Romance de estreia do poeta e dramaturgo Luiz Felipe
Leprevost, E Se Contorce Igual a um Dragãozinho Ferido, é um mergulho visceral
em uma relação instável.
Combinar linguagem poética e narrativa em prosa pode ser um
exercício perigoso. O perigo, no caso, consiste no risco de transformar uma
bela narrativa em um soporífero poderoso que atravanca a dinâmica do romance em
prol de um barroquismo nem sempre propositado. O poeta e dramaturgo curitibano
Luiz Felipe Leprevost mostrou ser capaz de transitar com facilidade entre os limites
da prosa e da poesia com seu romance de estreia, E Se Contorce Igual a Um
Dragãozinho Ferido, publicado pela editora Arte & Letra.
A história se passa em dois tempos, com duas vozes que,
embora pertençam ao mesmo personagem, se distinguem no tom. A primeira, que
narra as aventuras do publicitário que tenta a vida no Rio de Janeiro, é
entusiasmada, apaixonada e poética. A segunda, que infere num regresso
malsucedido à Curitiba natal, embora abra o romance com tórridas cenas
eróticas, é mais triste, desiludida e seca, e se fortalece sobretudo na memória
dos dias na antiga capital do Império.
Ao contrário de seu lugar de origem, a cidade do Rio faz com
que Júlio, o protagonista, se sinta um eterno estrangeiro, e o deslumbre que
tem com a Cidade Maravilhosa repousa com intensidade na figura de Nanda, uma
cantora que vê pela primeira vez saindo do mar – uma espécie de regresso da
Garota de Ipanema. Envolvidos em um romance instável, de idas e vindas, Júlio e
Nanda mal percebem que suas vidas se deterioram ao entorno: enquanto o
primeiro, aspirante a poeta e relegado a um quartinho de pensão de uma velha
usurária, perde sua maior chance profissional na capital, a segunda desenvolve
uma doença que coloca em jogo a relação do casal. Louco de amor, inconsequente
e embriagado, Júlio desce ao inferno quando tenta se desvencilhar da garota,
que o troca por um músico de sua banda no Rio, mas conta com cansaço na voz, já
em Curitiba, como recebe, anos depois, a visita inesperada de Nanda.
É então que as duas narrativas do protagonista vão se
aproximando, e o leitor pode acompanhar a transformação do publicitário
empolgado no filho vencido que volta a morar com a mãe no Pilarzinho. Não só a
experiência do amor enfurecido, mas também a do emigrante curitibano são devastadoras
para o protagonista, que resolve contar sua história sem esconder a ânsia de,
com ela, tentar entender o que se passou com o distanciamento necessário. O
lirismo que Leprevost mantém do começo ao fim da narrativa não esconde nem
desvia a atenção da boa trama que se desenrola debaixo de impressões e
expressões poéticas. Pelo contrário – o estilo do autor confere à história uma
intensidade quase palpável, que transforma a leitura de E Se Contorce Igual a
um Dragãozinho Ferido em uma experiência visceral."
(Yuri Al’Hanati,
Gazeta do Povo, 15/04/2012)
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1244370&tit=O-amor-que-a-tudo-devasta
leia fragmento da novela E se contorce igual a um
dragãozinho ferido:
"Perambulei sem rumo a tarde toda. E que cidade era
essa? O esdrúxulo de meu país? Quem sabe. Rua das quais saía fogo das
rachaduras. E ali estava ele, o menino coxo no calçadão de Copacabana a
equilibrar seu hamster na cabeça. Um roedor azulado desaparecendo no fundo da
cartola rota. Súbito, descia pelo braço, entrava na manga da camisa, reaparecia
pela gola no pescoço. Em seguida alcançava novamente o topo do menino que,
feito um mágico, tirava a cartola para agradecer. Na outra ponta da praia,
Posto 6, a criança de rua com o ranho no rosto coçando a virilha, depois
deitando nas pernas da irmã mais velha, que um pouco antes a tinha espantado.
Perto dali, um vira-lata fazia suas necessidades, depois partia. Minutos se
passavam até que moscas pousavam em sua merda gelatinosa.
Anoiteceu. O rush transformava as ruas praticamente num
estacionamento. Entrei num ônibus, sentei no banco dos fundos e só acordei
quarenta minutos depois, no Leblon. Desci e caminhei pela Ataulfo de Paiva. Do
outro lado da rua, um sujeito com feridas pedia esmola em frente a Panificadora
Rio-Lisboa. Tudo era tão ilógico. A risada aguda da moça a passar, entrando no
meu ouvido direito e saindo pelo outro. Ilógico. O mau hálito do taxista no
espelho retrovisor do automóvel estacionado. Era ilógico demais ser eu um hamster
caminhando sem rumo pelo corpo da cidade que mais se assemelhava a um menino
coxo.
Sentia verdadeiro desprezo por mim quando encostei a barriga
no balcão da Pizzaria Guanabara. Minhas bochechas arderam com o bafo do forno.
O pizzaiolo limpava as mãos engorduradas num pano nojento. Os pratos usados
faziam uma pilha bamba sobre a pia. Uma família de baratas tentava não ser
percebida ao pé de um freezer."
Luiz Felipe Leprevost
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