Nos meus olhos há lágrimas. Lágrimas que olham para a porta
da sala, testemunhas vivas das malas que há pouco exilaram junto de ti. Porém a
ausência não tolhe o rastro do teu perfume favorito, teimoso, e que insiste
ficar como seu eu fosse a viúva dum cheiro que fere e causa dor.
Não há como negar, me sinto a chaga do mundo, ferida que não
cicatriza, dor que persiste, mas que me diz da vida lá fora e de sons como
esses que eclodem na janela e que reconheço, pois são as gotas duma mesma chuva
que inunda dentro de mim
Ainda parada à passagem da sala, penso, repenso, e é tanta
dor, e o que faço?
Maldito! Tu não sais de dentro de mim! Nem nem tu e nem tua
fragrância que meu amor abomina e que persiste dentro dos quartos e ganha os
corredores a cada um dos meus passos, sufocando-me, confundindo, me
assassinando.
Logo, me sinto mal e não mais quero respirar esse passado de
poucas horas, então saio e vou à procura de ar, algum lugar que me faça sentir
livre de minha idolatria por ti.
Ganho o quintal e me misturo às águas da chuva e à fúria dos
raios e trovões. Sim, sei que tenho pavor do estrondo que produzem, mas, mesmo
que me amedrontem não arredarei pé. Portanto deixo a chuva molhar o rosto,
tocar meus lábios num momento que não é bom, é agonia, é meu desespero,
destempero que me lesa as frações, ocultando descobertas, relegando-me ao
descaso idiota de quem sofre por amor.
Ainda estou frágil sob os rancores duma tempestade que mal
inicia, e mesmo evitando me sinto desencontrada e distante daquilo que fui.
Sem saber como agir retorno para dentro da casa, e lá
inesperadamente o teu cheiro me nauseia, enoja, mesmo que haja lembrança dos
teus olhos bonitos, mas que estão tão longe.
E é a imagem deste teu olhar vagabundo que faz-me concluir;
apesar de perto estiveste tão longe que não notaste a mulher que te amava.
Sim, é verdade, mesmo molhada me pego adormecida, tonta,
barata intoxicada, assim entro e saio dos quartos, ganho os corredores e volto
à sala, pois continuo às lágrimas, que me pedem paciência, impõem a necessidade
do tempo.
Não preciso de tempo. Irrito-me.
Surpreendentemente as gotas de lágrimas se estancam e
estacionam entre os lábios, e isso me incomoda e toco nelas com a ponta da
língua e as experimento.
Perplexa percebo o gosto quase insosso, talvez o mais claro
sinal que elas foram mais salgadas. Dirijo-me ao banheiro e acolho uma toalha
felpuda e de rosto, e junto dela vou à cozinha e preparo algo. Feito, retorno
para sala com uma pequena caneca à mão e a toalha no antebraço.
Há algo de diferente além do barulho da chuva que agora não
ouço, já que não sinto o teu cheiro e nem o olor do teu perfume, mas sim de uma
adorável fragrância de coisa fresca. - Boa viagem querido! - Murmuro meu desejo
e enxugo o rosto.
Ainda há um sorriso, e ele é triste ao sorver um longo gole
do café.
Copirraiti09Abr2013
Véio China©
Olhos de Vidro.
Eu tive tudo para ser feliz, aliás, em termos até que fui,
entretanto, não mais estou aqui. Lembro-me daquele tempo e do apartamento, e de
que nele havia um grande quarto, e na sala o conforto dum desgastado sofá de
couro, e atrás dele uma ensolarada janela de vidros largos, onde em alguns dias
do mês eu aproveitava os raios e banhava os meus pelos. O edifício em que morávamos
deveria ter, talvez, uns 30 anos de vida, e dentro daquele dormitório com as
pinturas descascadas jamais me foi dado o castigo da solidão, pois ao meu lado
tinha amigos como o Pateta e o manso Leão da Montanha, personas inseparáveis e
que sempre me foram gratas. Provavelmente estejam pensando a confusão que
deveria existir entre tão distintas figuras, porém garanto; jamais ocorreram
problemas de ordem física entre o Leão e eu, assim como nunca me favoreci das
garras afiadas, mesmo que plásticas, para cravá-las nos fundilhos das calças do
risonho Pateta, mesmo que eu o estivesse incomodando. Assim posto, é verdadeiro
o quanto vivianos pacificamente e numa camaradagem respeitosa, e acima de tudo,
engraçada. Contudo é bom frisar que não estávamos ali gratuitamente,
arrematados que fôramos numa loja de brinquedos usados, ali na rua 25 de Março,
em pleno pulmão de São Paulo.
E hoje, passados pouco mais de 10 anos ainda se mantém em
meu espírito a lembrança do dia que aquele senhor de óculos escuros nos comprou.
Talvez à época ele já estivesse beirando a casa dos 50, e ele entrou na loja e
nos viu sentados numa empoeirada prateleira de uma das vitrinas internas.
- Garota, quanto estão pedindo por esse botafoguense? – Ele
perguntou para a vendedora apontando o dedo para mim.
Talvez não se apercebera, mas eu era um Urso Panda, e não um
jogador de futebol, e só um tempo mais tarde é que fui a saber que o termo
"botafoguense" motivou-se na alva estrela solitária que trazia
estampada no meio do meu .peito.
-Este urso está saindo por 20 reais, meu senhor! – Foi a
gentil resposta da moça.
-Que merda! 20 reais por um bicho de pelúcia amorfanhado e
de segunda-mão? – Grosseiramente o sujeito devolveu. Ela o olhou surpresa, pois
algo dizia que poderia estar à frente dum legítimo chato de galochas.
Os seus maus modos e o achincalhe com a minha aparência
contribuíram para me deixar pensativo, pois não há nada pior para um urso de
pelos mofados saber por boca de outra pessoa que se está a caminho do velho e
amorfanhado. Olhei para o sujeito com certa revolta, e meu senso de
auto-preservação passou a estudá-lo, minucioso, linha por linha do seu corpo;
Estava lá e era evidente o enrugamento da pele, alguns pés de galinha, os
cabelos em franco processo grisalho, além da baixa estatura e um indisfarçável
grau de obesidade. Claro, a inspeção me confortou, pois seria do meu direito e
faria justiça se lhe devolvesse, não os mesmos, mas predicados piores. No
entanto sabia que seria perda de tempo, afinal, os ursos de pelúcias não falam,
apenas pensam. Em seguida ele olhou para outros bichos de pelúcia que me
ladeavam, e meneou negativamente a cabeça. Os seus passos iam e vinham,
ansiosos; talvez ainda não tivesse achado aquilo procurava.
-Ah! E esse Leão? E o Pateta. Qual é o preço? – Perguntou
lacônico ao notá-los na prateleira abaixo. Antes de responder a moça ainda
tentou cativá-lo:
-Por favor senhor, poderia me dizer seu nome? – Óbvio, a sua
intenção era de quebrar o gelo, suavizar as riscas daquela testa franzida. O
sujeito a olhou de baixo à cima, e sisudamente respondeu.
-Mocinha, não estou aqui para que saiba o meu nome, mas
apenas para comprar essa coisa! – Protestou numa tonalidade moderada batendo a
ponta do indicador no vidro, e em minha direção.
Definitivamente olhei para o homem, e ele não me parecia uma
dessas pessoas que envelhecem à bordo das frases compreensíveis ou gentis.
Diante da sua rudeza a moça apenas desviou-se do seu olhar furtando o sorriso
que instantes antes impregnava os seus lábios. Assim, deu-lhe apenas a ciência
dos valores:
-O leão está por 25 reais, e o Pateta, 30. – Ele ouviu
calado e persistiu com o olhar no par de pelúcias. Após alguma avaliação cravou
os olhos em mim e decidiu:
-Levarei os três.
Sim! Não havia como negar, o fato de ter nos comprado me feriu
em particular, pois me senti discriminado, já que não coube ao Leão e o Pateta
qualquer fator de depreciação, inclusive nenhuma pechincha no preço. Refleti
sobre aquilo por instantes e percebi algo novo em minha natureza; a
vaidade.Talvez Freud explicasse, o que não impediu que durante algum tempo eu
sentisse um certo grau de inferioridade com referência a eles, entretanto,
pouco mais tarde o fato foi esquecido. Mas, retomando o momento da compra
recordo que o homem pegou a sua nota de compra, e dirigindo-se ao caixa quitou
os 85 reais por três vidas de pelúcia. A vendedora ainda pareceu preocupada
quando o sujeito disse que gostaria de dar uma palavra com o gerente. Receosa
ela apontou para o fundo da loja onde um senhor de aparência severa conferia algumas
mercadorias. Lembro também de ter ouvido o lamento da vendedora ao confidenciar
para a colega de serviço tão logo o homem ter se distanciado:
-Poxa vida, Antonieta, hoje não é mesmo o meu dia de sorte.
Fiz tudo para atendê-lo com delicadeza, e lá está o homem falando com o chefe.
Certamente deve estar se queixando do meu atendimento. – Balbuciou para a outra
num tom de desânimo.
Evidente, talvez estivesse certa, pois ela olhava para eles
e percebia que o sujeito gesticulava ostensivamente para o seu superior.
Depois, e ainda com os mesmos olhos ansiosos viu o cliente retornar e passar
por ela meneando discretamente a cabeça. Assim, e com os passos apressados foi
que o homem saiu da loja levando numa grande sacola plástica todos nós, seus
futuros amigos do nada. E tão logo desapareceu pela porta o gerente chamou a
funcionária, e ela foi ter com ele esperando o pior, talvez a demissão.
-Marta, o senhor que acabou de sair veio falar sobre você, e
disse que ficou satisfeito com o seu atendimento. Parabéns, continue assim! –
Disse a ela num tom de comemoração. A garota abriu um sorriso de surpresa e
feliz voltou para a sua função.
Foi ali naquele momento que reparei também que o sujeito
surfava a vida nos mares dos enfrentamentos e contradições. E esta era a sua
marca, nada mais que linha mestra do seu perfil, pois há anos convivi com ele,
e assim sempre foi, e assim sempre seria assim.
Agora, deixemos o passado atrás das velhas linhas do
horizonte e passemos a falar das contemporaneidades que vivenciei ao lado dele.
E começando vou contar-lhes algo que ainda não sabem; O meu verdadeiro nome foi
dado por ele - “Doutor Panda” - E assim me batizou por sempre me carregar pelos
braços e levar-me ao seu quarto afim que eu escutasse as suas histórias. Por
motivos que jamais poderia elucidar, ele se apegou a mim, deixando de lado os
meus amigos. Talvez fosse carência, essa carência dependente de atenções, essa
que faz algumas pessoas, principalmente as solitárias, a agarrarem-se a algo.
Portanto será comum vermos muitas dessas pessoas tratando os seus cães, gatos,
e outros animais menos domesticáveis como se fossem membros do seu clã. Não que
a comparação me seja pertinente, mas o meu dono houve por bem eleger-me como o
seu bichinho de estimação, afinal, eu era o seu bom psicanalista, o analista
que ele precisa, um urso de pelúcia isento de voz, mas com um bom par de
peludas orelhas para escutá-lo.
Ele estava muito dependente de mim quanto tivemos a nossa
última conversa, aliás, a mais importante delas. E por ironia ela ocorreu numa
noite onde me foi concedido e retirado o dom da vida. Ah vida...e por falar
nela sempre a vida se reverenciará às pinceladas do tempo, para alguns, muito
longa, para outros, essencialmente breve. Sim, não a concebo assim como vocês;
carne, pele, ossos e deslocamentos, já que a vida nada mais é que movimento e
decisão. E decisão foi o que esteve presentes naquela noite em que chegou
chapado de bebida e pegou-me pelo braço e fomos para o seu quarto. Ali,
deitou-se colocando-me sentado em sua barriga. Ele estava muito mal, nunca o vi
tão devastado.
-Porra! Por que você não fala comigo, Doutor Panda? Estava
irritado e se embaralhava com as palavras.
Óbvio, no momento eu entraria numa fria ao reafirmar, e
talvez pela centésima vez que, ursos de pelúcias jamais falam, mas, apenas
pensam. Portanto fiquei olhando para ele, assim como também fizeram o da
Montanha e o Pateta, ambos sentados à estante bem defronte da sua cama.
-Porque você está me olhando com essa cara de idiota? –
Inquiriu ao olhar para a mobília e dar de cara com o amigo do Mickey.
Pateta persistiu com aquela sua cara de bobo e divertido.
Depois olhou para mim com os olhares que só os brinquedos entendem, pois mesmo
a resignação em seu olhar não evitava que eu captasse a bondade em sua alma,
apesar de vocês jamais suporem que bichos de pelúcia possam levar uma. Sem
respostas e ainda irritado, tirou-me de sua barriga, e colocando-me de lado
levantou-se. De pé a sua coordenação era quase nula, mas mesmo assim pousou os
olhos no Leão da Montanha e fez algumas micagens para ele. A relação desses
dois sempre foi estranha, assim, como se um não confiasse no outro. Então para finalizar
o show apenas rodopiou o corpo ébrio e obeso para o lado direito na direção
onde estava o Leão, e exclamou:
-Saída pela esquerda! –
O tombo foi inevitável, e foi muito engraçado ver o velhote
perder o equilíbrio e estatelar-se ao chão, arremessando o par de lentes
escuras para debaixo da estante. Constrangido pelo tombo a lamúria foi
inevitável:
-Que merda! Esse leão não serve pra porra nenhuma -Após, e
com algum esforço levantou-se apoiando a mão direita na estante.
Lá da cama fiquei olhando para ele, e sinceramente nem
sempre foi assim. Porém, com o passar dos anos algo foi se quebrando dentro
dele, talvez a esperança, ou mesmo, o encanto. Recordo que logo que viemos
morar aqui era comum ver algumas garotas zanzando pela casa. Muitas vezes eu as
ouvi insistes, dedo na campainha, querendo ter com o escritor. Sim, não também
não lhes contei; Ele era um escritor, autor de quase nenhum sucesso, é verdade,
um desses sujeitos que escrevem sobre histórias sórdidas, coisas dos
subterrâneos existenciais, e lido, principalmente, por alguns garotos
desajustados, geralmente, universitários. Entretanto, por vezes a sua escrita
tentava ser divertida, sarcástica, e isso chamava a atenção das pessoas,
principalmente das garotas que o imaginavam um Che Guevara das letras. Todavia,
muitas vieram e transitaram por sua vida, porém, nenhuma ficou. E foi no
intervalo dessas carências que ele se apegou a mim. Talvez porque eu fosse o
único a olhá-lo de forma única, penetrante, como se eu pudesse ler as
entrelinhas dos seus pensamentos. Foi exatamente naquela noite de muito álcool
que insistiu o seu olhar nos meus olhos de vidro:
-Seu filho da puta, ainda espero a tua resposta – E eu não
pude fazer a não ser saber das suas angústias.
Depois de algum tempo, desistiu de mim e foi para a cozinha
e voltou com um enorme copo de vodca. Evidente, e o que já não estava bom,
tinha tudo para piorar miseravelmente. Por meu lado, fazia de tudo para conter
o riso, pois mesmo que não me ouvisse rir, a minha consciência me incriminaria,
pois os bêbados não merecem zombarias, mas, comiseração.
E esse eu risse, certamente o meu riso estaria concentrado
nos contrastes de suas pernas, onde algumas veias em alto relevo e duma
coloração azul esmaecida lembravam as rotas de assalto entre o México e a terra
do Tio Sam. Porém o mais engraçado não ficava por conta das pernas azuladas e
flácidas, mas sim objetivava a sua cueca samba-canção verde-limão com bolinhas
vermelhas. Aliás, ele tinha outras cuecas divertidas, como uma num tom
azul-bebê com triângulos alaranjados, e outra num vermelho vivo, onde
sobressaiam algumas nuvens brancas e um abrasador sol num tom amarelado.
Todavia ele não abria mão das suas campeãs, e elas me divertiam a valer; uma,
estampava o rosto e os seios de Brigitte Bardot. Para quem não sabe, ela era
francesa, deusa nas telas dos cinemas nos anos 60. E a outra? Bem, a outra era
ridícula, pois em azul pavão levava na frente a gravura dum peru, onde acima
líamos “Glu Glu Glu”
Enfim...para mim sempre foi normal aquele festival de aberrações,
portanto olhei-o ao chegar no quarto com o copo de bebida na mão. Ele sorveu um
longo gole, descansou o copo na mesinha de cabeceira e novamente ele se deitou
e me colocou em sua barriga. Definitivamente, naquela noite algo o incomodava
terrivelmente:
-Vamos, Doutor Panda! Não desista de mim. Aqui estamos
apenas eu e você, e talvez por ser inexperiente não saiba que na vida tudo é
possível. A vida é repleta de mentiras, verdades. Há o feio e o bonito, sem
esquecermos a água e o fogo. Mas...será que posso ser sincero com você? – Ele
inquiriu.
Olhei pare ele, e dessa vez o sentia conflitante. Não era
apenas o seu estado alcoólico, pois com aquele eu estava acostumado. Eu o
percebia oposto a ele mesmo, assim como se no seu olhar nada existisse, como se
a esperança estivesse a nado e contrária a correnteza. E as minhas impressões
se confirmaram diante da sua quase súplica:
-Vamos Doutor Panda. Diga para mim por onde anda essa tal
felicidade? Por acaso ela gosta de nos pregar peças? Será que ela se sente
menos infeliz ao esconder-se de nós? – Ele insistia.
Sua aparência estava péssima, e ele transpirava muito, e a
melancolia era tanta que, se o escritor não houvesse morrido há séculos seria
capaz de jurar que estava diante do próprio Shakespeare.
Bem, tanto quanto o “Ser ou não Ser” aquela questão sobre a
felicidade me era difícil, pois para mim ela se resumia pouca, pois aprendi a
me contentar com quase nada, com coisas tolas, mas que significavam muito para
mim, assim como poder sentar ao sofá e jogar conversa fora com aqueles dois.
Não, minha conclusão não era queixa, mesmo que, pouco ou quase nada tivesse
aprendido com eles, mas levava a gratidão nos sorrisos límpidos do Pateta,
desses calmos, serenos, e que jamais verão o lado ruim das coisas, ou mesmo
que, vendo, jamais o admitirão. Quanto ao velho Leão da Montanha, era apenas
zero, não havia as garras e nem os rugidos, mas apenas a melancólica nostalgia,
a saudades dos tempos tenros, duma era que lhe foi dado a majestade, um cravar
de garras e o fincar dos dentes.
E pensando nesses fatos por alguns instantes fiquei
imaginando que talvez ocorria ao velho algo muito próximo da sina do Leão.
Porém sempre é bom dividir responsabilidades, e também era necessário que meu
dono assumisse as suas culpas, já que existiram boas mulheres na sua
trajetória. Obviamente não estou me referindo aquelas garotas que chegavam
chapadas de maconha ou bebidas, e que estavam ali simplesmente para serem
fodidas por um escritor “underground”. Assim como também não levo em conta as
cosias que inflavam o seu ego, suas alegrias transitórias ao se postar ao lado
duma bela garota que lhe fizesse carinho na barba ou mordiscasse suas orelhas.
Não, não são essas as referências; Falo do amor, dos sentimentos, assim como
lhe foi doado por uma dona, talvez uns quinze anos mais jovem, e que esteve
tantas vezes nesse quarto, num caso que durou pouco mais de seis meses.
Lembro-me do início e que, entusiasmado por ela os olhos se iluminavam ao
simples toque da campainha. Geralmente ela e o seu perfume de mulher vinham nas
sextas-feiras á noite, deixando um rastro de beleza e do cheiro bom. E eles
sorriam, pois se gostavam, e assim que ela chegava o velho pedia uma suculenta
pizza e uma garrafa do vinho do bom, ou mesmo, se não comessem em casa saiam
abraçados e na direção de algum restaurante próximo. Naquela época eu gostava
do brilho impregnado em eu olhar, e ele era feliz, principalmente ao fim da
noite, quando em lençóis limpos os gemidos e palavras de amor penetravam nos
descascados das paredes.
No entanto, com ele o bom jamais perdurou, e Silvia também
não, e tudo terminou numa noite que ela veio aqui e não o encontrou, pois ele
tinha ido à farmácia à procura de medicamentos para uma daquelas meninas. E
Silvia, encontrando a porta entreaberta ganhou a sala e deu de cara com três
jovens alcoolizadas, todas aparentando um quê de vulgaridade. Claro, eram as
fãs do escritor que surgiam do nada e nas horas mais impróprias, inclusive
testemunhei ocasiões em que elas apareciam por lá e levavam bebidas para ele,
algumas ofereciam-lhe drogas, mas esse lance de entorpecentes jamais foi com
ele, portanto as coloca para correr quando o lance redundava em maconha ou em
papelote da cocaína. Entretanto, Silvia, jamais imaginaria tais fatos, e assim,
instintivamente se dirigiu para o quarto, e ao se deparar com a jovem
esparramada na sua cama acabou por ter um acesso de fúria, atirando ao chão os
enfeites da estante. Sim, os meus amigos a olharam-na assustados, e sabiam
tanto quanto eu que não houve qualquer traição do velho que, já que a garota e
as amigas chegaram em estado de embriaguez, e ele foi até cuidadoso ao ceder o
quarto e ir a farmácia. E foi assim que Silvia se foi, bateu a porta e jamais
voltou. Depois do abandono eu o vi sofrer e sofrer, mas jamais a procurou para
elucidar os fatos, pois o orgulho sempre foi o seu defeito maior.
E eram esses os fatos que recordava quando fui interrompido
por sua voz pastosa. Dessa vez havia ódio em suas palavras:
-Foi essa merda que você pensou aí Doutor Panda! Não houve
culpa minha, mas sim daquela desnaturada. Eu apenas tinha ido à farmácia... E
agora é com você, já que isso te diz respeito; Orgulhoso é a puta que pariu!
Ta?
Fitei- o com os olhos do inacreditável! Seria possível que
estivesse acontecendo aquilo? Por acaso ele estaria me ouvindo?
-Ouço sim, seu porra! E você pensa num tom exageradamente
elevado, em alta frequência de pensamentos – Resmungou tão embolado que tive
que me esforçar para compreender o fim da frase.
Deus do céu! Aquilo só poderia ser Delirium Tremens! Só não
sabia se dele ou meu.
-E outra seu urso ignorante! Aprenda! Ursos não deliram e
nem desenham nas aquarelas surreais.... Ursos, bem...ursos apenas hibernam! –
Devolveu com a fala amolecida Mesmo perplexo diante do fato fui obrigado a rir.
-Ursos apenas hibernam! – Eu repeti e ri comigo por diversas
vezes. Talvez eu tivesse rido alto demais.
-Que merda Doutor Panda! Quer interagir em baixa frequência!
É isso, ou a estante! O que me diz? – Ameaçou
-Desculpe! Na próxima tentarei melhorar – respondi sem
graça, afinal, eu não queria ir para a estante.
-Vai melhorar uma porra, urso imbecil! – Ele berrou – Jamais
imaginei que você me olhasse com olhos tão críticos – Ele disse. Era estranho,
pois suas palavras agora eram de puro ódio.
-Desculpe, eu não pensei que.... – Não me deixou terminar.
-Se arrependimento matasse, há essas horas eu estaria numa
cova profunda – Deveria ter deixado vocês mofarem naquela maldita vitrina
empoeirada. Mas não...eu tinha que ter compaixão...Ele ruminou chacoalhando os
meus braços violentamente.
-Desculpe, desculpe, eu jamais imaginei que pudesse ler os
meus pensamentos.
-Leio sim, leio agora, e não somente os teus, mas também os
daqueles dois idiotas que cochicham na estante por acharem que não posso escutá-los.
EU ESTOU OUVINDO VOCÊS – Berrou. Olhei para ele e agora os seus olhos me
causavam pavor.
-Hey, não xinga meu amigo não! Não xinga a gente não! O
imbecil é você! – Surpreendentemente Pateta reagiu em nossa defesa., e mesmo
que ele estivesse bravo, ninguém exporia a sua raiva de forma tão divertida.
-É, isso mesmo! Penso exatamente como o Pateta! Se há algum
idiota aqui, esse idiota é você! – Juntou-se a nós o Leão da Montanha - E quer
mesmo saber seu escritor de meia pataca? – O Leão continuava a desafiá-lo– Você
é tão imbecil que nem conseguiu cair para o lado certo quando disse: Saída pela
esquerda! Aprenda seu ignorante; quando sair pela esquerda, jamais tombe para a
direita! – Finalizou o montanhês com um sorriso vitorioso..
-Ah, é assim que me agradecem cambada de viados? Ao acaso é
um lavante, é a revolução dos bichos de pelúcia? - Que medo! - Devolveu ao
gargalhar zombeteiramente. Repentinamente sua expressão reassumiu o ódio.
- Todos verão do que o imbecil é capaz - Gritou atirando-me
ao chão.
Em seguida ergueu-se, trôpego, se equilibrava nas pernas,
mas mesmo assim ainda conseguiu desferir um chute nas minhas costas. Eu pude
sentir a dor. Depois, com a parte interna do pé direito empurrou-me para
próximo da parede, e dirigiu-se à estante e recolheu os meus amigos com
inequívoca rudeza. Por fim e com a dupla nos braços catou-me no canto, e num
grande abraço acolheu-nos no peito e nos levou à janela.
-Então vejam o que esse imbecil é capaz de fazer! – Sua voz
soou como um estouro de canhão ao atirar-nos por através dela. Estávamos no 13o andar.
Nada mais poderia ser feito, e ao sentirmos no corpo o vento
da noite percebemos que seri o fim, caminho sem volta, rota da morte. E mesmo
despencando sorríamos uns para os outros enquanto a brisa gélida acariciava as
felpas dos nossos corpos, resvalando suavemente nos olhos de vidro. E foi
diante dessa cumplicidade que nos demos as mãos, velhos companheiros unidos até
o ato derradeiro e diante da insensibilidade do asfalto que nos aguardava.
Seríamos destroçados pelas rodas dos automóveis, ônibus, caminhões? Não
sabíamos, e só gostaríamos que tudo fosse tão rápido quanto as pernas de Usain
Bolt, a bala humana.
-Saída pela esquerda! O Leão urrou e sorriu resignado.
E o Pateta, aquele que jamais deixou de sorrir persistiu
gargalhando, provavelmente sem saber dos motivos, mas achando ótima a sensação
do vento lhe tocando as faces.
As horas sempre se acometem rápidas, e a manhã logo
chegaria, e ao acordar como se fosse dum pesadelo, o velho traria na boca o
amargo sabor da bebida e solidão, e seríamos por ele procurados e ele nem se
lembraria daquilo que fez e o porque fez, pois assassinamos a consciência não
uma, mas muitas vezes, e a partir da segunda, todas nos parecem iguais.
Foi assim que tudo aconteceu, e mesmo morrendo ainda me
houve tempo para sorrir e perdoar.
Era um ciclo que chegara ao fim.
Véio China.
Copirraiti27Nov2013
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