terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A desconstrução do ideário de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Uma contestação à tese do sociólogo Jessé Souza sobre a desigualdade social



REVISTA IHU ON-LINE

08 Abril 2019
Rubens Goyatá Campante, doutor em sociologia política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras), contesta a desconstrução de Jessé Souza do ideário de intelectuais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda em artigo publicado por O Estado de Minas, 05-04-2019.

Eis o artigo.
O filósofo inglês Bertand Russell disse que o poder é para as ciências sociais o que a energia é para a física: o conceito central. Para ele: “Como a energia, o poder tem muitas formas, a riqueza, o armamento, a autoridade civil, a influência sobre a opinião. Nenhuma delas é subordinada a qualquer outra e não há nenhuma forma de que as outras derivem. A tentativa de tratar uma forma de poder isoladamente, por exemplo a riqueza, só pode ter êxito parcialmente, como o estudo de uma forma de energia será deficiente, a menos que outras formas sejam tomadas em conta”.

Essa advertência vale para a obra do sociólogo Jessé Souza, um dos maiores críticos da elite brasileira. É certeira e pertinente sua censura ao descompromisso de boa parte dessa elite com o país e o povo e à sua estratégia de demonização do Estado e da política, disfarce para o fato de que a desigualdade social, que lhe beneficia, é a causa principal das mazelas do país. Souza veicula, porém, um determinismo culturalista, segundo o qual todos os problemas brasileiros viriam somente de uma distorção do nosso senso comum, causada pela “tolice” da intelectualidade nativa.

A causa da desigualdade social brasileira seria basicamente cultural, determinada por nossa “ciência social conservadora”, que para ele é o “fundamento último da dominação material e efetiva das classes do privilégio entre nós”. Pois “o que é discutido nos jornais, na televisão, nas universidades, nos tribunais e nos Parlamentos é sempre alguma forma de repetição mais simplificada da produção de pensadores influentes”, assegura. A violência simbólica dessa dominação ideológica naturalizaria completamente a desigualdade, de modo “opaco” – adjetivo usado à larga por Souza para repisar que ninguém tem percebido os alicerces desse poder cultural. Exceto ele.

Tais alicerces seriam o “culturalismo conservador” e o economicismo. O primeiro, originado da obra de Gilberto Freyre, que propôs uma “fantasia compensatória” da comparação desvantajosa do Brasil com os países centrais: eles seriam ricos e democráticos, mas frios, reprimidos e infelizes; nós, mesmo pobres e autoritários, seríamos calorosos e inventivos. Sérgio Buarque de Holanda – “filho intelectual rebelde de Freyre”, segundo Souza – teria, entretanto, transformado o que era motivo de orgulho em motivo de vergonha: o brasileiro “cordial”, ou seja, emotivo, estaria, por isso mesmo, despreparado para a impessoalidade e racionalidade da vida moderna. Implícita nessa visão, a idealização dos EUA como pátria do capitalismo moderno e da racionalidade.

O culturalismo conservador teria se unido à noção de patrimonialismo enquanto antiestatismo, enxergando São Paulo como único lugar no Brasil em que o superior interesse de mercado prevaleceria sobre a cooptação patrimonial-estatal. Tal aposta no mercado, continua Souza, viria do economicismo, a convicção de que o crescimento econômico resolve, por si, todos os problemas de um país.

Determinismo culturalista: Reduções indevidas
Há um vício de argumentação e pensamento denominado “distorção pars pro toto”, distorção da parte pelo todo. Toma-se uma parte efetiva de algo como se fosse todo aquele algo. Reduz-se a totalidade de uma questão a uma parte dela. Souza opera uma série dessas distorções pars pro totto, de reduções interpretativas.

1) Reduz as causas multifatoriais dos impasses de uma nação à sua configuração cultural;

2) Reduz as ações e a consciência individuais a mero reflexo das práticas e instituições sociais, que lhes condicionaria absolutamente;

3) Reduz a cultura de uma nação às teorias acadêmicas e/ou de pensadores influentes;

4) Reduz, no caso brasileiro, tais teorias e pensadores ao conceito de patrimonialismo – responsável pela aceitação da desigualdade social; e,

5) Reduz o entendimento de tal conceito, no Brasil, à sua vertente liberal-conservadora e antiestatista.

Primeiro, realmente a justificação ideológica de uma dominação social é um fator constitutivo dela, que jamais deve ser desconsiderado. Há, contudo, questões especificamente políticas, econômicas, jurídicas, que se relacionam, é claro, com a cultura e a ideologia, mas têm também seu grau de autonomia e de contribuição própria à origem e reprodução de sociedades desiguais como a brasileira.

Segundo, é claro que a maior parte do que fazemos é condicionado cultural e socialmente. Mas será que o âmbito cultural-ideológico é tão avassalador a ponto de fazer com que as práticas e instituições sociais reproduzam-se “sem qualquer mediação das consciências individuais”, como ele afirma textualmente? Se as práticas e instituições impõem-se às pessoas de forma tão absoluta e inconsciente para elas, como e por que elas mudam? Se toda individualidade é completamente anulada e manipulada?

Terceiro, os grandes pensadores e as teorias acadêmicas são, sim, cruciais. Deve-se, porém, compreender uma cultura como “visão de mundo” coletiva, uma adesão transindividual a determinados valores e, seguindo Braudel, resistência a outros: “As civilizações definem-se não quando copiam umas das outras, pois isso é a regra, mas quando se negam, em alguns tópicos, a fazê-lo”, dizia o mestre francês. Se pensarmos a cultura assim, veremos que nosso povo deu, efetivamente, suas contribuições a certas características culturais brasileiras - para o bem e para o mal, sem cair em um populismo barato de “povo sublime porque vítima”.

Quarto, nossos intelectuais não comungam, todos, das teses do patrimonialismo, do “culturalismo conservador” e do economicismo. E é uma injustiça com a enorme, fecunda e complexa tradição do pensamento social e político brasileiro dizer que a dominação ideológica e a desigualdade social nunca foram problematizadas. Alguns exemplos, entre vários possíveis. Paulo Freire construiu sua merecida reputação intelectual estudando o que chamou de “silenciamento” do povo brasileiro por meio de um padrão educacional-cultural alheio e imposto de cima – foco indubitável na dominação ideológica, sem descurar de outras manifestações do poder.

Darcy Ribeiro dedicou a vida a estudar e denunciar a exploração e a desigualdade em nosso país e foi um crítico constante da ideia de populismo no Brasil, que Souza também combate. É diminuído como mero seguidor da “teoria emocional da ação” de Gilberto Freyre, aquela do “somos atrasados, mas somos mais humanos”. Já Celso Furtado seria um reles economicista, por conta de sua “abordagem dual” do desenvolvimento econômico brasileiro, que enxergaria nossa economia composta por setores estanques, um moderno e outro atrasado, cabendo ao desenvolvimento econômico solucionar tal separação.

O conceito de subdesenvolvimento de Furtado, porém, formou-se justamente contra essa ideia convencional de dualidade, tributária das teorias da modernização de inspiração norte-americana. Mostrou como essas duas instâncias, o moderno e o atrasado, sempre se configuraram mutuamente, devido à inserção periférica do Brasil na economia internacional, geradora de uma sociedade com enormes desigualdades estruturais (uma prova, entre tantas outras, de que concentração de renda não vem somente de dominação ideológica).

Por isso Furtado relacionou soberania nacional a soberania popular e cidadania, sem jamais restringir, como Souza o acusou, o capitalismo apenas a uma questão econômica de trocas desiguais, e sem supor ingenuamente que simples crescimento econômico resolve desigualdade social: “O desenvolvimento de que tanto nos orgulhamos, ocorrido nos últimos decênios, em nada modificou as condições de vida de três-quartas partes da população do país. Sua característica principal tem sido uma crescente concentração social e geográfica da renda”, escreveu Furtado. Na avaliação de Souza, Francisco de Oliveira questionou pertinentemente a “abordagem econômica dualista” de Furtado, mas não transcendeu os limites do determinismo econômico marxista.

Visão da história como práxis
O determinismo econômico, que supõe que a política, o Estado, o direito, a arte, a moralidade, a religião são consequência das chamadas “dimensões materiais” da vida, fez parte, realmente, do entendimento do marxismo como um simples materialismo histórico e dialético. Mas não representa todo o marxismo, como argumenta distorcidamente a razão liberal, a qual Souza, aliás, diz combater. A própria obra de Marx, se contém elementos deterministas, não é puramente economicista, pois nela é central também uma visão da história como práxis – atividade humana com inarredável carga crítica e reflexiva, que articula, a partir daí, ação, conhecimento e liberdade.

No campo marxista, Antônio Gramsci desenvolveu profundamente a concepção de práxis, que supera o determinismo econômico por meio da ideia de hegemonia, síntese da base econômico-material e da cultura/subjetividade. Também a Escola de Frankfurt, radicada tanto na obra de Marx quanto na tradição da filosofia clássica alemã, criticou o materialismo vulgar. Além de contestar a racionalidade técnico-científica da modernidade (o produtivismo econômico, a cultura de massas, o fetiche da ciência e da tecnologia) duvidava de que a História rumasse inexoravelmente ao socialismo, como previam os ortodoxos marxistas.

Finalmente, em relação ao patrimonialismo, e à teoria do personalismo oligárquico que lhe seria correlata, as críticas de Souza não são pertinentes. O retrato do brasileiro, em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, movido somente pelas emoções, e inadaptado, então, ao Estado e ao mercado modernos, é, sem dúvida, pintado em oposição à figura weberiana do protestante frio, ascético, metódico. Mas isso não leva Holanda a propor, como solução, o enregelamento dos afetos como condição sociocultural do desenvolvimento brasileiro. Holanda formou-se numa época (décadas de 1920 e 30) de vasta crise, não só econômica, mas dos próprios fundamentos da civilização liberal ocidental.

Nessa conjuntura, o modernismo brasileiro, crucial na cultura nacional e uma das matrizes de formação de Holanda e de Gilberto Freyre, propunha nova percepção do Brasil. Uma visão que valorizava nossa originalidade e nossa história – recusando, contudo, o formalismo bolorento e ufanista da história oficial – para, a partir delas, tentar construir uma tradição que lastreasse um horizonte de futuro. Inscrita em tal horizonte, a postulação de um novo padrão de racionalidade pública, marcada por uma afetividade de sentido igualitário e democrático, em vez de hierárquico e autocrático.

Nessa racionalidade pública baseada em valores e emoções democráticos – linha de diferenciação em relação às tendências autoritárias de outros nacionalismos e de distanciamento entre Holanda e Freyre – não há espaço para o falso dilema: ou democráticos e contidos ou autoritários e transbordantes. Podemos ser democráticos e calorosos, sim! O antiautoritarismo é também afeto, tomada de posição emotivo-valorativa frente à vida, e Holanda pautou toda sua trajetória pública e intelectual por ela.

Quanto ao conceito de patrimonialismo, este não se restringe, como afirma Souza, a liberalismo antiestatista. A leitura estritamente liberal e limitadamente democrática do patrimonialismo é criação de Simon Schwartzman e, principalmente, de Fernando Henrique Cardoso, não de Faoro ou do escopo de recepção do conceito no Brasil em geral. Se fosse um liberal elitista e antiestatista, Faoro não escreveria: “O liberalismo armado apenas contra o Estado mostrou-se incapaz, pela feição elitista, de corporificar uma doutrina democrática de governo”.

Raymundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso não são a mesma coisa. Para o último, o patrimonialismo brasileiro modernizou-se, e com o novo tipo de relações instituídas entre Estado e sociedade civil “a crítica de Faoro à falta de garantias do Estado patrimonial aos direitos subjetivos dos trabalhadores e dos pobres em geral perde força como argumento para mostrar os males causados pelo patrimonialismo à racionalidade das decisões.” Para Cardoso, é justamente “a capacidade do Estado patrimonial de assegurar tais direitos (que explica) a adesão continuada de camadas diversas da sociedade, incluindo as desprivilegiadas, às formas contemporâneas de patrimonialismo”.

Cardoso deixa clara sua diferença em relação a Faoro, cuja indignação dirige-se à desigualdade social que acompanha o Estado patrimonial. Já para o ex-presidente da República, a “irracionalidade patrimonialista”, após a modernização da nossa sociedade, ocorre quando os pobres e trabalhadores conseguem seus direitos via Estado. Por quê? Porque não o conseguiriam através do “fortalecimento da sociedade civil”, que para Cardoso – mas não para Faoro – limita-se à “sacrossanta” mão invisível do mercado.

Patrimonialismo, esferas de vida e racionalizações
Souza afirma também que o uso que Faoro faz do conceito sociológico de patrimonialismo não encontra respaldo na perspectiva histórica weberiana. Quando Weber mobiliza tal conceito em estudos históricos, fica claro, argumenta Souza, que: “O patrimonialismo não é compatível com esferas sociais diferenciadas – nas palavras de Weber, ‘esferas de vida’. As esferas da vida diferenciadas implicam que cada qual possui um princípio valorativo ou critério regulador que lhe é próprio e serve de padrão para a conduta dos sujeitos nessa esfera”.

Souza garante que, para Weber, só no Ocidente moderno há a possibilidade e o estímulo a tal diferenciação entre as várias esferas sociais e o ganho em eficiência e racionalidade instrumental que ela implica. Faltaria essa diferenciação no patrimonialismo, no qual, afirma Souza “todos os aspectos da vida estão amalgamados de modo radical, especialmente os aspectos econômicos e políticos”. Amálgama que impediria “o cálculo e a previsibilidade, indispensáveis à institucionalização da esfera econômica”. Como explicar o surto econômico brasileiro do século 20 sem tal institucionalização e autonomia de uma esfera econômica calculável e previsível?, questiona Souza. Se o Brasil fosse mesmo patrimonialista tal autonomia não existiria. Falar de patrimonialismo aqui seria, assim, descabido, conclui ele.

Mas patrimonialismo, para Weber, não é sinônimo necessário de estagnação econômica. Weber dizia que o Império chinês, que Souza menciona como exemplo dessa indistinção de esferas de vida, confirmava sua constatação de que, no patrimonialismo, a mentalidade aquisitiva da população, no contexto de uma dinâmica economia monetarizada, costumava reforçar, em vez de minar, o tradicionalismo sociocultural.

Já em Roma, Weber enxergou um poderoso capitalismo agrário-comercial expandindo-se de forma sem precedentes na Antiguidade no período de transição do final da República ao início do Império, de feição patrimonialista – tal capitalismo era um capitalismo político, afirma Weber, e não moderno, qual seja, fundado na separação entre o patrimônio familiar e empresarial, nas técnicas contábeis e na exploração calculável do trabalho formalmente livre. Wolfgang Schluchter, um dos mais respeitados weberianos atuais, afirma: “Na visão de Weber, o capitalismo político existiu em todo o mundo e em várias épocas, na Antiguidade e nos tempos modernos, no Oriente e no Ocidente”.

O capitalismo político romano carecia de calculabilidade porque sua produção escravista em larga escala não tinha capital fixo em forma de máquinas, nem divisão racional do trabalho e, principalmente, porque seus fatores de produção, como terra e trabalho, dependiam de questões político-militares: a contínua expansão guerreira, fornecedora de novas terras e de escravos abundantes. Tanto que, segundo Weber, quando tal fornecimento cessou, com a pacificação e estabilização das fronteiras imperiais, começou a crise que derrubaria o Império do Ocidente.

Crise estrutural, ou seja, de inadequação entre as esferas política e econômica – a primeira necessitava manter uma administração civil, e especialmente militar, onerosa, mas a segunda, sem o capital de escravos baratos, rumou para a autarquização rural e a economia natural, não fornecendo, assim, os meios materiais para tal administração. Inadequação – e não indistinção – entre esferas de vida.

Distinção entre esferas de vida (econômica, política, estética, religiosa, etc., cada qual com racionalizações até certo ponto específicas), Weber enxergava em todas as culturas, não apenas no Ocidente moderno. Neste, tal diferenciação teria atingido o paroxismo, o patético mundo dos especialistas que ele deplorava. Mas a distinção entre esferas de vida liga-se, na sociologia weberiana, a diferentes processos de racionalização, e isso não é privilégio moderno ocidental. Racionalização, escreveu Weber, “pode significar coisas bem diversas. Há, por exemplo, ‘racionalizações’ da contemplação mística, uma atividade que, vista de outras esferas de vida, é especificamente ‘irracional’, da mesma maneira que há racionalizações da economia, da técnica, do trabalho científico, da educação, da guerra, da justiça, da administração.

Cada uma dessas esferas pode ‘racionalizar-se’ a partir de pontos de vista e objetivos últimos os mais diversos, e o que é ‘racional’ para um pode ser ‘irracional’ para outro. De forma que tem havido racionalizações dos mais variados tipos nas diferentes esferas de vida em todas as culturas”. Weber propôs, então, segundo Schluchter, que “diferentes culturas devem ser comparadas com base em quem racionaliza quais esferas de vida, em quais direções e que tipos históricos de ordem social resultam disso”.

Conteúdo e forma inconvenientes
Se o conteúdo da argumentação de Souza apresenta essa série de generalizações indevidas, a forma de sua apresentação também é inconveniente às vezes, pois desnecessariamente agressiva. São particularmente desrespeitosas as referências às obras de Faoro e Holanda: “Tolice”, “estupidez”, “balela”, “não vale um tostão furado”. Respeitar um intelectual não é considerá-lo acima de qualquer crítica – nunca, de forma alguma. A crítica, entretanto, deve partir de um entendimento correto de seu argumento, o que demanda a contextualização das obras, especialmente no sentido de se discernir com que/com quem e contra que/contra quem o autor trabalhou – o diálogo formador de toda obra. Cientes desse diálogo e do argumento do autor frente a ele, podemos discordar de qualquer texto, da primeira à última linha. Sem deselegância, porém. Deselegância, no entanto, faz sucesso. Ainda mais nestes tempos em que está na moda desrespeitar o outro em vez de discutir e contestar suas ideias, ou acusar, muitas vezes sem prova, mirando-se mais a pessoa que se deseja, não importa como, humilhar e destruir do que suas ações e palavras.

Jessé Souza diz colocar-se em oposição a esse predomínio da deselegância e da falta de discernimento. Mas o conteúdo e a forma de seu discurso não ajudam.


'O que explica o Brasil não é o patrimonialismo e o populismo, mas a escravidão'. Entrevista com Jessé Souza
REVISTA IHU ON-LINE

17 Outubro 2017
Jessé Souza é um dos principais pensadores contemporâneos do país. Natural do Rio Grande do Norte, é formado em Direito pela Universidade de Brasília e tem mestrado e doutorado em Ciências Sociais. Em 2015, assumiu o cargo de presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA). Pediu demissão assim que o golpe foi consumado e Michel Temer assumiu a presidência da República.

Autor de 23 livros, Jessé Souza esteve em Natal durante o ciclo de debates Diálogo promovido pela Adurn Sindicato, ocasião em que também lançou A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. No seu mais novo livro, o pesquisador reinterpreta a história do Brasil a partir de 1532 até os dias de hoje.

Antes da palestra na UFRN, Jessé Souza concedeu entrevista para a agência Saiba Mais, 15-10-2017, sobre o livro e o Brasil de ontem e de hoje.

Eis a entrevista.

Em todas as entrevistas, você relaciona o golpe de 2016 com a escravidão. Onde esses dois elementos se encontram ?

É o que conto no livro, a partir do começo. Existe uma interpretação sobre o Brasil. Uma só, que é totalizante. Normalmente as pessoas não percebem isso. As pessoas pensam que cada um tem uma interpretação, o que não é verdade. As interpretações são quanto mais convincentes quando elas explicam o começo de onde a gente vem, quem a gente é… era isso que as religiões explicavam. E toda explicação cientifica que queira ser convincente, se tornar hegemônica, tem que explicar esses espaços, como as religiões faziam no passado. Só existe uma teoria que explica isso no Brasil, que é essa de que o Brasil vem de Portugal. Não vem da escravidão, portanto, porque não havia escravidão em Portugal, a não ser de uma forma bem marginal, não era fundante, jamais foi. Quando você diz que o Brasil vem de Portugal você está dizendo, na verdade, que a escravidão é um fato secundário porque o mais importante é a herança portuguesa, percebe ? A explicação falsa põe alguma coisa secundária no lugar da principal porque ela quer que essa principal nunca seja percebida como tal. E é exatamente como o Brasil é compreendido.

Então é uma explicação inteira totalizante, que vem de Gilberto Freyre, mas não é a versão de Freyre a (explicação) hegemônica. A versão de Freyre via aspectos positivos nessa coisa, assim como o Darcy Ribeiro, outro filho de Freyre. Mas a versão mais importante, entre os filhos de Freyre, foi a de Sérgio Buarque de Holanda, que vê essa coisa vinda de Portugal, que é uma balela, mas vê só negatividade no povo brasileiro, uma negatividade que tem a ver com a corrupção. Porque no fundo, para eles, a herança de Portugal está ligada à herança da corrupção patrimonialista só no Estado, o que é outra bobagem.

Porque a corrupção real não está no Estado. Nem é feita por pessoas individuais. Isso é corrupção de tolos, a corrupção dos imbecis porque compramos, em parte, essa história. Isso tudo para evitar que as pessoas possam ver que é o mercado que compra o Estado. Então na explicação sobre o Brasil o mercado fica invisível. É só o Estado. Então eles dizem que a elite poderosa está no Estado para que você não veja a elite real, que está no mercado e, obviamente, compra o Estado. O político é o aviãozinho do tráfico que fica com 2 ou 3%.

Em suas teses você trabalha o conceito de várias elites. Mas todas a serviço da elite do dinheiro…

Exatamente. Uma coisa é sempre bom perceber: o mundo social é confuso por si mesmo. Aí você diz: “ah, a elite…” mas tem uma que manda nas outras. Tem sempre um aspecto que é mais importante que os outros. E esse aspecto central é que vai explicar todos os outros. No fundo, quando você diz que a elite é política, que está o Estado, é do politico, que é isso que esse pessoal diz e no fundo está vampirizando a sociedade, você está tornando exatamente essa elite do dinheiro invisível.

Qual é a história do Brasil que você conta no livro “A elite do atraso: da escravidão à lava-jato”?

O que eu fiz nesse livro: eu retroagi às minhas teses, às críticas e análises de classe do Brasil contemporâneo que foi o que fiz antes, para fazer uma espécie de histórico desde o ano zero. A ambição desse livro é explicar o Brasil de um modo novo, do ano zero até agora. E escolhi o tema da escravidão, aliás é um negócio incrível que ninguém tenha escolhido esse tema ainda porque é obvio que a escravidão continua. É que as pessoas estavam envoltas nesses pressupostos e soa ridículo se você começa a criticá-los.

Por que ?

Pensa bem: Raimundo Faoro diz que a corrupção começa no século 14. Isso é uma loucura. Não existia corrupção no século 14. É óbvio. A terra era do Rei. E o Rei não ia roubar o que era dele. Isso acontecia em todos os lugares. Isso acontecia na França, na Inglaterra… você só vai ter corrupção no sentido moderno do termo a partir do século 18, quando surge a noção de soberania popular e a noção de bem público, que nasce com a soberania popular. Claro ! Porque se a parte de todo poder é percebida como sendo do povo é que você vai poder desenvolver a noção de bem público no sentido moderno. Antes não existia bem público. O bem era do Rei mesmo. Ele ia roubar o quê se o negócio era dele ? Não só o Rei, mas ninguém achava que aquelas terras não fossem do Rei. Então é um absurdo, uma história de carochinha, idiota, imbecil. É como você botar fórmulas de aproximação entre homens e mulheres exibindo um filme sobre a Roma antiga. Você põe uma aproximação de homens e mulheres que foram desenvolvidos no século 18, ou seja, é ahistórico.

Mas a gente acreditou nessa bobagem. E se você pensa bem, o ano zero aqui é a escravidão. Não tem nada a ver com Portugal. Eram portugueses, o pessoal falava português, mas e daí ? São as instituições que nos moldam. A família… e é tanto que o fato da gente nunca ter criticado a herança escravocrata faz com que as famílias dos ex-escravos se mantenham iguais 500 anos depois. É a não-família, a família mono parental, a família desprezada e odiada do escravo para que ele não tenha autoconfiança, exatamente o que a gente tem agora.

A repercussão junto à classe média da regulamentação do trabalho da empregada doméstica é um exemplo ?

Exatamente. É um trabalho. E só quem não faz mais a sinapse do cérebro para ver que isso é uma continuação direta do escravo doméstico. O cara não recebe os estímulos em casa para ir bem na escola, e se não vai bem na escola não entra no mercado de trabalho competitivo. Então ele sai e é isso que eu chamo de ralé. E se ele não pode vender a força de trabalho dele com conhecimento, que é a noção da venda de trabalho do capitalismo, ou seja, você tem que ter incorporado o conhecimento, senão você não tem nada o que vender, a não ser sua energia motriz solar, que é o que o escravo vendia. As continuidades são insofismáveis e a gente está com essa bobagem.
Se você não sabe quem você é, como você vai se comportar ? A gente não é abelha, formiga, não recebe o DNA. A gente vai agir em todos os níveis, politicamente, economicamente a partir de ideias, quer a gente tenha consciência disso ou não. Essas ideias geralmente estão naturalizadas, a gente não reflete mais sobre elas, não as articula. Mas nosso comportamento é determinado por ideias e aí se a gente tem falsas ideias conduzindo nosso comportamento, o nosso comportamento vai ser errático.

Onde começa a história do Brasil para você, já que o início não tem relação com a chegada dos portugueses ?

Em 1532, quando você deixa a extração episódica do litoral de pau Brasil, essa coisa extrativista, e se investe numa sociedade agrícola regular baseada no trabalho escravo. Então é quando você vai ter o início de uma vida social e econômica do Brasil. Nessa hora ainda não tem corrupção. Mas se fala muita bobagem, como a que diz que a carta do Pero Vaz de Caminha já chega pedindo um favor. Isso é uma bobagem indescritível. Porque os caras faziam isso na França, na Inglaterra… claro ! O Rei mandava e eles tinham que puxar o saco do Rei mesmo, então que diabo é isso, falam como se fosse uma coisa singular brasileira. Isso é uma coisa imbecil. Estamos sob a égide de ideias imbecis. Não existe um mínimo de crítica e nos legaram a esse estado que estamos agora: o de um país rico, empobrecido, saqueado por ideias, claro ! A ideia é que essa história que é escrita e que é efetivamente pensada como sendo a nossa, é uma história oficial para a elite. Foi a elite paulista que montou isso. E montou sabendo o que estava fazendo.

Quando e de que forma isso ocorreu ?

Nos anos 1920 e 1930. Em 1930 a elite perde o poder para Getúlio Vargas causada pela agitação tenentista dos anos 20. E o tenentismo foi um movimento de classe média que apontava para todas as direções: esquerda, direita, centro… tinha desde Prestes à gente que fazia oposição a Getúlio pela direita. A elite do dinheiro paulista, que não é melhor ou pior que nenhuma elite do Brasil, é apenas a mais forte, montou a ideia de que: “se eu perdi o poder político para essa rebeldia heterodoxa de classe média, eu tenho que controlar a classe média. Nos escravos e na classe trabalhadora eu desço o cassete”. E na primeira greve geral, em 1917, o Governo mandou descer o sabre em famílias de trabalhadores, houve centenas de mortes. Aí depois você engana os caras e exila os líderes, exatamente como faziam com os escravos. Mas com a classe média os caras descobriram que teriam de convencê-la. Tinham que montar um poder simbólico, além das fazendas e das fábricas.

E qual era o poder simbólico ? O tema da esfera pública. Você tem que construir fábricas de opinião. Como os jornais só distribuem notícia, não criam ideias, era preciso criar ideias. E como quem constrói ideias são os intelectuais, quem tem prestígio e treinamento para isso, criaram a USP para isso. E eles mesmos diziam: “vamos construir aqui um polo ideológico para que nunca mais aconteça o que aconteceu com o Vargas e se acontecer a gente possa tomar o poder de novo porque temos a hegemonia ideológica”. Então o terreno da USP pertencia à família Mesquita, que controla o jornal O Estado de São Paulo. A elite montou e fez.

Os conceitos de patrimonialismo, essa bobagem monumental, e o conceito de populismo, essa imensa maldade que é você estigmatizar qualquer coisa que venha das classes populares como falta de instrução e criminaliza-la porque você já liga os líderes às classes populares. Então juntando o patrimonialismo ao populismo que vai ser ensinado em todas as universidades, você vai educar todas as elites de todos os lugares nessa bobagem. Tudo o que a imprensa diz quando se refere à política é uma mistura entre patrimonialismo e populismo. Isso em pílulas porque a legitimação intelectual já está dada. Essa é a dominação atual do Brasil.

E a esquerda nesse processo ?

A esquerda nunca teve uma concepção autônoma a isso. Sergio Buarque foi quem criou esse negócio e a sala do PT, em São Paulo, tem o nome de Sergio Buarque. Os intelectuais da esquerda hoje adoram Raimundo Faoro. Então, com uma esquerda dessa você vai aonde ? Vai levar na cabeça, como sempre levou. Sem uma recriação das ideias você não tem comportamento novo, isso é óbvio.

Então a Lava-jato…

A lava-jato é só mais uma versão. A farsa da Lava-jato, essa canalhice chamada Lava-jato, é a máscara nova de uma farsa que tem 100 anos. Mais velho do que isso, impossível.

Quando a esquerda critica a Lava-jato, cita a seletividade e a perseguição. Esses dois elementos são os únicos problemas da Lava-jato ?

Há muito mais problemas. A Lava-jato vai ser obviamente, não agora, mas daqui a cinco ou dez anos, vai ser a página mais vergonhosa da história do Brasil porque vendeu o país. Esse poder judiciário, enfermo, doente, patológico, pago por nós, que tem os maiores salários do mundo… o que esses caras tem na cabeça não me importa, agora o resultado da ação deles é de advogado do capitalismo financeiro internacional. Esses caras são traidores da pátria. Estão jogando o futuro de dezenas de milhões ao desemprego, à miséria. Não são só eles porque são moleques de recado dessa elite. Corrupção de verdade é outra coisa: somos feitos de imbecis por essa corrupção dos políticos. Não é só a corrupção do PT e dos demais partidos. O sistema politico inteiro é montado para ser corrupto ou alguém é imbecil para achar que não é assim ? Foi feito para ser comprado pelo mercado. A única corrupção verdadeira está na relação da compra do Estado pela economia. Claro que os seus deslizes individuais têm que ser perseguidos, mas isso nunca deve ser o centro de uma ação como a Lava-jato fez.

A Lava-jato quer acabar com o PT ?

É claro que a Lava-jato existe também para acabar com o PT, obviamente. Porque o PT representa essa luta. Pela primeira vez em 500 anos uma luta por igualdade organizada por trabalhadores urbanos e rurais. Você pode ter mil críticas, eu tenho várias, mas historicamente é isso. Então a Lava-jato cumpre esse papel. Muito mais corrupção é, se você deve pensar em termos macro e estruturais, que é como devemos pensar as coisas, o poder Judiciário ganha uma propina dessa elite. Como assim ? Em salários, em vantagens absurdas… tem juiz que ganha R$ 600 mil por mês. É a chantagem que ele faz ao sistema político e a elite deixa que isso aconteça. Ninguém toca nisso, a Rede Globo nunca tematiza isso. Então esses caras são comprados. E aí a compra não precisa enfiar na calada da noite uma mala de dinheiro para o cara… isso é feito à luz do dia. O poder Judiciário cobra. Depois do golpe cobrou 41%. Você quer coisa mais explícita do que isso ? “Eu quero a minha parte, eu quero a minha propina”. O negócio está livre, à luz do sol, isso é propina de classe. Para manter o poder dessa elite canalha você tem que pagar esses caras para fazer o serviço sujo. Isso é corrupção. Temos que usar o termo que já está aí na semântica popular pra dar um sentido verdadeiro a ele. Porque você não chama isso de corrupção ? Porque ela é legalizada ? Ué, legalizada porque você comprou 400 deputados que estão no teu bolso e votam o que você quiser porque você legalizou por dinheiro. Então, por conta disso, não é corrupção ?

O erro da Dilma foi não se curvar a esse tipo de corrupção ?

Foi uma situação difícil a dela porque já estava vendida. O fato dela ter ido contra os juros, ou seja, o que unifica essa elite inteira… porque a elite do dinheiro não é só a fração financeira. Você tem industriais, agronegócios… só que para esse pessoal todo, o real lucro dessa pessoal não é a mais com a indústria e com o agronegócio, mas com a especulação financeira. Por conta disso a fração financeira tem o comando do processo econômico e o comando do processo politico também. E o que significa esses juros exorbitantes ? Significa uma drenagem do nosso dinheiro para esses rentistas em cima de uma divida pública que é a real corrupção. Onde se fez uma auditoria meio apressada, como na Grécia, 40 títulos foram vistos como fraudulentos. Quem estuda a dívida pública no Brasil sabe que isso é bem pior aqui. Começou quando Fernando Henrique Cardoso tornou precatórios vencidos legais, títulos que já não tinham validade. E pessoas que estudam isso dizem que 98% dessa dívida é juro sobre juro sem contrapartida, ou seja, um mecanismo. Você tem títulos, um parlamento comprado, um juiz comprado, título falso e agora vamos sugar o trabalho de todas as classes. Isso é corrupção. A gente é feito de imbecil. Por isso a frase final do meu livro, pego a famosa frase de Marx “trabalhadores do mundo todo uni-vos”, e digo: “os feitos de imbecis do mundo inteiro, uni-vos” porque é o que é real hoje em dia.

Qual o tamanho da redução da desigualdade no Brasil durante os governos Lula e Dilma, período que você também dirigiu o IPEA ?

A redução pra mim foi real, especialmente quanto aos aumentos reais do salários mínimo. Isso é que foi decisivo. E principalmente aqui no Nordeste, com o bolsa-família. Mas essas coisas, quando você só pensa no dado econômico, tornam pesquisas sempre mancas. Porque você não percebe coisas muito mais importantes. Mais importantes do que dinheiro é você abrir espaço para quebra de privilégios, romper privilégios. Por exemplo, você romper o privilégio do acesso ao ensino universitário é muito mais importante do que qualquer medição monetária dessa, porque você está abrindo espaço novo para o futuro e importante porque o conhecimento é o único capital efetivamente democratizado no contexto capitalista. E o fato do Governo do PT ter feito 400 escolas técnicas, várias universidades, aumentar de 3 para 8 milhões os estudantes, obviamente foi o motivo dele ter caído. Não tem nada a ver com corrupção. Se fosse corrupção essa classe média coxinha tinha saído agora às ruas. É óbvio, isso é método comparativo das ciências sociais. Se fosse corrupção agora, com comprovações muito mais explicitas… mas pessoas continuam soltas e a coxinhada estaria em peso nas ruas. Cientificamente não foi a corrupção. O que foi então ? Foi a redução da distância entre as classes. A corrupção é um mero pretexto.

E como explicar um presidente com 97% de rejeição e ninguém na rua ?

Porque ele (Michel Temer) não depende disso, da aprovação. Os bancos é que estão mandando nesse processo.

Mas eu falo do povo. A população que foi para a rua contra a Dilma não está indo contra o Temer...

Mas o povo foi para a rua. Vi duas grandes manifestações, inclusive com 150 mil pessoas em Brasília e soltaram a cavalaria em cima. Usaram bala de verdade, inclusive. Você iria para a rua de novo se soltassem a cavalaria em cima de você ? Eu não iria… (risos)

A ditadura fez pior e as pessoas foram. É que parece que hoje a sociedade está conformada com tudo o que está ocorrendo no país, não acha ?

Mas é importante perceber o que foi que causou isso. No caso, tento analisar isso pelo conluio entre a Rede Globo e a Lava-jato porque antes era só populismo e patrimonialismo que, no fundo, é a estigmatização da política, especialmente para evitar que a esquerda chegue lá. Isso se reproduziu. Getúlio, Jango, Lula e Dilma. Nesse golpe atual teve um dado novo, especialmente por conta da rede Globo. Aí, a seletividade em relação ao PT fez uma coisa importante. Entenda que PT não é apenas o Partido dos Trabalhadores. O PT era uma espécie de confederação dos movimentos populares de trabalhadores rurais e urbanos. Quando você diz que o partido inteiro é uma organização criminosa e a lava-jato assume isso e oficializa esse discurso, o que isso significa ? Que a bandeira dos movimentos sociais também é. E que bandeira é essa ? A da igualdade social. E quando você diz que a igualdade é usada, não como fim em si, mas como instrumento para o saque ao Estado, você criminaliza não só a política, mas também a bandeira própria da igualdade social, que é o crime maior.

Quando os pobres e os excluídos, a imensa maioria entre nós, não podem mais expressar sua raiva e esse sentimento justos pela exclusão de modo político e racional, como bandeira política, o que sobra para esse pessoal: a raiva e o ressentimento em estado puro. E quem é que incorpora a raiva e o ressentimento em estado puro? Jair Bolsonaro, que não existia antes como uma ameaça real. Então esse casamento entre Lava-jato e Rede Globo tem como filho mais legítimo Jair Bolsonaro.

Porque é importante a gente saber o que aconteceu: como se dá essa coisa. Porque sabendo como se dá, a gente pode atacar o ponto principal. Ou seja, você está reconstruindo a narrativa para pessoas que perderam a narrativa. E isso adianta na reorganização, no reengajamento. É preciso explicar que os inimigos na verdade são a Rede Globo e a farsa da Lava-jato. Olha o que eles fizeram! Era só o PT ? E esse telefone do Aécio Neves que era líder do PSDB dizendo que “vamos matar” ? O que é isso ? Não só o cara rouba como é um assassino? Estou louco que Aécio continue solto. Imagine mostrar: olha, o cara está solto.

Então, estamos numa situação de uma desorganização do discurso moral. Desde que você diga como esse discurso moral foi descontruído, isso é uma enorme arma para reconstruir com mais força. A política não é um negócio recente. O tempo da política é um tempo muito próprio. Em dois meses você pode realizar 20 anos. Imagina que você tenha um debate desse com repercussão e você consegue amplificar isso pra muita gente. Ou seja, em dois meses você resolve 20 anos. É uma noção de tempo bem específica. Tem a ver com a intensidade com que você realiza num curto espaço de tempo.

Pesquisa recente da Oxfam Brasil mostrou que seis empresários no Brasil concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de pessoas mais pobres do país. O que é mais grave: a desigualdade ou a corrupção ?

A desigualdade você pode chamar de corrupção real. O capitalismo financeiro é a forma mais pura e mais doente do capitalismo. O capitalismo sempre foi corrupto. Que alma ingênua é essa que não enxerga que o mercado é todo corrupto? E sempre usou a propina como moeda, óleo para azeitar suas máquinas. Alguns ramos são mais, como o petróleo, alguns são menos… mas todos fazem isso. O capitalismo financeiro significa uma concentração de recursos absurda e tem a ver com quanto mais você concentrar recursos, você tem não só o poder de ditar mas também de conseguir comprar a política e a imprensa. Para que o capitalismo financeiro se legitimasse teve que comprar a imprensa livre e independente no mundo todo. Murdoch começou a fazer essa coisa nos anos 90.

Não é só um fato econômico, o capitalismo financeiro é uma concepção de mundo inteira. Tem uma forma de felicidade, tem uma classe trabalhadora específica, que é a que nós temos no Brasil, sem dinheiro, com pessoas com dois ou três empregos, que faz bico e ainda acha que é empresário de si mesmo, mesmo devendo aos bancos até a calça. É que como você não tem o patrão ali você se imagina livre porque o seu patrão é abstrato, o que é muito pior. E é abstrato e você não tem defesa em relação a ele. Isso é capitalismo financeiro. E é uma forma de política também porque você tira a base politica do poder nacional. Fora os Estados Unidos e quatro ou cinco nações muito poderosas você não tem mais estado nacional. Então é a chantagem contra o Estado. Essa história de crise fiscal é coisa de você ficar com raiva. A crise fiscal não é de despesa com saúde e educação. Não é que as despesas não cabem no PIB. É cretino quem diz um negócio desse. Quem paga isso aí é pobre e classe média. O rico não paga nada. E o que devia pagar, sonega. E depois não paga nem 0,38% de CPFM. Porque comprou o parlamento para que nunca passe leis assim. Aí quando você precisa de dinheiro, o Estado precisa, você pede dinheiro emprestado ao rico. Não é isso ? E o dinheiro emprestado ao rico é dívida.

Qual é a saída para além da conciliação de classe que mantém os privilégios dessa elite corrupta e com um Congresso igualmente corrupto como o atual ?

Eu não vejo problema nenhum na conciliação de classe, é claro que você tem que fazer conciliação de classe. Eu não sou contra a carta aos brasileiros do Lula, senão ele não teria sido eleito. Imagina… ele nem assumiria! Mas acho que o pessoal foi muito ingênuo, para dizer o mínimo, para ser bem respeitoso. Porque se você faz conciliação com seu inimigo de classe, e é inimigo mesmo, você tem que montar estrutura para crescer o pescoço para enfrentar esse seu inimigo numa outra rodada, em outra situação. A imprensa, por exemplo. Você poderia acabar com a Rede Globo.

Como ?

Comprava o futebol, botava no lugar da novela e não durava seis meses. Depois pagaria até um bom preço pelo espólio e transformava aquilo em TV Pública. Coisa mais virtuosa é impossível. Eliminava esse câncer e ainda montava um negócio com informação plural. Mas não tiveram essa ideia, foi uma ingenuidade enorme. Então não é a conciliação de classe, foi uma conciliação de classe ingênua, infantil.


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