Bárbara Lia
O pesadelo da noite
seguinte foi amenizado pela presença de Samuel, um rosto conhecido no meu
sonho. No meu pesadelo estranho ele costurava a pele de um homem branco como a
aurora, bem na altura do coração. Aos pés do homem uma infinidade de harpas
negras. Os gestos de Samuel eram frenéticos. Uma agulha grande com um fio
cirúrgico tecendo em ritmo alucinado uma infinidade de pequenos “xis” no peito
do homem, unindo peles separadas. O sangue do homem era ralo, vermelho pálido.
Eu me comunicava com Samuel qual me comuniquei com o pássaro do sonho anterior
_ telepaticamente. Ele me dizia que o sangue do homem era ralo, pois ele era
fraco como as árvores jovens. Estagnado de amar e sem coragem para nada. Samuel
dizia que são os fracos que engendram o apocalipse. Que eles não dão seu sangue
e ossos para o mundo, que eles não acenam para as naus que partem e nem as
esperam no caís quando regressam com a vitória ou a derrota. Os fracos aceitam
as marés e os ventos. Os fracos são notas musicais em uma fictícia partitura.
Eles compõem a Sinfonia Negra das Vidas Perdidas. Uma lágrima caia pela face
bronzeada de Samuel enquanto ele narrava. Ele segredou que odiava os fracos, os
que levam a vida como quem quer se livrar dela, aqueles que aceitam os falsos
dogmas para não questionar nunca. Não se debruçam sobre suas almas, não descem
ao porão viscoso das verdades que cada qual guarda dentro de si. Enquanto fazia
aquele pequeno sermão sobre os covardes, ele chorava. Cada lágrima fervia e
evaporava como se a pele dele súbito se tornasse o Etna. Outra lágrima caiu e
era granizo, mínima pedra de gelo. E então brotou a lágrima viscosa, sêmen
aperolado. E o rosto dele foi sendo banhado de todo líquido, amalgamando em
estrias de fogo e gelo e ao redor a vida semeada nas gotículas de sêmen.
Indaguei se não se incomodava em jorrar seu sêmen pelos olhos e ele sorriu e
iluminou a cena. A sutura no peito do homem branco não impediu que uma harpa
rasgasse a pele logo abaixo e caísse aos pés dele eletrizando sons entre Lá e
Sol. Era um trabalho vão, mas, Samuel ajoelhou-se, tomou a agulha e retomou o
trabalho. Cerzia a pele rasgada com as mãos ensanguentadas e os olhos jorrando
lágrimas. Lágrimas de gelo e água fervente, sêmen cristalino, visgo de orvalho,
gota de chuva, neve do Himalaia, urina de pássaro, sumo de jabuticaba. Os olhos
dele em uma miríade de cores em uma simbiose estranha. Após cada lágrima o
rosto dele voltava a ser de novo aquela limpidez divina de pele firme e lisa,
de barba recém-feita, de covinhas tentadoras, de cicatrizes eróticas.
Quis saber qual o
som da Sinfonia Negra e ele gritou dentro de mim:
_ Pare! Não
ressuscite Hitler. Aníbal. Jim Jones. Não ressuscite ninguém. Não deixe seu
pensamento chegar perto da cela de Charles Manson. Não permita que os sons
espoquem. Agora mesmo As Sinfonias Negras vicejam no mundo Árabe. Ouve o
massacre dos meninos afegãos? A morte precoce dos anjos na Palestina? Encolha o
pensamento, traga-o de volta para a sua cripta. As Harpas Negras serão
incineradas e esta é a batalha. Os que abominam a Sinfonia dedicam seus dias a
suturar peles e erguer fogueiras de instrumentos antigos negros e, creia, não
fosse esta louca empreitada, as harpias tomariam o mundo em número maior que o
das estrelas no céu, e nunca mais teríamos outra música. Apenas a Negra
Sinfonia ecoando no Universo. E cada Harpa é uma vida perdida. Não creia nos
dogmas, minha menina... Não abrace a candura das concordatas e puras donzelas,
nem das sonsas sem cérebro. Aquele poeta menino estava certo : Por delicadeza,
perdi minha vida. Rimbaud! Veja, era mais jovem que você, bem mais jovem que
eu, e já sabia... A força exige rebeldia. Todos os dogmas são pífios. Olhe
dentro das cordas verdadeiras. Este coração de estrias sangradas. Execute a
Sinfonia com as cordas tesas. Expulse o medo e dance no asfalto, voe com as
asas das gaivotas. O mar é imenso e canta. As estrelas cantam. O vento canta. A
pedra inanimada parindo diamantes geme sua canção cristalina. O Universo canta
sua força corajosa. Apenas o homem constrói harpas negras para esconder-se em
notas trágicas, em uma Sinfonia rascante que estoura os tímpanos. Há gritos
demais no coração dos anjos e muito esquecimento. O homem é perito em esquecer.
Uma harpa negra
estoura do umbigo do homem de neve. Já não há mais sangue e não há mais cor no
rosto retorcido. A vida esvai em uma nota musical aguda. Samuel se levanta e
enxuga suas mãos em uma bromélia orvalhada. Volta-se para mim e ouço sua voz
rouca como uma promessa.
– Quero te dar um mundo
onde todas as canções tenham a Luz Buarquiana do Chico, ou quiçá o Veloz
Caetanear do Veloso, e isto é a minha maneira de dizer o quanto és linda...
Acordei e não
estava acelerado meu coração, nem senti enjoos ao lembrar o sangue ou a música
demoníaca. Não pensava em Hitler, Manson, nada. Apenas na certeza de que a
Beleza estava vencendo a Batalha. A fala dele cavou a primeira lembrança.
Deitada em uma rede eu ouvia uma canção de Caetano, outro flash traz uma noite
deitada na cama ouvindo no rádio pequeno a voz de Chico Buarque. Eu era uma
garota que amava Chico e Caetano.
E daí? O País
inteiro amava. Pista inócua. Memória singela que me faz rir sozinha na
madrugada.
O pesadelo me fez
pensar nas vidas perdidas.
E no outro lado da
moeda: As harpas de prata. Os que suturam a pele dos maus e incendeiam os
objetos da discórdia. Calam as sinfonias da destruição, estes são a prata
refinada em fornalha de barro. Uma Orquestra inteira com instrumentos de prata
surgiu diante dos meus olhos e a letra da canção era simples. Era a voz de
Samuel e aquelas palavras que ouvi até voltar a adormecer – Minha menina! Minha
menina! Minha menina!...
Bárbara Lia / 18h
no bar "O torto" depois do Apocalipse - para ler o livro acessar o
site da livraria saraiva = livro digital. Esta é minha primeira publicação no
gênero novela policial.
http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/4914306
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