Na padaria do português Carlos, havia, além dos pães, doces
e bolos maravilhosos. Minha pequena filha se deliciava com os pedaços de bolos
de abacaxi. Apesar de ser cliente da padaria, nunca tive nenhuma conversa com o
Carlos além dos pedidos que fazia. O padeiro me parecia uma pessoa
desinteressada em fazer amizades. Devo reconhecer que se sua cara não era boa,
sua mão era divina.
Mas minha menina parou de saborear aquelas delícias. Não que
houvesse enjoado, o motivo foi outro. Eu passava por dificuldades financeiras,
havia dois anos que estava desempregado. Vivia de bicos. O que ganhava era o
suficiente para vivermos, porém, não o bastante para adoçar a boca da minha
querida filhinha com aquelas guloseimas da padaria.
Em uma manhã, quando eu juntava moedas para comprar cinco
pãezinhos e um leite, minha filha pediu para ir junto à padaria. Eu falei:
— Queridinha do papai, não adianta ir. Papai não tem
dinheiro para comprar nenhum doce, não vai sobrar nem para uma balinha.
Como sempre, fazendo-se de compreensiva, ela falou:
— Fique tranquilo, papai, não vou pedir nada, nem mesmo
aquele bolo de abacaxi que eu adoro. No tempo em que o papai trabalhava, comi
tanto que até enjoei.
Mentira dela! Mas acabei convencido de levá-la comigo, não
porque ela havia enjoado dos doces, mas porque ela não desistiria enquanto não
fosse comigo.
Ela entrou na padaria olhando para cima, despistando os
olhinhos. Pedi os pães e o leite. Tranquilizei-me ao ver que na vitrine não
tinha o bolo de abacaxi de que ela tanto gostava. Deveria já ter acabado.
Juntei as moedas e paguei. Faltaram alguns centavos, pois o pão havia aumentado
de preço. O padeiro, sempre sisudo, deixou passar. Ao pegar os pacotes e virar
para sair, vi minha menina estática, não mais olhava para o teto, estava imóvel
olhando para o pomposo bolo. Parecia até que os morangos do bolo também olhavam
para ela. Chamei-a:
— Vamos, filha, vamos.
Ela não me ouviu, continuava petrificada. Agora não eram só
os olhos a denunciá-la, mas também sua postura. Inclinava-se para frente e sua
língua tentava umedecer os lábios secos com a saliva insossa.
Observei o padeiro, que de soslaio também olhava a minha
menina. Meus olhos se voltaram para um cartaz, que tinha as escritas
cuidadosamente desenhadas: “Cá neste estabelecimento não vendemos fiado. Por
favore, não insista”. O português continuava a atender sua clientela. Pensei:
“A falta de sensibilidade não permite que certas pessoas ouçam o pedido
silencioso de uma criança”. Voltei meus olhos para minha filha e fiquei olhando
para o bolo também, imaginando um generoso pedaço na mesa de casa, servido para
o café. Ela recobrou a consciência e me flagrou olhando o bolo.
— Vamos, papai, vamos — disse, puxando-me.
Peguei-a pelos braços carinhosamente. O padeiro nada falou.
Saí dali com a garganta embargada. No caminho de casa,
tentei disfarçar as lágrimas que não pude evitar. Antes que chegássemos à nossa
casa, ela ainda me perguntou:
— O papai tava com vontade de comer um pedaço de bolo? Não
fique assim. Se o senhor não arrumar trabalho, logo eu cresço e começo a
trabalhar, e daí eu vou comprar um pedaço inteiro só pro papai.
Já em casa, preparei um pão recheado de açúcar e dei à
menina. Marcinha comeu-o de olhos fechados, talvez imaginando... Com os lábios
crispados de açúcar, ela exclamou:
— Papai, esse pão tá tão gostoso, até parece com o gosto do
bolo da padaria! Experimente.
Meu coração partiu mais ainda com aquelas doces palavras.
Antes ela batesse os pés fazendo birra. Ao beijá-la, percebi que sua face
estava pálida e seus olhos foscos. Passadas algumas horas, já era tarde da
noite, ouvi o bater à porta. Atendi com estranheza. Pros-trado em minha porta,
vi o português Carlos, com dois embrulhos, um em cada braço.
Sisudo, mas carinhoso, ele me entregou os volumes. Não era
um pedaço nem dois pedaços de bolo, eram dois bolos inteiros: um de abacaxi,
outro de morango. Tentei lhe falar, mas não tive palavras. Ele, com certeza,
ouviu meu silencioso agradecimento. A minha me-nina teve seu rosto
repentinamente corado, e seus olhos com um novo bri-lho. Seu Carlos se foi,
fiquei a olhá-lo. Virou-se e percebi um maravilhoso pequeno sorriso de canto de
lábios.
Ficamos amigos. Tão logo minha situação melhorou, procurei
pagá-lo. Foi aí que ele me disse: “Cá neste estabelecimento, não vendo fiado. Por
favore, não insista”.
JDamasio
Oração de um quase descrente. 2009
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