Ele sofria quieto, evitando gritar, gemer, chorar. A morte
viria logo, este era seu consolo.
Em fase terminal e plena lucidez aos noventa anos, não
queria que sua dor ferisse ainda mais os sentimentos de seus familiares, em
especial sua bisneta, seu xodó. Há menos de um ano, ele servia de cavalo e
relinchava no trote manco, para parecer mais com um cavalinho, na fantasia de
sua pequena. Era um velho brincalhão.
Conformados, todos esperavam sua partida. A pequena não
entendia como se podia ir embora sem um aceno, sem um “boa viagem”, antecipando
a partida.
Em uma madrugada, quando todos esperavam o seu último
suspiro, a menina entrou discretamente no quarto. De olhos fechados e rosto
contorcido, o bisavô sentiu a presença de sua mais querida garotinha. Abriu um
dos olhos, era como se sorrisse naquele olho lacrimejante. A bisneta lembrou
seu “biso” de quanto ele a fez sorrir, e das vezes que, quando não ria das
piadas sem graça, fazia cócegas nela até abrir o sorriso no rosto e então
parar. Ele ouvia as palavras da menina como sinfonia de amor em tom de
despedida.
Percebendo que seu “biso” estava partindo, disse-lhe: “Boa
viagem, vá bricá com Papai do céu, lá deve ter muita criancinha e também um
jardim cheio de margarida branca”. Com seus dedinhos, passava carinhosamente no
pescoço dele, fazendo-lhe cócegas, tirando não o último suspiro do agonizante,
mas a última risada da alma de um velho brincalhão. Foi-se com o ar da graça
que lhe caía bem à face.
J.Damasio/ Oração de um Quase Descrente / 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário