terça-feira, 4 de junho de 2013

O amor que a tudo devasta


Romance de estreia do poeta e dramaturgo Luiz Felipe Leprevost, E Se Contorce Igual a um Dragãozinho Ferido, é um mergulho visceral em uma relação instável.

Combinar linguagem poética e narrativa em prosa pode ser um exercício perigoso. O perigo, no caso, consiste no risco de transformar uma bela narrativa em um soporífero poderoso que atravanca a dinâmica do romance em prol de um barroquismo nem sempre propositado. O poeta e dramaturgo curitibano Luiz Felipe Leprevost mostrou ser capaz de transitar com facilidade entre os limites da prosa e da poesia com seu romance de estreia, E Se Contorce Igual a Um Dragãozinho Ferido, publicado pela editora Arte & Letra.

A história se passa em dois tempos, com duas vozes que, embora pertençam ao mesmo personagem, se distinguem no tom. A primeira, que narra as aventuras do publicitário que tenta a vida no Rio de Janeiro, é entusiasmada, apaixonada e poética. A segunda, que infere num regresso malsucedido à Curitiba natal, embora abra o romance com tórridas cenas eróticas, é mais triste, desiludida e seca, e se fortalece sobretudo na memória dos dias na antiga capital do Império.

Ao contrário de seu lugar de origem, a cidade do Rio faz com que Júlio, o protagonista, se sinta um eterno estrangeiro, e o deslumbre que tem com a Cidade Maravilhosa repousa com intensidade na figura de Nanda, uma cantora que vê pela primeira vez saindo do mar – uma espécie de regresso da Garota de Ipanema. Envolvidos em um romance instável, de idas e vindas, Júlio e Nanda mal percebem que suas vidas se deterioram ao entorno: enquanto o primeiro, aspirante a poeta e relegado a um quartinho de pensão de uma velha usurária, perde sua maior chance profissional na capital, a segunda desenvolve uma doença que coloca em jogo a relação do casal. Louco de amor, inconsequente e embriagado, Júlio desce ao inferno quando tenta se desvencilhar da garota, que o troca por um músico de sua banda no Rio, mas conta com cansaço na voz, já em Curitiba, como recebe, anos depois, a visita inesperada de Nanda.

É então que as duas narrativas do protagonista vão se aproximando, e o leitor pode acompanhar a transformação do publicitário empolgado no filho vencido que volta a morar com a mãe no Pilarzinho. Não só a experiência do amor enfurecido, mas também a do emigrante curitibano são devastadoras para o protagonista, que resolve contar sua história sem esconder a ânsia de, com ela, tentar entender o que se passou com o distanciamento necessário. O lirismo que Leprevost mantém do começo ao fim da narrativa não esconde nem desvia a atenção da boa trama que se desenrola debaixo de impressões e expressões poéticas. Pelo contrário – o estilo do autor confere à história uma intensidade quase palpável, que transforma a leitura de E Se Contorce Igual a um Dragãozinho Ferido em uma experiência visceral." 
(Yuri Al’Hanati, Gazeta do Povo, 15/04/2012)

http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1244370&tit=O-amor-que-a-tudo-devasta

leia fragmento da novela E se contorce igual a um dragãozinho ferido:

"Perambulei sem rumo a tarde toda. E que cidade era essa? O esdrúxulo de meu país? Quem sabe. Rua das quais saía fogo das rachaduras. E ali estava ele, o menino coxo no calçadão de Copacabana a equilibrar seu hamster na cabeça. Um roedor azulado desaparecendo no fundo da cartola rota. Súbito, descia pelo braço, entrava na manga da camisa, reaparecia pela gola no pescoço. Em seguida alcançava novamente o topo do menino que, feito um mágico, tirava a cartola para agradecer. Na outra ponta da praia, Posto 6, a criança de rua com o ranho no rosto coçando a virilha, depois deitando nas pernas da irmã mais velha, que um pouco antes a tinha espantado. Perto dali, um vira-lata fazia suas necessidades, depois partia. Minutos se passavam até que moscas pousavam em sua merda gelatinosa.

Anoiteceu. O rush transformava as ruas praticamente num estacionamento. Entrei num ônibus, sentei no banco dos fundos e só acordei quarenta minutos depois, no Leblon. Desci e caminhei pela Ataulfo de Paiva. Do outro lado da rua, um sujeito com feridas pedia esmola em frente a Panificadora Rio-Lisboa. Tudo era tão ilógico. A risada aguda da moça a passar, entrando no meu ouvido direito e saindo pelo outro. Ilógico. O mau hálito do taxista no espelho retrovisor do automóvel estacionado. Era ilógico demais ser eu um hamster caminhando sem rumo pelo corpo da cidade que mais se assemelhava a um menino coxo.

Sentia verdadeiro desprezo por mim quando encostei a barriga no balcão da Pizzaria Guanabara. Minhas bochechas arderam com o bafo do forno. O pizzaiolo limpava as mãos engorduradas num pano nojento. Os pratos usados faziam uma pilha bamba sobre a pia. Uma família de baratas tentava não ser percebida ao pé de um freezer."


Luiz Felipe Leprevost

Nenhum comentário: