domingo, 24 de agosto de 2014

AGOSTO DE 1954



Na madrugada em que Getúlio
se matou
eu, no interior de Minas,
dormia impunemente
em adolescentes lençóis.
Os padeiros serviam pão
na janelas, e nos quintais
os galos serviam a aurora
-por cima dos generais.
Tomei meu mingau com aveia
-a benção da mãe na sala-
peguei nos lápis e livros
e saí pela neblina
sem saber que um feriado
me livraria das provas
- e me abateria na esquina.
Às 10 horas a notícia quente
me veio nas mãos e na fala
do professor de História.
Suspensa a sala ( e o país)
o mestre teorizava
para um grupo no portão.
Teorizava
como quem pisa o barro
erguendo tijolos frios
para exaurir
-o sangue a e lama. A lama
que se derrama
não só dos jornais e palácios
ardendo vergonha e fogo
como o povo ardia a praça.
Me lembra a voz do messias
com seu sermão serra abaixo
como ovelha acuada
falando em holocausto e sangue.
E havia a palavra « povo »
e a ela se referia
como seu ectoplasma.
O mais não lembro.
Foi um dia meio confuso
com rádio, jornal e fúria
em que as lições eram dadas
fora dos muros da escola.
Outros dias se seguiram
com neblina, aveia e espanto,
Os padeiros servindo o pão
aos parvos comensais
e os galos servindo a história
pela mão dos generais.

Affonso Romano Santanna
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POESIA REUNIDA, L&PM VOL 1 p.257-8)


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