quinta-feira, 18 de junho de 2015

Raciocínios Karanzísticos


Infelizmente só me tornei próximo dele poucos meses antes de sua partida. O tempo que privei de sua companhia foi de alegria intensa. O livro do Karam de que mais gosto é o Encrenca. Mas em cada linha de todas as suas obras nos deparamos com uma inquietante inventividade, vivenciamos o espanto. Seu humor filosófico nos retorce o cérebro. A veia poética é certeira e luminosa. Manoel Carlos Karam é um desses gênios que fez o impossível com a linguagem. E foi um homem generoso, abriu casa e coração para os escritores mais jovens. Espero que um dia minha barba fique branca e vasta como a dele.
Se impossível é falar de si, mais impossível ainda é falar do outro, já que ao falar do outro, fala-se de si, ou seja, do que se desconhece. E este é um raciocínio, digamos, bem Karanzístico. Sei que assusta e pinta um mundo em que o caótico e o absurdo reinam. De todo modo, é justamente dentro de tal mundo que, incrivelmente, nos conectamos, nos comunicamos e, mais incrível ainda, criamos. Fomos nós os humanos que fizemos o amor, a literatura, a ciência, os conceitos, o pão de queijo e, que remédio?, o sertanejo universitário. Inventamos outros mundos possíveis a partir do impossível deste que convencionamos chamar de real. E os outros mundos inventados, então, ao longo do tempo, passaram a fazer parte deste maior, mais real, quero dizer, culturalmente mais aceito. O mesmo processo se está dando com a obra do Karam. Mas antes de entrar aí, quero nos perguntar como puderam tais proezas os homens e as mulheres que estiveram aqui antes de nós? Como poderemos nós fazer tal coisa? Isso de sermos inventores. Acredito que lançando-nos na direção do desconhecido para só então vir a conhecer. Mas conhecer o quê? O que talvez justamente não se dê a conhecer jamais. Porém, não me sai da cabeça a seguinte sentença: estar vivo é estar exausto e fazer de novo... fazer de novo.
Nietzsche disse, não é?, me ajudem, mais ou menos assim: não há sentido algum na existência, por isso mesmo é preciso inventar o sentido. Muito bem, Karam inventou o seu: a literatura. Estou certo que Karam teve a coragem e a dedicação para desejar e criar o futuro. Esteve sempre lá adiante, como disse o escritor Roberto Arlt, por prepotência de trabalho. Humilde e generoso em sua vida social, Karam, no que diz respeito a sua obra, teve tal prepotência, tal ambição. Ele realizou algo na vida.
Do meio de um mundo sem-sentindo, absurdo, trágico, Karam fez o melhor de si. Fez luzir alto sua obra. Como bem disse dele Joca Reiners Terron: Karam mirou o século XX e acabou por acertar o XXI. Se por um tempo sofreu de uma espécie de injusto ostracismo em relação ao mercado e ao público leitor (rompido volta e meia por ilustre galeria de fãs incondicionais como o próprio Terron, mais Nelson Oliveira, Paulo Sandrini, Luci Collin, Assionara Souza, Carlos Henrique Schroeder, Daniel Pelizzari, Ronaldo Bressane, apenas para citar alguns), ostracismo, aliás, bastante incompreensível e, por tanto, semelhante ao de Campos de Carvalho. Diga-se, Karam foi tão genial quanto o autor de O púcaro búlgaro e A chuva imóvel, levando a invenção literária do século XX às últimas consequências no Brasil, o que, para o bem de todos, os lançou diretamente para o XXI, os colocando como, mais do que pais, pares de autores como, por exemplo, Gonçalo Tavares, Mario Bellatin, entre outros. Para o escritor Karam, o futuro; para sua obra, a contemporaneidade.
Pretendo ficar à vontade aqui com vocês como fosse outra vez a cozinha da casa do Karam, em que estive duas vezes, se bem me lembro em 2007. Karam e sua esposa Kátia a nos servirem, a mim, Nadja Naira e Michelle Pucci, uma variedade de queijos, pães, vinho e, sua bebida preferida, cerveja Heineken, que na época ainda não era tão popular no Brasil. Eu nunca tinha tomado tal cerveja e julguei o gosto de Karam sofisticado. O ano era o de 2007, me confirma agora por telefone Diego Fortes, e na sua cozinha Karam abençou a leitura pública que faríamos de seus textos, no ACT (Ateliê de Criação Teatral), dali poucos dias. Nadja era a diretora do trabalho e, além de mim, formavam o elenco Michelle mais Diego, Alexandre Nero e, o filho músico do escritor, Bruno Karam. Diego e Nadja, com a Armadilha Cia. de Teatro, viriam, após esta leitura, se debruçar em constante, competente e frutífera pesquisa da obra de Karam. Resgataram suas primeiras peças num ciclo de leituras públicas e encenaram novas configurações de textos colhidos em todos seus livros. Tudo isso veio dar mais no mês que corre num projeto de conclusão de curso de Letras na UFPR de Michelle Pucci, em que sua banca de defesa transformou-se num monólogo brilhante com ela atuando e direção de Nadja, onde os textos de Karam voltam à cena.
Na segunda vez em que estivemos na cozinha, famosa por receber vários daqueles autores da Geração 90 (integrantes da antologia organizada por Nelson Oliveira), que tinham em Karam grande inspiração, discuti ferozmente com Ulisses Galetto, nem mesmo lembro por qual motivo. Galetto era namorado da Michelle à época, por isso estava conosco. Karam já vinha bastante debilitado de uma série de quimioterapias. Por muito tempo me envergonhei de ter agido daquele modo ignorante e insensível com a situação pela qual Karam passava. Apesar de doente, no entanto, ele era só transmissão de alegria e generosidade. Depois, sempre tive e continuo tendo um bom e estimado amigo em Ulisses Galetto. A briga foi o pior da noite, mas a menciono para destacar que do encontro, por causa de uma das minhas provocações, Galetto acabou por musicar um poema que está no capítulo 10 (pág. 83) do Pescoço ladeado por parafusos.
Pescoço ladeado por parafusos (2001, Ciência do Acidente)
Suspeito que Pescoço ladeado por parafusos surge das leituras que Karam teria feito dos livros A construção da personagem e A criação de um papel, do encenador russo Constantin Stanislavski, em que ele sistematiza seu método teatral. Numa das visitas que fiz a sua casa, junto com Nadja e Michelle, ele nos conduziu por um passeio a sua biblioteca. Por se tratarem os visitantes de gente de teatro, que justamente na época aprontavam leitura publica de textos seus e assim devolviam o nome de Karam, afastado há anos por causa de sua dedicação à literatura, à cena teatral curitibana. Havia na biblioteca um “setor” inteiro dedicado ao teatro. Karam olhou para mim, que me espantara com a rica coleção, e disse daquele jeito simpático meio gaguejante que ele tinha: já tive um severo interesse por esta arte. Referia-se, claro, ao teatro.
Lembro de ter visto os livros de Stanislavski na biblioteca e, pelo que conheço das obras tanto do russo quanto das do Karam, lanço tal suspeita no ar para o estímulo de pesquisas futuras. De todo modo, adianto que a prosa de Karam é altamente teatral. Leiam-na em voz alta e saberão. Seus primeiros exercícios de escrita foram peças de teatro, para o Grupo Margem. Autor de fôlego, escreveu e dirigiu mais de vinte, nos anos 1970. Eugène Ionesco e Beckett como referenciais. Como mencionou em recente ensaio, Nelson de Oliveira: “seus personagens literários têm um forte vínculo com o teatro. Por exemplo, os amigos Benjamim, Hopalongue, Maria, Marta Júnior, Oliveira, Serafim e Silvestre, de O impostor no baile de máscaras. Eles protagonizam capítulos-esquetes e se expressam por monólogos ou por longos diálogos, prato cheio para qualquer adaptação para o palco”.
Sabemos que uma das principais exigências do texto teatral é a de que ele só se realizará plenamente numa existência em voz alta, ou seja, ele precisa ser materializado pela voz. Necessita ser levantado do papel e vir entranhar-se no corpo humano, no corpo do ator. Todo ator é mais ou menos o monstro de Victor Frankenstein, o estudante de ciências naturais que o constrói em seu laboratório, ou seja, um ser feito, construído e não nascido. Ora, personagens da literatura já são, grosso modo, exatamente isso, mas o personagem em processo de construção de Pescoço ladeado por parafusos explicita e problematiza tal questão como nunca antes o fizera a literatura brasileira.
Não vou entrar aqui nos capítulos do livro que se referem ao Jornal da guerra contra os taedos – na época ainda fragmentos de um romance por vir, feito, pelo que conta a lenda, muito por estímulo do livreiro Eleotério –, nem no Projeto de bestiário ou nas Anotações sobre os números, ou na Introdução à geografia do etc. Entrar nisso tudo me enlouqueceria ainda mais – e eu sei que é exatamente o que o Karam quer de mim, seu leitor. Mas preciso me controlar um pouco, ao menos até a fase pela qual passo ter seu ciclo encerrado. Estes títulos que citei aí em cima são partes, capítulos, do engenhoso puzzle de peças estrategicamente desordenadas, invertidas, que Karam monta e remonta em Pescoço ladeado por parafusos.
Permitam-me o direito de ficar apenas com a peça maior, a peça que vai aos poucos narrando a fabricação de um personagem, começando pela escolha do nome, indo ter na pesquisa do rosto, do corpo, da alma, etc. Aí está a síntese de um Karam-Frankenstein em seu laboratório literário. Num singular procedimento de metaficção, que acompanhou o autor ao longo de toda sua obra, e que aqui se dá em nível estrutural de radicalidade no que se entende conceitualmente por romance. Narrador e narrativa se fazem simultâneos à invenção do personagem. O que é um, o que é outro, quem é quem? Todos, narrador, narrativa e personagem aparecem como seres feitos, incompletos, não-nascidos. Um monstro de linguagem, o homem. Exatamente como os personagens do teatro, que exigem ser reconstruídos novamente e novamente por cada ator que decidir os representar, ou melhor, entranhar, para que sobrevivam ao longo da História.
Todo leitor de Karam será um ator, no sentido de que é uma leitura de suas obras é uma leitura que exige ação, é uma leitura dentro da qual se atua. Todo leitor de Karam será um ator ou não o terá lido.

LUIZ FELIPE LEPREVOST, notas e ensaios sobre literatura


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POR LUIZ FELIPE LEPREVOST

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