quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Impressões e expressões em Portugal



“Fixe.”

O que foi que ela disse? “Vixe”? O que foi que eu fiz de errado? Não, esperem, não é assim que eu pretendia começar este texto. Era assim: “O piloto anunciou que já estávamos sobrevoando Portugal.” Sim, era assim.

lisboa
O sol sobre Lisboa

O piloto anunciou que já estávamos sobrevoando Portugal. Tirei do bornal sob o assento da frente o livro de Herberto Helder. O corpo o luxo a obra. Uma edição brasileira, seleção de seus poemas, na qual está o longo poema que dá título à antologia, que diz: “Quando / as veias dos mortos fazem um nó furioso / com as minhas veias, / a voz / costura-se com as linhas de sangue / da sua fala.” No avião, tudo era falado em português, então em inglês, por fim, em alemão. As três línguas que uso diariamente. Ou que me usam?

Começa a descida, o piloto pede a todos que afivelem os cintos, ergam a mesa, desliguem os aparelhos eletrônicos. Passo a ler aquele poema-mantra de Helder, “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” O sol sobre Lisboa, aquela luz que chega a cegar quem vem já do outono em Berlim, onde o céu nublado permanecerá cinza até meados de março. Quando o avião levantou voo na capital alemã, entramos nas nuvens que cobrem a cidade, o avião chacoalha, a tensão do clima, e logo ultrapassa as nuvens e vê-se o azul ainda lá, cobrindo Berlim, escondido. Mas, em Lisboa, o sol, a luz sem esconderijos. A língua que chega: “As casas são fabulosas, quando digo: / casas. São fabulosas / as mulheres, se comovido digo: as mulheres”, e me pergunto se todos percebem a importância do dizer comovido.

Que experiência, esse estranhar e esse reconhecer ao mesmo tempo. Portugal, Brasil. Estar em um país estrangeiro e falar sua língua. Nós, lusófonos, separados pelo mar, por terra, sem jamais fazer fronteira com outro território lusófono. Que bonito estar em um país homolíngue. Inventei a palavra? Não tenho certeza. Homolíngue, de mesma fala. Heterolíngue, de fala diferente.

No aeroporto, pergunto a uma portuguesa onde fica a área para fumantes. Ela não entende, e pergunta como quem corrige: “O sítio para fumadores?” Sim, o sítio para fumadores. Na tabacaria, falam comigo em inglês e digo como quem corrige: “Podem falar português comigo.” Minha editora portuguesa, Helena Vieira da Mariposa Azual, espera para me pegar, com sua filha Beatriz Nunes, cantora do Madredeus desde 2011. É uma alegria estar aqui. Seguimos para Loures, onde vive, e lá como o feijão e o lombinho de porco. Estranho, reconheço.

Seguimos mais tarde para Lisboa, até o Chiado. Passamos por livrarias independentes, deixamos cópias do meu livro Medir com as próprias mãos a febre, que acaba de ser editado aqui. Chiado, com as estátuas de Luís de Camões e Fernando Pessoa marcando ao menos dois dos pontos cardeais. Esses cafés! Esses pastéis de nata! Esses homens lindos nas ruas! É fixe. Fixe? Ora, o que é fixe? É o que vocês chamam de “legal”, de “maneiro”, diz-me Helena. De “mara”, atualizo-a. É fixe. É mara. É giro? E “giro” tem concordância? Sim, diz-se “giro”, “gira”.

Às sete da noite, seguimos para o Bar Irreal, na Rua do Poço dos Negros. Há leitura do poeta António Poppe. Mas chamar de leitura o que fez não faz jus ao que fez. É outra visão da poesia, xamânica, ele fala, fala, entrelaça sem pausa os poemas na fala, repete versos, guia-nos a algo. Ao quê? A algo real.

Lá, conheço pessoalmente a poeta Margarida Vale de Gato. E Catarina Santiago Costa. E Marta Raquel Fonseca. Lá, reencontro Alexandra Lucas Coelho, minha amiga, uma das prosadoras da língua que mais admiro hoje. Ela lerá na apresentação do meu livro. Logo, ela me pega pela mão e diz: “Vem cá, quero te apresentar alguém.” Era Olga, a viúva de Herberto Helder, ali na leitura de António Poppe. Beijo sua mão, sento-me, começamos a conversar sobre Brasil, Portugal e Angola, de onde ela vem. Da admiração de Helder por poetas brasileiros, da resistência, por vezes, de editores portugueses em publicar brasileiros. Falamos das novelas, das canções. De tudo o que nos une.

Ao fim, sigo com Helena Vieira e Leonel Guerreiro, mais a artista Marta Bernardes, a comer açorda e polvo, ambos à alentejana. Marta e eu conversamos longamente sobre o candomblé, sobre a influência do iorubá e o bantu sobre o português brasileiro. Falo sobre o perspectivismo ameríndio. Ficamos admirando a beleza da palavra “azeitona”, e eu falo do meu poema “Tolo de ouro”, que começou por causa do meu amor por azeitona, a coisa e a palavra: “Açoitem-me com azeitonas, moços”.

Um brinde!

— A Brasil e Portugal…

— Não! Não, espere… a ALGUNS brasileiros…

— Tchim, tchim!

— ALGUNS portugueses…

— Tchim, tchim!

— ALGUNS angolanos…

— Tchim, tchim!

— ALGUNS moçambicanos…

— Tchim, tchim!

— ALGUNS cabo-verdianos…

— Tchim, tchim!

Na manhã seguinte, falamos sobre Fernando Pessoa e seu slogan para a Coca-Cola, “Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”, que levou a bebida a ser proibida em Portugal até 1974. Falamos de Salazar. Falamos de Vargas. Ouvimos canções de José Afonso, como seu “Os eunucos”, e tenho calafrios com os versos “E quando os mais são feitos em torresmos / Não matam os tiranos, pedem mais”, e dizemos “É Portugal e é o Brasil, hoje.”

Logo mais, conto com Miguel Martins a apresentar meu livro, e os amigos Alexandra Lucas Coelho, Matilde Campilho e Ederval Fernandes lendo meus poemas no lançamento. Conheço o jovem poeta sonoro português Daniel Monteiro, que encerra a noite com uma performance.

Pronto para encerrar o texto, ouço Helena Vieira (sobrenome auspicioso para as relações Brasil-Portugal) dizer ao telefone, “O Chiado é o mundo”, e murmuro sozinho: “O sertão também.”


Ricardo Domeneck 
fonte deutshe welle

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