Do décimo terceiro andar até o térreo foi uma queda rápida. Em segundos, o elevador se chocou contra o chão e os quatro corpos ali presentes se embolaram como em um liquidificador. Tudo apagado, cheiro de sangue, silêncio completo após a colisão. Ainda estava consciente, porém bastante confuso. Eu tinha todo o tempo do mundo para ficar ali e morrer sangrando. Dores? Sinceramente, não as sentia. Um enjoo muito forte, sim, mas nada onde meus membros bateram. Eu conseguia imaginar o que estava à minha volta. Antes de tudo acontecer, estávamos eu, dois homens e uma mulher dentro do elevador. Eu estava indo ao psiquiatra - impulsos suicidas -. Quanto aos outros, eu não sei. E duvidava muito que descobriria algum dia. Tentei dizer alguma coisa. "alguém está vivo?". Ou então foi "ajudem-me". De qualquer forma, ninguém respondeu. Fiquei ali por uns três minutos mais, até que a luz se acendeu - que luz? -. só então consegui abrir meus olhos, para então fechá-los novamente por causa da fotofobia. - Acordem, crianças - manifestou-se qualquer alma dentro do elevador. - É hora de conhecer sua nova casa. Então eu ainda estava caído, ainda sentia cheiro de sangue, ainda não entendia bem o que estava acontecendo. Novamente abri meus olhos, e sobre mim um céu vermelho e assustador. Consegui virar minha cabeça, mas não sentia meu corpo. Levantei-me com a sensação de que me desgrudava do chão. Fazia parte dele e me estendia pelo ar. Rolei para o lado, encostei-me em alguma coisa. À minha frente, estavam os outros três acidentados. Diferentemente de mim, estavam de pé, curados, o que me levava a acreditar que o cheiro de ferro típico de sangue fresco vinha do meu próprio corpo. Enchi os pulmões de ar, como um bêbado procurando a solução para o seu mal estar, e senti aquele aroma forte. Era meu sangue, meu cheiro. Podia reconhecê-lo pela primeira vez na vida - Vida? - Atenção. Vocês três. - Era a mesma voz, mas agora tinha um tom sério e acusador. - Vocês serão encaminhados à sua divisão. Silêncio. Agora podia me ater mais a detalhes: a mulher não era tão bonita, mas dava pena ver naquele estado. Tinha lágrimas nos olhos, tremia. Os dois homens tinham reações bem diferentes. Um deles ajoelhou-se no chão e começou a rezar. O outro olhava sério para frente, fechava os olhos, respirava, como se quisesse acordar de um pesadelo. Não achava que fosse um pesadelo meu, tampouco dele. - Meu deus, o que está acontecendo? - Voz feminina, falhada. - Vocês morreram. A partir de agora vocês prestarão serviços à Divisão de Suicídio. Porra, suicídio? O elevador cai e eu preciso pagar por suicídio? Acabar com a minha vida sempre foi algo que passou vez ou outra por minha cabeça. Inclusive tentei fazer isso há algum tempo e... E o que tinha acontecido? Não lembrava. Havia apenas uma recordação turva de uma corda sendo cuidadosamente preparada. Lembrava-me de um banco, de subir nele, de colocar a corda do pescoço. Mais nada, nada mesmo. Talvez isso sim tenha sido um sonho. - Estão prontos para a caminhada? Somente neste momento vi quem estava falando. Era um homem de manto marrom escuro, rosto bem pálido, com algumas pinturas aparentemente tribais - triângulos e traços azuis por todo a a face. Não era possível ver nada além disso e da sua barba. Uma longa e emaranhada barba branca. - Prontos ou não, precisamos nos adiantar. - Então começou a andar. Ninguém fez nada além de continuar se dedicando a suas reações à presença da morte. Ficaram ali olhando, chorando, rezando ou tentando beliscar a própria pele. - Mais uma coisa - disse, virando-se - A partir de agora vocês não tem mais nome. Nesse momento, todos caíram de joelhos - menos eu -. "Onde estou?", "O que está acontecendo?". - Não lembram seus nomes? Não lembram de suas vidas? Como vieram parar aqui? E os três abanaram a cabeça. Eu só via tudo, espantado. - Você, garota. Qual é o seu nome? E ela balançou a cabeça chorando ainda, mas bem menos desesperada. - Você! - E apontou para aquele que estava rezando antes. - Você, diga, qual é o seu nome? -Eu.. Eu não sei! Meu deus, eu não sei! Virou-se para o último, o sonhador, e dedicou a ele uma cara rígida. - Não adianta tentar voltar. Isso não é sua própria mente, que você pode programar com suas fantasias. O homem caiu para o lado, chorando. - Pois bem. Todos vocês, escutem isso - fez uma pausa. Os três diminuíram as lamentações e olharam para o velho. - Isso aqui, este lugar, toda esta situação. Tudo isso é tão real quanto onde vocês estavam momentos antes. Também tenho minhas dúvidas quanto à realidade, mas enquanto não descobrimos todos esses mistérios vocês precisam andar. Voltou a dar seus passos e, desta vez, os outros o seguiram. Eu não os acompanhei. Também não fui chamado, nem abordado. Fiquei ali sentado, com o tronco recostado sobre o tronco de uma árvore morta - só agora percebia com precisão o ambiente. O chão era de terra escura, havia árvores mortas e pedras espalhadas por todo lado. Montanhas podiam ser vistas ao longe. E em direção a uma grande montanha - maior que todas as outras - estavam indo os três falsos-suicidas e o guia da expedição. - Hei! Hei! Espera! - Gritei. Ninguém se virou, ninguém me deu atenção. Estava ali naquele universo bizarro, com lembranças bem vívidas do que tinha acontecido antes. Tinha acordado, ido ao banheiro, tomado um café e me dirigido ao consultório do psiquiatra. Minha cabeça não estava legal e eu desconfiava de que aquela porra toda era por causa disso, de uma forma ou de outra. Foi o tempo de eu fechar os olhos, respirar fundo, secar a testa suada e abrir novamente os olhos. Não podia ninguém por parte alguma. Os três desafortunados e o velho barbudo já haviam sumido. - O seu caso é outro. - Ouvi. À minha direita, materializou-se o guia. Não o tinha visto ali há alguns segundos. - Você tentou suicídio uma vez, certo? Certo, Aquiles? Você ainda lembra seu nome? Assenti debilmente. Tentei suicídio uma vez, como contava anteriormente. Apenas essa vez. Mas não me lembrava quando, onde. Se havia sido ontem ou há anos atrás. Não lembrava se tinha sido há alguns minutos. - Esses três tentaram algumas vezes. Não podemos dar tantas chances a eles. Entenda que você não vai sair daqui com muito mais conhecimento acerca da morte. Assenti mais uma vez. - Agora ouça, responda minha pergunta. - Uma pausa dramática. Onde eu estava? Quem sou eu? Aquiles. Sou Aquiles. Senti-me mais uma vez confuso e enjoado. - O que você deseja? Quer morrer ou quer viver? É a última chance de escolher. - Eu... Eu... - Ande, não tenho o dia todo! Ainda existe tempo, relógio, rotina e toda essa besteira por aqui. Por mais que parecesse fácil de responder, eu fiquei em dúvida. Já tinha me adaptado ao céu avermelhado. - Se está em dúvida, adianto que a Divisão de Suicídios passa grande parte do tempo dando nós em cordas. Sem bebida, sem cigarro, sem drogas. Há mulheres, mas elas não sabem o próprio nome, assim como qualquer um, e estarão ocupadas demais montando forcas também. O que você quer? - Bem, eu quero viver. - Muito bem então. Ande em direção àquela árvore retorcida. Aquela lá longe. - E apontou. - E depois? - Não vou estragar tudo te contando o final da história. Ande até lá e se preocupe em manter sua cabeça no lugar quando estiver de volta. - Assenti novamente. Tarefa difícil manter a cabeça no lugar. Mais difícil que morrer e voltar, quem sabe. - Se parar aqui de novo porque tentou chegar mais rápido que todo mundo, não poderá escolher de novo. - Mas eu... Não foi suicídio. - Ande. - Foi o elevador. Ele caiu e bateu com força, todo mundo lá sabe... - Talvez em outra realidade. Ande e tome seu rumo. Mas primeiro pegue essa sua carcaça aí no chão. Quando olhei para onde ele gesticulava, vi meu próprio corpo caído, ensanguentado. Os olhos fechados, como se eu dormisse e sonhasse com algo muito bom. Então aquele era novamente meu corpo, e precisei me levantar mais uma vez. Os cortes foram se fechando, o sangue desapareceu gradativamente e rapidamente eu estava recuperado. E o velho sumiu mais uma vez. Olhei para a árvore retorcida e, sem opções, comecei a caminhada. Não parecia tanto uma caminhada. Assim que comecei a andar, minha mente piscava e eu só percebia alguns momentos da estrada. O espaço e o tempo de desalinharam, vultos passavam por mim a todo momento. Não era como estar tonto - eu estava andando, e sabia disso. Em alguns segundos (ou o que pareceram segundos), eu via a grande árvore, contorcendo-se à minha frente. O movimento dos seus galhos tomando meus pensamentos. Logo depois, senti-me novamente no elevador. A queda, o impacto. Mas quando abri os olhos, encontrava-me no meu próprio quarto: um banco caído ao meu lado, a corda em volta do meu pescoço, partida como os cabos do elevador. Meu peito arfava, meu pulmão ardia. Eu puxava várias doses de oxigênio, experimentando a sensação de não saber ao certo se estava vivo ou estava morto. |
Matheus Quinan
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