quinta-feira, 24 de setembro de 2015

CARTA A UM IRMÃO



Convirá tantas vezes morrer,
tantas vezes fluir,
tantas vezes amar,
tantas vezes viver com a vida entre os dentes como um sabre?
Convirá crescer para a possibilidade de sermos podados?
Convirá a pungência das horas amargas, das horas
comuns?
Talvez nos convenhamos assim,
com a grande paisagem a ser construída --paisagem bruta e de pureza.
Assim nos conviremos, cheios de arestas e dilemas,
encravados na praça interior dos brinquedos de metal.

Aceitar e passar a existir sem tréguas.
Aguardar com cicatrizes um ao outro para surpreender.
Convirá viver não do que se vive
mas do que se conquista?

Convirá viver não do maldito tempo e do bendito tempo,
mas do tempo que nasce para nascer?
Eu abençoo porque nada se acresce em vão.
Nem o mútuo roubo das redomas --vestígios de noite,
reencontros, memórias e ventos--
nem o trauma de caminhos interrompidos
e o silo das coisas perdidas
que pouco a pouco fecha o seu portal.

Sentir o peso das abóbodas
e não sucumbir.
Sacudir a árvore com vento nascido de dentro
para que pássaro nenhum se agasalhe
e o verde de fruto nenhum
permaneça em estagnação.
Drenar o presente como um passaporte.
Parir contra as fachadas dos muros
para o pânico esplender
como um barco de asas
ou uma crisálida dentro do cérebro
fingindo voar.

Convirá isto que nos comprime para fora,
este quase inteiro infinitamente multiplicado em pedaços,
este ter uma vara nas mãos para buscar água
e ser caminheiro no reino das passagens a vau?
Assim nos conviremos. Nunca mais o fingir
para caber no porto
e saber das dores todas do nascer
com anos, águas e sedas.

Oh! Convém, inteiramente convém,
convém viver,
convém viver com inconsequência,
convém viver como convém ter membros e sangue,
confluir sem intercalações,
com nenhuma sobra,
com nenhuma senha.


LINDOLF BELL

(1938-1998) poeta catarinense, publicou mais de 12 livros de poemas, formou-se pela EAD e iniciou o movimento Catequese Poética, logo após o golpe militar de 64. A primeira apresentação foi na Boate Ela, Cravo e Canela, situada logo abaixo do Juão Sebastião Bar, na rua Major Sertório. Após o sucesso dessa apresentação, Bell participou de recital no Teatro de Arena e do Sermão do Viaduto, organizado pelo poeta Alvaro Alves de Faria. A partir daí a Catequese Poética conquistou a adesão de vários poetas, criou núcleos em algumas cidades do Brasil e realizou a 1ª Feira de Poesia, na Galeria Ouro Fino, Rua Augusta. A Catequese Poética levou poetas e poemas a mais de 100 cidades brasileiras. As apresentações aconteciam em livrarias, teatros, sindicatos, universidades, colégios, bares e praças. Os poemas divulgados aqui estão no livro Lindolf Bell – 50 anos de Catequese Poética (Editora Patuá,2014).

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