Em minha última temporada de verão em Guaratuba eu era um
mendigo velho desses que dormem próximos das pedras, dentro dos barcos fora de
uso. todos me consideravam grotesco. minha aparência sugeria isso. mas minha
fala era calma e preenchida de sabedoria. dois olhos não devem saber enxergar
mais que o nariz. só voltava a falar quando estava novamente sozinho. nem
sequer precisa mandar que fossem embora, ninguém aguentava ficar perto de mim
mais do que alguns segundos. eu via o creme dos sorvetes jogados na areia se
desmancharem. tinha muito tempo que caminhava pelos bairros perto da baía e era
sempre como se eu tateasse sua decadência com o olfato. o vento que vinha do
sul era o atirador, meus poros recebiam golpes que penetravam e corriam dentro.
talvez na temporada anterior àquela tivesse sido uma espécie de criminoso, um
brutamontes que sentia errado e demais. alguém em quem todos os sentidos foram
nalgum momento lama e suplício. em temporadas ainda mais remotas, não sei, o
inchaço de meu fígado devia ter desejado muito mais que rezas, cocaína ou a lua
equilibrada feito um comprimido na ponta da língua. quem sabe ainda apenas
costurar a tristeza assim como os médicos costuram barrigas esfaqueadas nas
emergências dos hospitais públicos. quem sabe o odor das flores eram somente
fóssil no rochedo dos pulmões. eu tinha sido um maníaco comedor de cigarros. a
vida era desse jeito, flores lavadas com trezentos e quarenta doses de pinga
por semana do lado de fora dos bares abarrotados, na rua da amargura, na
pracinha central da desesperança. além dessas, devo ter vivido ainda noutra
espectral época anterior, bem antes de eu vir a me transformar nesse velho
fedendo a suor e urina, nem sei se exatamente como um mendigo em minha última
temporada de verão
Luiz Felipe Leprevost
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