A libélula púrpura flana acima do véu pendente do teto a
envolver a cama de madeira rústica. A libélula destoa do ambiente. Chão sujo,
cheiro acre de suor masculino no ar. Manuela não sabe o significado daquela
aparição... Não sabe que as libélulas chegam para ensinar a romper com as
ilusões, atravessá-las e abraçar o que buscamos. Elas vêm para dizer que as
limitações físicas são ilusões, podemos atravessá-las. Podemos. A libélula
pousa no véu e fica ali por alguns minutos. O corpo de Manuela está dolorido.
Os músculos das pernas ressentem dos dias de caminhada excessiva. O ambiente é
estranho. Aquela pequena cabana de madeira está encravada meio ao matagal. Ela
ouve barulho de panelas. Quer sair dali. Suas mãos estão amarradas à cabeceira
da cama. Precisa continuar sua viagem. O rapaz surge na porta, sem camisa. A
calça de tecido rústico marrom. As botas de montaria. Ele tem os cabelos
desgrenhados, ela percebe, agora que ele tirou o chapéu. O cabelo suado adere à
sua testa. Ele a olha por alguns segundos e depois a conclama:
— Tem arroz com charque, tem frutas e leite. A moça precisa
comer.
Nas manhãs ele saia e voltava à tardinha com um animal
morto. Era estranho ficarem ali, as janelas e portas fechadas com ferrolhos
enormes. Disse a ele que precisava ir ao Rio de Janeiro. Era como se, súbito, o
rapaz a controlasse com seu olhar de ferro. Era como uma lâmina fria o olhar
dele. O olhar dele dava ordens. Fazia com que Manuela ficasse estática, sem
coragem de seguir sua caminhada, tentar uma fuga.
Bárbara Lia
As Filhas de Manuela
Menção Honrosa na primeira edição do - Prémio Literário
Fundação Eça de Queiroz (Portugal)
sobre o romance inédito:
Ambientado de 1839 aos dias atuais, com cenários que vão de
Paranaguá ao Rio de Janeiro, passando por Paris e por Arraial D’Ajuda, um
mosaico de vidas que insistiram nesta tal felicidade, sem pieguice ou
fantasias, e em amores distanciados dos contos da carochinha. Traz o
estranhamento de estar vivo, meio a um enredo quase surreal, onde um homem
amaldiçoa uma mulher e toda a sua descendência, com ódio tão extremo e com o
desejo de que todas sofram tanto que até suas sombras sangrem. O livro relata
como elas lidaram com esta absurda herança.
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