sexta-feira, 4 de outubro de 2019

METADE DA VIDA



Manuel António Pina

Perdi-me em Hölderlin e achei-me em Dante
no sítio mais distante da estante;
a meio da vida, quando a seara de-
via estar semeada e a casa construída.

Enquanto lia os clássicos e me dava
inutilmente para a melancolia,
Maria Hermínia, a Musa, ávida, deitava
contas à vida, à minha única vida:

faltava-me algures uma Ode (e um Amor Louco)
e, fora isso, lia muito e escrevia pouco;
os tempos iam para a Crítica, e ela seria,
a Musa-Ela-Própria, a minha tão certa secretária.

E por aí fora; que, se não me atasse
por minhas mãos ao Destino, desatinaria
(se não me matasse). Despedi-a.
Não me peças pois Harmonia, irmão leitor, meu semelhante:

pede-me medo. Sob o seu telhado dissonante
fiz o fogo e consumi a forma, e atrás da porta
guardei a minha vida, metade viva metade morta,
e os meus livros, seu cego instrumento.

Igual aos deuses (com pouco me contento),
de livros e silêncio me alimento.

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