Marilia Kubota*
É fácil. Porque você não tem nada pra fazer, comece a rasgar pedaços de jornal. Faça bolinhas minúsculas, enrolando o jornal até ficarem duras. Enrole umas 50 bolinhas. A seguir, pegue um canudo plástico de refresco. Sente junto a uma janela, posicionando-se estrategicamente, ou seja, sem que ninguém passando na rua possa vê-lo. Coloque uma bolinha de papel no buraco da frente do canudo e sua boca no outro buraco. Escolha um alvo móvel, mire e sopre. A princípio não tem graça, os atingidos apenas olham para cima (é preciso atirar de um lugar alto) e balançam a cabeça em desaprovação. Ou xingam a mãe e você responde atirando mais bolinhas de papel. Você pode incrementar o game se souber ser rápido e atingir não uma, mas duas vítimas. Duas pessoas atingidas por projéteis disparados não se sabe de onde e não sei por quem são capazes de armar um barraco federal. Porque uma se confraterniza com a outra por ter sido alvo de uma brincadeira sem graça. Melhor se forem mulheres ou jovens ou velhas ou negras ou pobres, grupos sociais reconhecidamente suscetíveis a intempéries emotivas. Olham pra cima sem saber o que está acontecendo - mulheres seguem arranjando os cabelos e segurando firme a bolsa, jovens dão de dedo, velhos lamentam a juventude que está perdida, negros fazem uma piada ou dizem um palavrão, pobres se benzem. Se tiver sorte pode atingir um cidadão bem colocado, equilibrado e seguro de si, ao lado de sua mulher, inteligente, bonita, artista plástica. É claro que na primeira bolada não sentem o impacto, protegidos por coletes à prova de tato e sobretudos de lã. Descarregue uma rajada de bolinhas de papel sobre o supercasal: ela se desprende do braço dele, solta gritinhos diz que estão atirando neles ele vê e diz são bolinhas de papel, mas ao terem certeza que são bolinhas de papel, dispare nova carga. Olham estupefatos pra cima, procurando o franco-atirador, não encontram. Você quase mija de rir, eles somem na praça, batendo a sola dos sapatos de couro de cobra. Você observa o casal desaparecer, furioso, voltando a atacar pobres inocentes. Quinze minutos depois, quando você enfia algumas bolinhas na orelha de um cachorro no colo de uma velhinha de 80 anos, ela se assusta, tem uma síncope, é acudida por mulheres, jovens, negros. Volta o casal com um polícia, o tumultuador naquele prédio (indicam seu edifício), mais ou menos o andar de seu apartamento. Você assiste a tudo, calmamente pega as duas ou três bolinhas que restam e atira no guardinha. Ele sente os tapas na nuca e mira em direção à sua janela. Com o casal mais duas ou três pessoas entra em seu prédio. Você sai da janela, sorrindo. Guarda o canudo no armário da cozinha, tira um cigarro da carteira, acende, dá uma tragada e espera. Cinco minutos. Ouve baterem no apartamento do andar abaixo do seu. O vizinho assiste um pornô e em pânico, como se flagrado por sua mãezinha de Minas, corre para desligar o vídeo e abrir a porta antes que a ponham abaixo. A mulher e o homem de bem colocam o dedo no nariz do vizinho, que reage com um empurrão, o polícia intervém, quer uma vistoria no apê, o vizinho não, diz que tem direitos, o polícia fala em desacato, começa a revistar o apê o vizinho sempre suspeito, a mulher você não tem vergonha, um bruto homão como um adolescente rebelde, o vizinho não entende como podem ter visto o que assistia, fala em invasão de privacidade, as outras duas ou três pessoas dão palpites e um encontra a coleção de vídeos pornôs, o polícia diz que vai recolher o material, outros vizinhos correm pra ver que barulheira, encontram aqueles títulos indecentes, você acompanha dez minutos, sua mulher chega do trabalho com a menina, pergunta: melhorou a gripe, lá embaixo uma confusão, acharam um tarado. Dia seguinte você fica sabendo que levaram o vizinho mas não conseguiram provar nada a não ser que era fanático por um filão de cinema muito popular.
Marília Kubota é escritora e jornalista, mora em Curitiba, mantém o blog www.micropolis.blogspot.com e colabora com o site www.escritorassuicidas.com.br. Outros trabalhos em http://www.germinalitertura.com.br
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