debaixo do sol
escolhe, pois,
a vida
deuteronômio 40,19
Como condensar esta luz e jogá-la sobre a pele da página?
Como transplantar mil árvores e fazer um bosque num deserto de sal? Como
porejar este orvalho que a grama suou na febre verde da madrugada? E como, nas
entranhas que partilhamos eu e o domingo, vestir com meu corpo nu a mulher
deitada na memória? Como? Como filtrar este azul boquiaberto e banguela e
derramá-lo na retina de um cego? E as línguas da luz falando calor e carícia? E
o perfume quase venenoso da pitangueira? Como traduzir um cão dormindo? Como
reivindicar a autoria da aurora? Como reduzir o horizonte irredutível e com a
esferográfica recriar a máquina atordoada de um inseto? Como concorrer todas as
palavras para o acidente fabuloso de uma manhã (que amanhã reinventa)? Como me
traduzir, contemplativo, agudamente sólido mas dissolvido, esta aventura
diária, epopeia de uma página? Como?
Não dá, simplesmente. Talvez fosse melhor que soubesses:
amassa esta folha, depõe a caneta e vive.
Não podemos traduzir o dia, a vida. O dia é intraduzível. A
vida é intraduzível. Mas a poesia tem o tamanho da vida.
Deixa ao menos que o poema te devolva ao mundo, com teus
cinco sentidos e as mãos enormes.
Rodrigo Madeira
(pássaro ruim, 2009)
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