sexta-feira, 19 de junho de 2015

Suaves desistências

No calor, reduzo minhas caminhadas por Curitiba. Passo dias internado, só abrindo uma ou outra exceção para alguns passeios habituais que a maioria de nós julgaria extravagantes. Um deles me leva sempre a visitar certas árvores da cidade, espécimes que me cativam de um modo especial, por razões passionais e, portanto, insondáveis.


Gosto de árvores, ponto. Dia desses, li uma crônica em que Rubem Fonseca admitia ser um dendrólatra e, citando o poeta polonês Czeslaw Milosz, até dizia querer ser uma árvore, para crescer "sem ferir ninguém".
Bem, não creio na bondade arbórea, já vi árvores machucarem muita gente por aí (eu mesmo sou alérgico a aroeiras), e sei que as plantas também matam por espaço, água ou luz. Mas confesso me sentir bem próximo dessa tal dendrolatria, embora ainda esteja longe de ser um especialista. Por exemplo: só há pouco descobri que as palmeiras da Osório são jerivás, e não butiazeiros, conforme registrei, equivocadamente, em tantas crônicas. Paciência, sou um animal e cometo erros, coisa que os vegetais não fazem.

Mas quero falar das visitas. Semana passada, subi a Prudente de Morais só para checar a floração das quaresmeiras — ou seriam manacás? Carreguei comigo minha filha de cinco anos, e que, estando de férias, topa qualquer programa. Lá, avaliando aquela bela mistura de flores de coloração mutante, que varia entre o branco, o rosa e o roxo, a menina logo concluiu que algumas pétalas, caprichosamente, "desistiam" de uma cor em favor de outra.

Adoro esse uso suave do verbo desistir. Minha filha o inventou depois de examinar o rosto da irmã de um mês e meio e declarar que o bebê estaria "desistindo dos olhos azuis".

Perto dali, dois pés de hibisco já bem criados, os caules retorcidos, dividem a mesma copa. No início, ainda mudas, pareciam brigar, e algum morador da rua até os amarrou com um barbante, para que não fugissem um do outro. Hoje são duas serpentes de várias cabeças, presas no próprio abraço. E, na confusão de sua folhagem, as flores se embaralham incendiadas, umas vermelhas, outras amarelas, nos dando a impressão desatinada de que cada galho tem o condão de escolher a cor do fogo que penderá de sua ponta.

Também gosto muito de uma dupla de árvores, essa bem mais inusitada, que visito no Jardim Leonor Twardowski. Ao lado do Café do Estudante, grudados, crescem um mamoeirinho e uma jovem araucária, eternamente enfeitada com bolas e serpentinas de Natal. Um dia, a araucária será uma gigante indiferente, e os poucos que se derem ao trabalho de olhar para cima ao passarem por ali se perguntarão quem foi o doido que a escalou para decorá-la.

Ótima árvore, sei que iluminará nossas noites nubladas. É uma ilusão que o acaso germinou no deserto urbano, uma miragem desprezada, apesar do brilho de seus penduricalhos. Uma araucária — quem sabe um pinheiro australiano — que é também um monumento à nossa excentricidade.

Outra trilha que costumo percorrer margeia o Passeio Público. Foi nela que, certa vez, flagrei um bêbado dormindo na grama, à sombra dos jacarandás-mimosos. A dois passos dele, uma grande garça o observava. Perplexa, a ave curtia a chuva de pétalas que o soterrava devagar, fazendo-o sumir feito um montinho de pó que a natureza varresse para debaixo de um tapete violeta.

Aliás, esse homem evanescente me lembrou de um conto de Dalton Trevisan, tão recente quanto certeiro, dedicado aos ipês da Tiradentes. Nele, o narrador nos pergunta: "Quem aproveita, neste céu de cinza, os ipês floridos na praça?".

Bem, eu tento. E aproveito também para convidar a cidade, mesmo que amortecida, a desistir do cinza. Suavemente.

Sim, seria, até que o tempo viesse de novo lhe podar os galhos, as flores, as hastes e os frutos, para com eles enfeitar o vazio de uma garrafa.

Luiz Henrique Pellanda

Gazeta do Povo 26/01/2015

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