“Fixe.”
O que foi que ela disse? “Vixe”? O que foi que eu fiz de
errado? Não, esperem, não é assim que eu pretendia começar este texto. Era
assim: “O piloto anunciou que já estávamos sobrevoando Portugal.” Sim, era
assim.
lisboa
O sol sobre Lisboa
O piloto anunciou que já estávamos sobrevoando Portugal.
Tirei do bornal sob o assento da frente o livro de Herberto Helder. O corpo o
luxo a obra. Uma edição brasileira, seleção de seus poemas, na qual está o
longo poema que dá título à antologia, que diz: “Quando / as veias dos mortos
fazem um nó furioso / com as minhas veias, / a voz / costura-se com as linhas
de sangue / da sua fala.” No avião, tudo era falado em português, então em
inglês, por fim, em alemão. As três línguas que uso diariamente. Ou que me
usam?
Começa a descida, o piloto pede a todos que afivelem os
cintos, ergam a mesa, desliguem os aparelhos eletrônicos. Passo a ler aquele
poema-mantra de Helder, “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” O
sol sobre Lisboa, aquela luz que chega a cegar quem vem já do outono em Berlim,
onde o céu nublado permanecerá cinza até meados de março. Quando o avião
levantou voo na capital alemã, entramos nas nuvens que cobrem a cidade, o avião
chacoalha, a tensão do clima, e logo ultrapassa as nuvens e vê-se o azul ainda
lá, cobrindo Berlim, escondido. Mas, em Lisboa, o sol, a luz sem esconderijos.
A língua que chega: “As casas são fabulosas, quando digo: / casas. São
fabulosas / as mulheres, se comovido digo: as mulheres”, e me pergunto se todos
percebem a importância do dizer comovido.
Que experiência, esse estranhar e esse reconhecer ao mesmo
tempo. Portugal, Brasil. Estar em um país estrangeiro e falar sua língua. Nós,
lusófonos, separados pelo mar, por terra, sem jamais fazer fronteira com outro
território lusófono. Que bonito estar em um país homolíngue. Inventei a
palavra? Não tenho certeza. Homolíngue, de mesma fala. Heterolíngue, de fala
diferente.
No aeroporto, pergunto a uma portuguesa onde fica a área
para fumantes. Ela não entende, e pergunta como quem corrige: “O sítio para fumadores?”
Sim, o sítio para fumadores. Na tabacaria, falam comigo em inglês e digo como
quem corrige: “Podem falar português comigo.” Minha editora portuguesa, Helena
Vieira da Mariposa Azual, espera para me pegar, com sua filha Beatriz Nunes,
cantora do Madredeus desde 2011. É uma alegria estar aqui. Seguimos para
Loures, onde vive, e lá como o feijão e o lombinho de porco. Estranho,
reconheço.
Seguimos mais tarde para Lisboa, até o Chiado. Passamos por
livrarias independentes, deixamos cópias do meu livro Medir com as próprias
mãos a febre, que acaba de ser editado aqui. Chiado, com as estátuas de Luís de
Camões e Fernando Pessoa marcando ao menos dois dos pontos cardeais. Esses
cafés! Esses pastéis de nata! Esses homens lindos nas ruas! É fixe. Fixe? Ora,
o que é fixe? É o que vocês chamam de “legal”, de “maneiro”, diz-me Helena. De
“mara”, atualizo-a. É fixe. É mara. É giro? E “giro” tem concordância? Sim,
diz-se “giro”, “gira”.
Às sete da noite, seguimos para o Bar Irreal, na Rua do Poço
dos Negros. Há leitura do poeta António Poppe. Mas chamar de leitura o que fez
não faz jus ao que fez. É outra visão da poesia, xamânica, ele fala, fala,
entrelaça sem pausa os poemas na fala, repete versos, guia-nos a algo. Ao quê?
A algo real.
Lá, conheço pessoalmente a poeta Margarida Vale de Gato. E
Catarina Santiago Costa. E Marta Raquel Fonseca. Lá, reencontro Alexandra Lucas
Coelho, minha amiga, uma das prosadoras da língua que mais admiro hoje. Ela
lerá na apresentação do meu livro. Logo, ela me pega pela mão e diz: “Vem cá,
quero te apresentar alguém.” Era Olga, a viúva de Herberto Helder, ali na
leitura de António Poppe. Beijo sua mão, sento-me, começamos a conversar sobre
Brasil, Portugal e Angola, de onde ela vem. Da admiração de Helder por poetas
brasileiros, da resistência, por vezes, de editores portugueses em publicar
brasileiros. Falamos das novelas, das canções. De tudo o que nos une.
Ao fim, sigo com Helena Vieira e Leonel Guerreiro, mais a
artista Marta Bernardes, a comer açorda e polvo, ambos à alentejana. Marta e eu
conversamos longamente sobre o candomblé, sobre a influência do iorubá e o
bantu sobre o português brasileiro. Falo sobre o perspectivismo ameríndio.
Ficamos admirando a beleza da palavra “azeitona”, e eu falo do meu poema “Tolo
de ouro”, que começou por causa do meu amor por azeitona, a coisa e a palavra:
“Açoitem-me com azeitonas, moços”.
Um brinde!
— A Brasil e Portugal…
— Não! Não, espere… a ALGUNS brasileiros…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS portugueses…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS angolanos…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS moçambicanos…
— Tchim, tchim!
— ALGUNS cabo-verdianos…
— Tchim, tchim!
Na manhã seguinte, falamos sobre Fernando Pessoa e seu
slogan para a Coca-Cola, “Primeiro, estranha-se, depois, entranha-se”, que
levou a bebida a ser proibida em Portugal até 1974. Falamos de Salazar. Falamos
de Vargas. Ouvimos canções de José Afonso, como seu “Os eunucos”, e tenho
calafrios com os versos “E quando os mais são feitos em torresmos / Não matam
os tiranos, pedem mais”, e dizemos “É Portugal e é o Brasil, hoje.”
Logo mais, conto com Miguel Martins a apresentar meu livro,
e os amigos Alexandra Lucas Coelho, Matilde Campilho e Ederval Fernandes lendo
meus poemas no lançamento. Conheço o jovem poeta sonoro português Daniel
Monteiro, que encerra a noite com uma performance.
Pronto para encerrar o texto, ouço Helena Vieira (sobrenome
auspicioso para as relações Brasil-Portugal) dizer ao telefone, “O Chiado é o
mundo”, e murmuro sozinho: “O sertão também.”
Ricardo Domeneck
fonte deutshe welle
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