Parte I
Todos os dias saltam do alto das muralhas do medo, restos de desespero, fantasmas sem grilhões. Feridas rasgadas, sulcando de quente sangue a pele negra, herança do sofrimento no arame farpado da opressão. Os cães do ódio ladram e seus dentes cravam na carne suja e apodrecida da escravidão.
A afluente aristocracia – dos eupátridas pós-modernos do alto de seus palacetes – quer perpetuar seu fausto enfastiado, com máquinas que não comam, não bebam e não se reproduzam, precisam de criados invisíveis que não ofendam com sua presença.
Os muros são fronteiras que protegem vós mesmos nos outros, a vossa humanidade, a obrigação de enxergar o contraste no espelho da exclusão. Denuncia da conseqüência da ânsia de acumular necessidades supérfluas, carência de necessidades reais da multidão zumbi, do lumpen.
Os muros correspondem ao medo de se verem despojados de suas histórias, construídas dos espólios da guerra fratricida entre a cria mais forte e a mais fraca da loba do sistema.
O abismo se agiganta, as trevas abatem as crias esquálidas do proletariado no esgoto da exclusão, embrutecendo suas vontades na voracidade da vingança, cristalizada no crime, incendiada nos entorpecentes, perdidas na sarjeta.
Os muros são construídos por todos que os exteriorizam na força repressiva do representante autoeleito, o Estado, forte diante dos fracos e fraco diante dos fortes.
É quando o subúrbio se levanta e o morro escorre para a calçada. O subúrbio clama por empregos e o morro por esperança na forma de pão e dignidade.
Cada tijolo ensangüentado, por quem é colocado?
Só o dólar e o pó atravessam os muros, se globalizam. As pessoas estão confinadas em seus pesadelos de consumo, chafurdando no lodo que transformaram as pátrias violentadas.
Caminham, não, se arrastam nas sombras, atravessam desertos guiados por coiotes, são espremidas em contêineres, vagam em barcos, escorraçados em sua esperança, lastros de fantasia, patologia. O não-lugar para as não-pessoas.
A estátua abre os braços, generosa aos miseráveis do mundo inteiro, generosidade de pedra, cláusula que esqueceram de gravar em seu pedestal de bondade:
"desde que tenham dinheiro ou voltem para suas cloacas do terceiro mundo após o expediente, pobreza terrorista que carregam em seus corpos...".
Muros represam o mar pútrido da pobreza, da violência, que agride e alimenta o revide. O muro que engole o berço.
A globalização dos muros erigidos, verdadeiras homenagens ao Apartheid. Os muros ideológicos derrubados a marretadas em Berlim não permitiram aos embriagados ver o quão inebriados de ideologia estavam. Outros muros foram levantados: na Coréia do Norte, em Israel ou na fronteira dos E.U.A. com o México; outros muros construídos com o imperativo de ocultar a agressiva presença do outro, o estrangeiro, que quer um lugar à mesa, um lugar ao sol.
Serviçais sentados à mesa dos patrões com seus modos de sarjeta, com odores fétidos e roupas sujas, restos devorados por suas próprias mães.
Wilson Roberto Nogueira
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