe, um cachorro comunitário, que morava naquele local e recebia ração dos alunos.
Naquela época, eu costumava aproveitar o intervalo entre uma aula e outra, para estudar em alguma sala de aula vazia.
Um certo dia, estava estudando com a porta fechada num andar diferente de onde era o meu curso. Quando, de repente, alguém abriu e porta e disse:
- Luciana, você está aí, né?!
Então notei que era uma colega e indaguei:
- Como você me achou?
A amiga respondeu:
- Foi fácil:
- Eu segui a trilha dos lenços coloridos, que você sempre derruba no chão sem querer. Isto me lembrou o conto-de-fada chamado João e Maria, onde ele faz uma trilha de miolos de pão. Mas, os passarinhos comem.
Algum tempo depois, após tomar Sol, senti que meu nariz estava sangrando. Mas, mesmo assim, fui estudar numa sala de aula vazia. Porém, comecei a sentir tonturas e dores estranhas. De repente Príncipe, o cachorro comunitário da Reitoria, abriu a porta com vários lencinhos meus em sua boca. Assim, ele largou os panos no chão e começou a latir. Deste jeito, algumas pessoas vieram me socorrer. Logo precisei contar a trajetória que o cão fez para me salvar, sem esquecer os detalhes dos lenços.
Por isto, após este episódio surgiu a lenda da menina dos lenços coloridos da UFPR.

Luciana do Rocio Mallon

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Projeto Epopéia


Que é o Poeta

“Que é o Poeta
senão o burlador das fronteiras da vida,
o constante fugitivo das dimensões do mundo,
o prodigioso funâmbulo, a dançar em cascatas e
labaredas?...
...o ouvido que melhor ouve o apagado e esquecido,
e recolhe sua informulada queixa e seu cântico
longínquo;
--o ôlho que mais longe avista,
até onde as formas ainda são simples esquemas,
onde tudo que parece o mais simples
se desdobra e entrelaça em trama profunda.
Sem ser Deus, nem profeta, nem sábio,
mas tudo isso, imperfeitamente e amargamente,
porque é apenas um Poeta.
Tudo tão claro, para ele, nos reinos do impossível,
e, fora dele, só obstáculos.”
(Trechos de um poema da Cecília Meireles para Jorge de Lima morto)

“Quem poderá explicar a origem de um poeta, esse raro inconcebível entre os homens, que faz renascer a língua com tanta perfeição como se nunca tivesse sido desvirtuada por milhões de lábios e destruída por milhões de letras até que ele, o único, com olhos perscrutadores, mirasse todas as coisas passadas e futuras com olhar elevado, envolvido em cores de aurora...

(trecho de Stefan Zweig em Despedida de Rilke, Munique)

‘Poeta é quem cria, independente de qualquer forma literária, o poema, esse organismo verbal que é um ponto de encontro entre a poesia e o homem”

(fiz uma pequena alteração em texto de Octavio Paz, em O Arco e a Lira)


Fonte : Rubens Jardim

palavra

palavra
te amo e não é pouco
te beijo mesmo não sendo - embora
não seja distância geografia
baia da Guanabara
teus olhos em minhas mãos
numa cama iluminada
como o sol de Araraquara
onde estivemos pele a pele
corpo a corpo boca a boca
voraz a carne no desejo
beijo tua alma nua
como essa lua lá fora
reluz nas águas de mamãe Oxum
quando o dia for agora
não seremos dois - nós somos um
Artur Gomes
www.fulinaimicas.blogspot.com

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Frágil


Há algo que no dentro de mim conspira
Um exército de mesquinhez e malfeitores
Alardeando que por hora não se inspira
Nos contos de fadas ou eternos amores

Há algo além, vago, à caminho do cerne
Que se ajoelha diante da batalha perdida
E ao corte da navalha que expõe a carne
Do reinado de um rei devastado em vida

Há algo frágil, e do meio pros cantos
Faminto de rubro vinho embrutecido
E da embriagada luxúria dos prantos
Dum Eu posto em taça, desconhecido

Copirraiti08Mar2014

Véio China©

Aos pedaços


Preciso repartir-me que nem elos
Engrenagens de aço na corrente
Articulando à direita, à esquerda
Fazendo parte do encaixe perfeito

É preciso doar-me, ser gomo
De laranja, da fruta do conde
Ser degustado nos paladares
Que me consumam vísceras

Essencial é ser a fera em natureza
Leão, tigre, no negrura da pantera
A ocultar-se em evidentes fatores
Que rujam cantigas da possessão

Crucial me é voltar à vida dos velhos sentimentos
À tensa ansiedade e aos suores na palma da mão
Que um dia me fizeram acreditar que houve amor
Naqueles olhos que sorriam ante inequívoca paixão

Copirraiti26Jan2014
Véio China©.



Amour & Amour (Contradições)


Talvez seja-me desafiador falar dos amores
Pois busco na amplitude do Id melancólico
A lírica textura dum poeta oculto nas frases
A justificar as frivolidades do seu sentimento

O poeta é um mentiroso, é a lágrima seca
É o olhar  dissimulados a dizer que chora
São covardias que  farsa poética disseca
Sem  traduzir dos olhos o tom que  ama


O poeta fará da alegria e tristeza o poema, morfologia
Cultas frases lapidadas à mercê de sorrisos e lamentos
Então saiba; Olhos são mais fiéis que a sensível poesia
Pois as letras não ordenam  lealdades nos sentimentos

E esse é o motivo de ser-me difícil escrever o amor
Mas se te aprazas o mel sorvido no relacionamento
Eu o te darei, pois sou as tantas infinidades do ator
Dantes ouças  meu coração e decifres o batimento

Já que poesia alguma irá confessar o quanto ama
Assim como revelado nos tons da minha pulsação

Copirraiti17Fev2014
Véio China©

SCS
É NA COR DO
TEMPO
QUE ME DECIFRA O
VENTO
E ELE ESCORRE
DENSO
AO ME ESVAECER
LENTO.
LENTO...
LENTO...

jan/2014

Véio China ©


http://poesiasdoveiochina.blogspot.com.br/

PERFUMES



Nos meus olhos há lágrimas. Lágrimas que olham para a porta da sala, testemunhas vivas das malas que há pouco exilaram junto de ti. Porém a ausência não tolhe o rastro do teu perfume favorito, teimoso, e que insiste ficar como seu eu fosse a viúva dum cheiro que fere e causa dor.
Não há como negar, me sinto a chaga do mundo, ferida que não cicatriza, dor que persiste, mas que me diz da vida lá fora e de sons como esses que eclodem na janela e que reconheço, pois são as gotas duma mesma chuva que inunda dentro de mim
Ainda parada à passagem da sala, penso, repenso, e é tanta dor, e o que faço?
Maldito! Tu não sais de dentro de mim! Nem nem tu e nem tua fragrância que meu amor abomina e que persiste dentro dos quartos e ganha os corredores a cada um dos meus passos, sufocando-me, confundindo, me assassinando.
Logo, me sinto mal e não mais quero respirar esse passado de poucas horas, então saio e vou à procura de ar, algum lugar que me faça sentir livre de minha idolatria por ti.
Ganho o quintal e me misturo às águas da chuva e à fúria dos raios e trovões. Sim, sei que tenho pavor do estrondo que produzem, mas, mesmo que me amedrontem não arredarei pé. Portanto deixo a chuva molhar o rosto, tocar meus lábios num momento que não é bom, é agonia, é meu desespero, destempero que me lesa as frações, ocultando descobertas, relegando-me ao descaso idiota de quem sofre por amor.
Ainda estou frágil sob os rancores duma tempestade que mal inicia, e mesmo evitando me sinto desencontrada e distante daquilo que fui.
Sem saber como agir retorno para dentro da casa, e lá inesperadamente o teu cheiro me nauseia, enoja, mesmo que haja lembrança dos teus olhos bonitos, mas que estão tão longe.
E é a imagem deste teu olhar vagabundo que faz-me concluir; apesar de perto estiveste tão longe que não notaste a mulher que te amava.
Sim, é verdade, mesmo molhada me pego adormecida, tonta, barata intoxicada, assim entro e saio dos quartos, ganho os corredores e volto à sala, pois continuo às lágrimas, que me pedem paciência, impõem a necessidade do tempo.
Não preciso de tempo. Irrito-me.
Surpreendentemente as gotas de lágrimas se estancam e estacionam entre os lábios, e isso me incomoda e toco nelas com a ponta da língua e as experimento.
Perplexa percebo o gosto quase insosso, talvez o mais claro sinal que elas foram mais salgadas. Dirijo-me ao banheiro e acolho uma toalha felpuda e de rosto, e junto dela vou à cozinha e preparo algo. Feito, retorno para sala com uma pequena caneca à mão e a toalha no antebraço.
Há algo de diferente além do barulho da chuva que agora não ouço, já que não sinto o teu cheiro e nem o olor do teu perfume, mas sim de uma adorável fragrância de coisa fresca. - Boa viagem querido! - Murmuro meu desejo e enxugo o rosto.
Ainda há um sorriso, e ele é triste ao sorver um longo gole do café.

Copirraiti09Abr2013
Véio China©

Olhos de Vidro.
Eu tive tudo para ser feliz, aliás, em termos até que fui, entretanto, não mais estou aqui. Lembro-me daquele tempo e do apartamento, e de que nele havia um grande quarto, e na sala o conforto dum desgastado sofá de couro, e atrás dele uma ensolarada janela de vidros largos, onde em alguns dias do mês eu aproveitava os raios e banhava os meus pelos. O edifício em que morávamos deveria ter, talvez, uns 30 anos de vida, e dentro daquele dormitório com as pinturas descascadas jamais me foi dado o castigo da solidão, pois ao meu lado tinha amigos como o Pateta e o manso Leão da Montanha, personas inseparáveis e que sempre me foram gratas. Provavelmente estejam pensando a confusão que deveria existir entre tão distintas figuras, porém garanto; jamais ocorreram problemas de ordem física entre o Leão e eu, assim como nunca me favoreci das garras afiadas, mesmo que plásticas, para cravá-las nos fundilhos das calças do risonho Pateta, mesmo que eu o estivesse incomodando. Assim posto, é verdadeiro o quanto vivianos pacificamente e numa camaradagem respeitosa, e acima de tudo, engraçada. Contudo é bom frisar que não estávamos ali gratuitamente, arrematados que fôramos numa loja de brinquedos usados, ali na rua 25 de Março, em pleno pulmão de São Paulo.
E hoje, passados pouco mais de 10 anos ainda se mantém em meu espírito a lembrança do dia que aquele senhor de óculos escuros nos comprou. Talvez à época ele já estivesse beirando a casa dos 50, e ele entrou na loja e nos viu sentados numa empoeirada prateleira de uma das vitrinas internas.
- Garota, quanto estão pedindo por esse botafoguense? – Ele perguntou para a vendedora apontando o dedo para mim.
Talvez não se apercebera, mas eu era um Urso Panda, e não um jogador de futebol, e só um tempo mais tarde é que fui a saber que o termo "botafoguense" motivou-se na alva estrela solitária que trazia estampada no meio do meu .peito.
-Este urso está saindo por 20 reais, meu senhor! – Foi a gentil resposta da moça.
-Que merda! 20 reais por um bicho de pelúcia amorfanhado e de segunda-mão? – Grosseiramente o sujeito devolveu. Ela o olhou surpresa, pois algo dizia que poderia estar à frente dum legítimo chato de galochas.
Os seus maus modos e o achincalhe com a minha aparência contribuíram para me deixar pensativo, pois não há nada pior para um urso de pelos mofados saber por boca de outra pessoa que se está a caminho do velho e amorfanhado. Olhei para o sujeito com certa revolta, e meu senso de auto-preservação passou a estudá-lo, minucioso, linha por linha do seu corpo; Estava lá e era evidente o enrugamento da pele, alguns pés de galinha, os cabelos em franco processo grisalho, além da baixa estatura e um indisfarçável grau de obesidade. Claro, a inspeção me confortou, pois seria do meu direito e faria justiça se lhe devolvesse, não os mesmos, mas predicados piores. No entanto sabia que seria perda de tempo, afinal, os ursos de pelúcias não falam, apenas pensam. Em seguida ele olhou para outros bichos de pelúcia que me ladeavam, e meneou negativamente a cabeça. Os seus passos iam e vinham, ansiosos; talvez ainda não tivesse achado aquilo procurava.
-Ah! E esse Leão? E o Pateta. Qual é o preço? – Perguntou lacônico ao notá-los na prateleira abaixo. Antes de responder a moça ainda tentou cativá-lo:
-Por favor senhor, poderia me dizer seu nome? – Óbvio, a sua intenção era de quebrar o gelo, suavizar as riscas daquela testa franzida. O sujeito a olhou de baixo à cima, e sisudamente respondeu.
-Mocinha, não estou aqui para que saiba o meu nome, mas apenas para comprar essa coisa! – Protestou numa tonalidade moderada batendo a ponta do indicador no vidro, e em minha direção.
Definitivamente olhei para o homem, e ele não me parecia uma dessas pessoas que envelhecem à bordo das frases compreensíveis ou gentis. Diante da sua rudeza a moça apenas desviou-se do seu olhar furtando o sorriso que instantes antes impregnava os seus lábios. Assim, deu-lhe apenas a ciência dos valores:
-O leão está por 25 reais, e o Pateta, 30. – Ele ouviu calado e persistiu com o olhar no par de pelúcias. Após alguma avaliação cravou os olhos em mim e decidiu:
-Levarei os três.
Sim! Não havia como negar, o fato de ter nos comprado me feriu em particular, pois me senti discriminado, já que não coube ao Leão e o Pateta qualquer fator de depreciação, inclusive nenhuma pechincha no preço. Refleti sobre aquilo por instantes e percebi algo novo em minha natureza; a vaidade.Talvez Freud explicasse, o que não impediu que durante algum tempo eu sentisse um certo grau de inferioridade com referência a eles, entretanto, pouco mais tarde o fato foi esquecido. Mas, retomando o momento da compra recordo que o homem pegou a sua nota de compra, e dirigindo-se ao caixa quitou os 85 reais por três vidas de pelúcia. A vendedora ainda pareceu preocupada quando o sujeito disse que gostaria de dar uma palavra com o gerente. Receosa ela apontou para o fundo da loja onde um senhor de aparência severa conferia algumas mercadorias. Lembro também de ter ouvido o lamento da vendedora ao confidenciar para a colega de serviço tão logo o homem ter se distanciado:
-Poxa vida, Antonieta, hoje não é mesmo o meu dia de sorte. Fiz tudo para atendê-lo com delicadeza, e lá está o homem falando com o chefe. Certamente deve estar se queixando do meu atendimento. – Balbuciou para a outra num tom de desânimo.
Evidente, talvez estivesse certa, pois ela olhava para eles e percebia que o sujeito gesticulava ostensivamente para o seu superior. Depois, e ainda com os mesmos olhos ansiosos viu o cliente retornar e passar por ela meneando discretamente a cabeça. Assim, e com os passos apressados foi que o homem saiu da loja levando numa grande sacola plástica todos nós, seus futuros amigos do nada. E tão logo desapareceu pela porta o gerente chamou a funcionária, e ela foi ter com ele esperando o pior, talvez a demissão.
-Marta, o senhor que acabou de sair veio falar sobre você, e disse que ficou satisfeito com o seu atendimento. Parabéns, continue assim! – Disse a ela num tom de comemoração. A garota abriu um sorriso de surpresa e feliz voltou para a sua função.
Foi ali naquele momento que reparei também que o sujeito surfava a vida nos mares dos enfrentamentos e contradições. E esta era a sua marca, nada mais que linha mestra do seu perfil, pois há anos convivi com ele, e assim sempre foi, e assim sempre seria assim.
Agora, deixemos o passado atrás das velhas linhas do horizonte e passemos a falar das contemporaneidades que vivenciei ao lado dele. E começando vou contar-lhes algo que ainda não sabem; O meu verdadeiro nome foi dado por ele - “Doutor Panda” - E assim me batizou por sempre me carregar pelos braços e levar-me ao seu quarto afim que eu escutasse as suas histórias. Por motivos que jamais poderia elucidar, ele se apegou a mim, deixando de lado os meus amigos. Talvez fosse carência, essa carência dependente de atenções, essa que faz algumas pessoas, principalmente as solitárias, a agarrarem-se a algo. Portanto será comum vermos muitas dessas pessoas tratando os seus cães, gatos, e outros animais menos domesticáveis como se fossem membros do seu clã. Não que a comparação me seja pertinente, mas o meu dono houve por bem eleger-me como o seu bichinho de estimação, afinal, eu era o seu bom psicanalista, o analista que ele precisa, um urso de pelúcia isento de voz, mas com um bom par de peludas orelhas para escutá-lo.
Ele estava muito dependente de mim quanto tivemos a nossa última conversa, aliás, a mais importante delas. E por ironia ela ocorreu numa noite onde me foi concedido e retirado o dom da vida. Ah vida...e por falar nela sempre a vida se reverenciará às pinceladas do tempo, para alguns, muito longa, para outros, essencialmente breve. Sim, não a concebo assim como vocês; carne, pele, ossos e deslocamentos, já que a vida nada mais é que movimento e decisão. E decisão foi o que esteve presentes naquela noite em que chegou chapado de bebida e pegou-me pelo braço e fomos para o seu quarto. Ali, deitou-se colocando-me sentado em sua barriga. Ele estava muito mal, nunca o vi tão devastado.
-Porra! Por que você não fala comigo, Doutor Panda? Estava irritado e se embaralhava com as palavras.
Óbvio, no momento eu entraria numa fria ao reafirmar, e talvez pela centésima vez que, ursos de pelúcias jamais falam, mas, apenas pensam. Portanto fiquei olhando para ele, assim como também fizeram o da Montanha e o Pateta, ambos sentados à estante bem defronte da sua cama.
-Porque você está me olhando com essa cara de idiota? – Inquiriu ao olhar para a mobília e dar de cara com o amigo do Mickey.
Pateta persistiu com aquela sua cara de bobo e divertido. Depois olhou para mim com os olhares que só os brinquedos entendem, pois mesmo a resignação em seu olhar não evitava que eu captasse a bondade em sua alma, apesar de vocês jamais suporem que bichos de pelúcia possam levar uma. Sem respostas e ainda irritado, tirou-me de sua barriga, e colocando-me de lado levantou-se. De pé a sua coordenação era quase nula, mas mesmo assim pousou os olhos no Leão da Montanha e fez algumas micagens para ele. A relação desses dois sempre foi estranha, assim, como se um não confiasse no outro. Então para finalizar o show apenas rodopiou o corpo ébrio e obeso para o lado direito na direção onde estava o Leão, e exclamou:
-Saída pela esquerda! –
O tombo foi inevitável, e foi muito engraçado ver o velhote perder o equilíbrio e estatelar-se ao chão, arremessando o par de lentes escuras para debaixo da estante. Constrangido pelo tombo a lamúria foi inevitável:
-Que merda! Esse leão não serve pra porra nenhuma -Após, e com algum esforço levantou-se apoiando a mão direita na estante.
Lá da cama fiquei olhando para ele, e sinceramente nem sempre foi assim. Porém, com o passar dos anos algo foi se quebrando dentro dele, talvez a esperança, ou mesmo, o encanto. Recordo que logo que viemos morar aqui era comum ver algumas garotas zanzando pela casa. Muitas vezes eu as ouvi insistes, dedo na campainha, querendo ter com o escritor. Sim, não também não lhes contei; Ele era um escritor, autor de quase nenhum sucesso, é verdade, um desses sujeitos que escrevem sobre histórias sórdidas, coisas dos subterrâneos existenciais, e lido, principalmente, por alguns garotos desajustados, geralmente, universitários. Entretanto, por vezes a sua escrita tentava ser divertida, sarcástica, e isso chamava a atenção das pessoas, principalmente das garotas que o imaginavam um Che Guevara das letras. Todavia, muitas vieram e transitaram por sua vida, porém, nenhuma ficou. E foi no intervalo dessas carências que ele se apegou a mim. Talvez porque eu fosse o único a olhá-lo de forma única, penetrante, como se eu pudesse ler as entrelinhas dos seus pensamentos. Foi exatamente naquela noite de muito álcool que insistiu o seu olhar nos meus olhos de vidro:
-Seu filho da puta, ainda espero a tua resposta – E eu não pude fazer a não ser saber das suas angústias.
Depois de algum tempo, desistiu de mim e foi para a cozinha e voltou com um enorme copo de vodca. Evidente, e o que já não estava bom, tinha tudo para piorar miseravelmente. Por meu lado, fazia de tudo para conter o riso, pois mesmo que não me ouvisse rir, a minha consciência me incriminaria, pois os bêbados não merecem zombarias, mas, comiseração.
E esse eu risse, certamente o meu riso estaria concentrado nos contrastes de suas pernas, onde algumas veias em alto relevo e duma coloração azul esmaecida lembravam as rotas de assalto entre o México e a terra do Tio Sam. Porém o mais engraçado não ficava por conta das pernas azuladas e flácidas, mas sim objetivava a sua cueca samba-canção verde-limão com bolinhas vermelhas. Aliás, ele tinha outras cuecas divertidas, como uma num tom azul-bebê com triângulos alaranjados, e outra num vermelho vivo, onde sobressaiam algumas nuvens brancas e um abrasador sol num tom amarelado. Todavia ele não abria mão das suas campeãs, e elas me divertiam a valer; uma, estampava o rosto e os seios de Brigitte Bardot. Para quem não sabe, ela era francesa, deusa nas telas dos cinemas nos anos 60. E a outra? Bem, a outra era ridícula, pois em azul pavão levava na frente a gravura dum peru, onde acima líamos “Glu Glu Glu”
Enfim...para mim sempre foi normal aquele festival de aberrações, portanto olhei-o ao chegar no quarto com o copo de bebida na mão. Ele sorveu um longo gole, descansou o copo na mesinha de cabeceira e novamente ele se deitou e me colocou em sua barriga. Definitivamente, naquela noite algo o incomodava terrivelmente:
-Vamos, Doutor Panda! Não desista de mim. Aqui estamos apenas eu e você, e talvez por ser inexperiente não saiba que na vida tudo é possível. A vida é repleta de mentiras, verdades. Há o feio e o bonito, sem esquecermos a água e o fogo. Mas...será que posso ser sincero com você? – Ele inquiriu.
Olhei pare ele, e dessa vez o sentia conflitante. Não era apenas o seu estado alcoólico, pois com aquele eu estava acostumado. Eu o percebia oposto a ele mesmo, assim como se no seu olhar nada existisse, como se a esperança estivesse a nado e contrária a correnteza. E as minhas impressões se confirmaram diante da sua quase súplica:
-Vamos Doutor Panda. Diga para mim por onde anda essa tal felicidade? Por acaso ela gosta de nos pregar peças? Será que ela se sente menos infeliz ao esconder-se de nós? – Ele insistia.
Sua aparência estava péssima, e ele transpirava muito, e a melancolia era tanta que, se o escritor não houvesse morrido há séculos seria capaz de jurar que estava diante do próprio Shakespeare.
Bem, tanto quanto o “Ser ou não Ser” aquela questão sobre a felicidade me era difícil, pois para mim ela se resumia pouca, pois aprendi a me contentar com quase nada, com coisas tolas, mas que significavam muito para mim, assim como poder sentar ao sofá e jogar conversa fora com aqueles dois. Não, minha conclusão não era queixa, mesmo que, pouco ou quase nada tivesse aprendido com eles, mas levava a gratidão nos sorrisos límpidos do Pateta, desses calmos, serenos, e que jamais verão o lado ruim das coisas, ou mesmo que, vendo, jamais o admitirão. Quanto ao velho Leão da Montanha, era apenas zero, não havia as garras e nem os rugidos, mas apenas a melancólica nostalgia, a saudades dos tempos tenros, duma era que lhe foi dado a majestade, um cravar de garras e o fincar dos dentes.
E pensando nesses fatos por alguns instantes fiquei imaginando que talvez ocorria ao velho algo muito próximo da sina do Leão. Porém sempre é bom dividir responsabilidades, e também era necessário que meu dono assumisse as suas culpas, já que existiram boas mulheres na sua trajetória. Obviamente não estou me referindo aquelas garotas que chegavam chapadas de maconha ou bebidas, e que estavam ali simplesmente para serem fodidas por um escritor “underground”. Assim como também não levo em conta as cosias que inflavam o seu ego, suas alegrias transitórias ao se postar ao lado duma bela garota que lhe fizesse carinho na barba ou mordiscasse suas orelhas. Não, não são essas as referências; Falo do amor, dos sentimentos, assim como lhe foi doado por uma dona, talvez uns quinze anos mais jovem, e que esteve tantas vezes nesse quarto, num caso que durou pouco mais de seis meses. Lembro-me do início e que, entusiasmado por ela os olhos se iluminavam ao simples toque da campainha. Geralmente ela e o seu perfume de mulher vinham nas sextas-feiras á noite, deixando um rastro de beleza e do cheiro bom. E eles sorriam, pois se gostavam, e assim que ela chegava o velho pedia uma suculenta pizza e uma garrafa do vinho do bom, ou mesmo, se não comessem em casa saiam abraçados e na direção de algum restaurante próximo. Naquela época eu gostava do brilho impregnado em eu olhar, e ele era feliz, principalmente ao fim da noite, quando em lençóis limpos os gemidos e palavras de amor penetravam nos descascados das paredes.
No entanto, com ele o bom jamais perdurou, e Silvia também não, e tudo terminou numa noite que ela veio aqui e não o encontrou, pois ele tinha ido à farmácia à procura de medicamentos para uma daquelas meninas. E Silvia, encontrando a porta entreaberta ganhou a sala e deu de cara com três jovens alcoolizadas, todas aparentando um quê de vulgaridade. Claro, eram as fãs do escritor que surgiam do nada e nas horas mais impróprias, inclusive testemunhei ocasiões em que elas apareciam por lá e levavam bebidas para ele, algumas ofereciam-lhe drogas, mas esse lance de entorpecentes jamais foi com ele, portanto as coloca para correr quando o lance redundava em maconha ou em papelote da cocaína. Entretanto, Silvia, jamais imaginaria tais fatos, e assim, instintivamente se dirigiu para o quarto, e ao se deparar com a jovem esparramada na sua cama acabou por ter um acesso de fúria, atirando ao chão os enfeites da estante. Sim, os meus amigos a olharam-na assustados, e sabiam tanto quanto eu que não houve qualquer traição do velho que, já que a garota e as amigas chegaram em estado de embriaguez, e ele foi até cuidadoso ao ceder o quarto e ir a farmácia. E foi assim que Silvia se foi, bateu a porta e jamais voltou. Depois do abandono eu o vi sofrer e sofrer, mas jamais a procurou para elucidar os fatos, pois o orgulho sempre foi o seu defeito maior.
E eram esses os fatos que recordava quando fui interrompido por sua voz pastosa. Dessa vez havia ódio em suas palavras:
-Foi essa merda que você pensou aí Doutor Panda! Não houve culpa minha, mas sim daquela desnaturada. Eu apenas tinha ido à farmácia... E agora é com você, já que isso te diz respeito; Orgulhoso é a puta que pariu! Ta?
Fitei- o com os olhos do inacreditável! Seria possível que estivesse acontecendo aquilo? Por acaso ele estaria me ouvindo?
-Ouço sim, seu porra! E você pensa num tom exageradamente elevado, em alta frequência de pensamentos – Resmungou tão embolado que tive que me esforçar para compreender o fim da frase.
Deus do céu! Aquilo só poderia ser Delirium Tremens! Só não sabia se dele ou meu.
-E outra seu urso ignorante! Aprenda! Ursos não deliram e nem desenham nas aquarelas surreais.... Ursos, bem...ursos apenas hibernam! – Devolveu com a fala amolecida Mesmo perplexo diante do fato fui obrigado a rir.
-Ursos apenas hibernam! – Eu repeti e ri comigo por diversas vezes. Talvez eu tivesse rido alto demais.
-Que merda Doutor Panda! Quer interagir em baixa frequência! É isso, ou a estante! O que me diz? – Ameaçou
-Desculpe! Na próxima tentarei melhorar – respondi sem graça, afinal, eu não queria ir para a estante.
-Vai melhorar uma porra, urso imbecil! – Ele berrou – Jamais imaginei que você me olhasse com olhos tão críticos – Ele disse. Era estranho, pois suas palavras agora eram de puro ódio.
-Desculpe, eu não pensei que.... – Não me deixou terminar.
-Se arrependimento matasse, há essas horas eu estaria numa cova profunda – Deveria ter deixado vocês mofarem naquela maldita vitrina empoeirada. Mas não...eu tinha que ter compaixão...Ele ruminou chacoalhando os meus braços violentamente.
-Desculpe, desculpe, eu jamais imaginei que pudesse ler os meus pensamentos.
-Leio sim, leio agora, e não somente os teus, mas também os daqueles dois idiotas que cochicham na estante por acharem que não posso escutá-los. EU ESTOU OUVINDO VOCÊS – Berrou. Olhei para ele e agora os seus olhos me causavam pavor.
-Hey, não xinga meu amigo não! Não xinga a gente não! O imbecil é você! – Surpreendentemente Pateta reagiu em nossa defesa., e mesmo que ele estivesse bravo, ninguém exporia a sua raiva de forma tão divertida.
-É, isso mesmo! Penso exatamente como o Pateta! Se há algum idiota aqui, esse idiota é você! – Juntou-se a nós o Leão da Montanha - E quer mesmo saber seu escritor de meia pataca? – O Leão continuava a desafiá-lo– Você é tão imbecil que nem conseguiu cair para o lado certo quando disse: Saída pela esquerda! Aprenda seu ignorante; quando sair pela esquerda, jamais tombe para a direita! – Finalizou o montanhês com um sorriso vitorioso..
-Ah, é assim que me agradecem cambada de viados? Ao acaso é um lavante, é a revolução dos bichos de pelúcia? - Que medo! - Devolveu ao gargalhar zombeteiramente. Repentinamente sua expressão reassumiu o ódio.
- Todos verão do que o imbecil é capaz - Gritou atirando-me ao chão.
Em seguida ergueu-se, trôpego, se equilibrava nas pernas, mas mesmo assim ainda conseguiu desferir um chute nas minhas costas. Eu pude sentir a dor. Depois, com a parte interna do pé direito empurrou-me para próximo da parede, e dirigiu-se à estante e recolheu os meus amigos com inequívoca rudeza. Por fim e com a dupla nos braços catou-me no canto, e num grande abraço acolheu-nos no peito e nos levou à janela.
-Então vejam o que esse imbecil é capaz de fazer! – Sua voz soou como um estouro de canhão ao atirar-nos por através dela. Estávamos no 13o andar.
Nada mais poderia ser feito, e ao sentirmos no corpo o vento da noite percebemos que seri o fim, caminho sem volta, rota da morte. E mesmo despencando sorríamos uns para os outros enquanto a brisa gélida acariciava as felpas dos nossos corpos, resvalando suavemente nos olhos de vidro. E foi diante dessa cumplicidade que nos demos as mãos, velhos companheiros unidos até o ato derradeiro e diante da insensibilidade do asfalto que nos aguardava. Seríamos destroçados pelas rodas dos automóveis, ônibus, caminhões? Não sabíamos, e só gostaríamos que tudo fosse tão rápido quanto as pernas de Usain Bolt, a bala humana.
-Saída pela esquerda! O Leão urrou e sorriu resignado.
E o Pateta, aquele que jamais deixou de sorrir persistiu gargalhando, provavelmente sem saber dos motivos, mas achando ótima a sensação do vento lhe tocando as faces.
As horas sempre se acometem rápidas, e a manhã logo chegaria, e ao acordar como se fosse dum pesadelo, o velho traria na boca o amargo sabor da bebida e solidão, e seríamos por ele procurados e ele nem se lembraria daquilo que fez e o porque fez, pois assassinamos a consciência não uma, mas muitas vezes, e a partir da segunda, todas nos parecem iguais.
Foi assim que tudo aconteceu, e mesmo morrendo ainda me houve tempo para sorrir e perdoar.
Era um ciclo que chegara ao fim.

Véio China.

Copirraiti27Nov2013