quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Um pedaço de bolo


Na padaria do português Carlos, havia, além dos pães, doces e bolos maravilhosos. Minha pequena filha se deliciava com os pedaços de bolos de abacaxi. Apesar de ser cliente da padaria, nunca tive nenhuma conversa com o Carlos além dos pedidos que fazia. O padeiro me parecia uma pessoa desinteressada em fazer amizades. Devo reconhecer que se sua cara não era boa, sua mão era divina.
Mas minha menina parou de saborear aquelas delícias. Não que houvesse enjoado, o motivo foi outro. Eu passava por dificuldades financeiras, havia dois anos que estava desempregado. Vivia de bicos. O que ganhava era o suficiente para vivermos, porém, não o bastante para adoçar a boca da minha querida filhinha com aquelas guloseimas da padaria.
Em uma manhã, quando eu juntava moedas para comprar cinco pãezinhos e um leite, minha filha pediu para ir junto à padaria. Eu falei:
— Queridinha do papai, não adianta ir. Papai não tem dinheiro para comprar nenhum doce, não vai sobrar nem para uma balinha.
Como sempre, fazendo-se de compreensiva, ela falou:
— Fique tranquilo, papai, não vou pedir nada, nem mesmo aquele bolo de abacaxi que eu adoro. No tempo em que o papai trabalhava, comi tanto que até enjoei.
Mentira dela! Mas acabei convencido de levá-la comigo, não porque ela havia enjoado dos doces, mas porque ela não desistiria enquanto não fosse comigo.
Ela entrou na padaria olhando para cima, despistando os olhinhos. Pedi os pães e o leite. Tranquilizei-me ao ver que na vitrine não tinha o bolo de abacaxi de que ela tanto gostava. Deveria já ter acabado. Juntei as moedas e paguei. Faltaram alguns centavos, pois o pão havia aumentado de preço. O padeiro, sempre sisudo, deixou passar. Ao pegar os pacotes e virar para sair, vi minha menina estática, não mais olhava para o teto, estava imóvel olhando para o pomposo bolo. Parecia até que os morangos do bolo também olhavam para ela. Chamei-a:
— Vamos, filha, vamos.
Ela não me ouviu, continuava petrificada. Agora não eram só os olhos a denunciá-la, mas também sua postura. Inclinava-se para frente e sua língua tentava umedecer os lábios secos com a saliva insossa.
Observei o padeiro, que de soslaio também olhava a minha menina. Meus olhos se voltaram para um cartaz, que tinha as escritas cuidadosamente desenhadas: “Cá neste estabelecimento não vendemos fiado. Por favore, não insista”. O português continuava a atender sua clientela. Pensei: “A falta de sensibilidade não permite que certas pessoas ouçam o pedido silencioso de uma criança”. Voltei meus olhos para minha filha e fiquei olhando para o bolo também, imaginando um generoso pedaço na mesa de casa, servido para o café. Ela recobrou a consciência e me flagrou olhando o bolo.
— Vamos, papai, vamos — disse, puxando-me.
Peguei-a pelos braços carinhosamente. O padeiro nada falou.
Saí dali com a garganta embargada. No caminho de casa, tentei disfarçar as lágrimas que não pude evitar. Antes que chegássemos à nossa casa, ela ainda me perguntou:
— O papai tava com vontade de comer um pedaço de bolo? Não fique assim. Se o senhor não arrumar trabalho, logo eu cresço e começo a trabalhar, e daí eu vou comprar um pedaço inteiro só pro papai.
Já em casa, preparei um pão recheado de açúcar e dei à menina. Marcinha comeu-o de olhos fechados, talvez imaginando... Com os lábios crispados de açúcar, ela exclamou:
— Papai, esse pão tá tão gostoso, até parece com o gosto do bolo da padaria! Experimente.
Meu coração partiu mais ainda com aquelas doces palavras. Antes ela batesse os pés fazendo birra. Ao beijá-la, percebi que sua face estava pálida e seus olhos foscos. Passadas algumas horas, já era tarde da noite, ouvi o bater à porta. Atendi com estranheza. Pros-trado em minha porta, vi o português Carlos, com dois embrulhos, um em cada braço.
Sisudo, mas carinhoso, ele me entregou os volumes. Não era um pedaço nem dois pedaços de bolo, eram dois bolos inteiros: um de abacaxi, outro de morango. Tentei lhe falar, mas não tive palavras. Ele, com certeza, ouviu meu silencioso agradecimento. A minha me-nina teve seu rosto repentinamente corado, e seus olhos com um novo bri-lho. Seu Carlos se foi, fiquei a olhá-lo. Virou-se e percebi um maravilhoso pequeno sorriso de canto de lábios.
Ficamos amigos. Tão logo minha situação melhorou, procurei pagá-lo. Foi aí que ele me disse: “Cá neste estabelecimento, não vendo fiado. Por favore, não insista”.


JDamasio


 Oração de um quase descrente. 2009

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