Era dia de mercado. Com sua fome de leão aguardava ansiosamente os pais chegarem das compras. Ao primeiro sinal do motor do carro na garagem, foi logo receber as sacolas recheadas de novas guloseimas em forma de potes e pacotes. Sentia prazer em abrir as coisas recém saídas das prateleiras do mercado. O pacote de bolacha recheada foi a primeira vítima. A bandeja de presunto fresquinho foi aberta com o cuidado e delicadeza de um cirurgião plástico, estica dali, corta daqui e desliza suavemente para o prato de frios. A geléia de uva foi a escolhida por ele naquele dia. No entanto, poucos segundos antes de concretizar o movimento giratório de quem tenta abrir um vidro de geléia ainda virgem, a mãe dá um grito:
- NÃO!
O leão, digo, o menino olha assustado para a mãe.
- Não ouse abrir isto antes de terminar a geléia de cacau que está há mais de uma semana na geladeira!
- Mas... Mamãe! Por quê? A de uva é mais gostosa!
- Bem por isso. Daí ninguém mais come a que está na geladeira e eu me nego a jogar comida fora nesta casa. Vamos comer primeiro a de cacau.
Ele aprendeu que não adiantava discutir com a mãe essas coisas. Ela era espanhola e tinha um senso de economia herdado de seus antepassados maltratados pela Guerra. Colocou a geléia de cacau na mesa, e lamentou silenciosamente o fato do vidro ser grande e ainda estar cheio. Depois do ocorrido, o desânimo tomou conta daquele lanche da tarde. Comeu em silêncio com o pensamento na outra geléia. Estava tão cabisbaixo que o pai estranhou:
- Nossa! Milagre! Nosso leãozinho esta comendo moderadamente hoje! Está fazendo regime?
Olhou com ódio para o sorriso cúmplice que o pai e a mãe se deram ao falar dele. Ficou quieto para não estragar mais ainda aquele momento sagrado diante da mesa. Mas o pai, estimulado pelo sorriso da mãe, cutucava mais ainda:
- Não precisa fazer regime. A gente gosta de criança fofa.
Engoliu seco a frase do pai, esperou o fim daquela sessão família e na hora do noticiário da televisão foi direto para o quarto. Mas não foi sozinho. Levou consigo um copo de leite, a geléia de cacau, oito pães e algumas bolachas. Trancou a porta do quarto e preparou-se para um ritual de prazer e deleite: em primeiro lugar, reuniu as almofadas e o cobertor. Depois, juntou os livros preferidos, alguns joguinhos e mais alguns gibis e... Pronto! Todas as coisas que gostava de fazer comendo estavam ali, ao seu redor, prontos para serem acionados. Os pais estranharam o sumiço tão repentino do filho para o quarto, mas julgaram ser coisa de criança com birra e não o incomodaram mais.
No dia seguinte, ajudou a arrumar a mesa do café da manhã. Colocou os pratos, os pães, o leite, a manteiga e, também, o pote novinho da geléia de uva. A mãe olhou de soslaio, mas não queria discutir naquele dia, estava com dor de cabeça, somente falou calmamente:
- Pega a geléia de cacau, semana que vem a gente abre a de uva.
O garoto, com voz triunfal, falou:
- A geléia de cacau terminou, mamãe.
Ela olhou pra ele desconfiada, duvidando do que ouviu. Mas o menino nem deixou ela falar e já completou, mostrando o vidro vazio:
- Olha aqui. Acabou ontem mesmo, não lembra?
A mãe estava indisposta demais para questionar o filho. Apesar de se sentir triunfante, o garoto sentou-se a mesa sem fome nenhuma, pelo contrário, estava com uma forte sensação de abdômen estufado pela proeza realizada na noite anterior. Mas não podia se render, pegou a geléia de uva com um sorriso nos olhos, olhou para a mãe, e deu a primeira mordida bem lentamente, mastigou mais lentamente ainda e foi ficando branco:
- Filho, filhote, o que você tem? Filho...
- Uuuuuug... Blaaaaargth... Uuuuuuug.... Plaaaaaaft.
Surge, então, uma geléia de cacuva sobre a mesa.
Nanci A.KI
(Miscelâneas em Mim )
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