quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Ladainha do morto



Com dezessete facadas
na feira de Canabrava
Amaro Sampaio Mello
morreu por mim
Com uma bala na testa
no Engenho de Canamansa
Francisco Bezerra Lima
morreu por mim
Bordel de Valparaíso:
com um punhal na garganta
Raquel Medina - a morena -
morreu por mim
Com seu fuzil já sem balas
soldado de Ho Chi Minh
Cao Cih aos doze anos
morreu por mim
Hans Alfred von Ahlenfeld
com a cabeça arrancada
por uma granada russa
morreu por mim
Um conde de Budapeste
no Ponto Euxino um Ovídio
em Bucareste outro Ovídio
morreu por mim.
O poeta Mandelstamm
não terminou seu soneto
em sua prisão na Rússia
morreu por mim
Landsberg era alemão
era grego e era judeu
no campo dos concentrados
morreu por mim
Sansão sem olhos em Gaza
entre as ruínas do templo
destroçando os filisteus
morreu por mim
Na rua Bento Lisboa
com carta de despedida
Marina bebeu veneno
morreu por mim
Iracema abriu o gás
Ana Lúcia abriu as veias
um tiro na boca – Mary
morreu por mim
Em Belém Mafalda flor
da beleza palestina
pisou na bomba entre relvas
morreu por mim
Na Polônia na Rumânia
cada Raquel cada Sara
mirando o fuzil da Prússia
morreu por mim
Em paredones de Havana
o frade de São Francisco
benzendo Paco Figueres
morreu por mim
E nas ruas de Manágua
padre Ernesto Cardenal
um guerrilheiro sandino
morreu por mim
No mesmo dia de sol
na rua de Pablo Cuadra
um “contra”de quinze anos
morreu por mim
O jangadeiro Jerônimo
nos verdes mares bravios
alagado pelas águas
morreu por mim
Em Lavras da Mangabeira
poeta Dimas Macedo
um irmão da Coronela
morreu por mim
O poeta Kusakabe
ouviu o estouro da bomba
deu um grito em Hiroshima
morreu por mim
Na praça de Little Rock
com uma guitarra na mão
o negro Bem baleado
morreu por mim
Heitor nos muros de Tróia
Aquiles com o pé flechado
Pátroclo com sua lança
morreu por mim
Em seu palácio Cleópatra
a cobra mordendo o seio
ninho de amores e aromas
morreu por mim
Punhal de Brutus no peito
no sangue de sua toga
César meu rei meu pontífice
morreu por mim
O grego e o troiano o líbio
o soldado o general
como Helena e Clitemnestra
morreu por mim
E Teresa de Cepeda
chamada Teresa de Ávila
morrendo por não morrer
morreu por mim
Em Paris Jorge – e no Chile
Baeza Pepe e Girola
Efraín, Napoleão,
morreu por mim
Nos campos em flor da França
Jacques Alain e Charles
a flor-de-lis da esperança
morreu por mim
Cada cabra do sertão
cada matador de engenho
cada jagunço da várzea
morreu por mim
Uma noite Margarida
Olhou meu retrato triste
Saltou a janela verde
Morreu por mim
A afogada do Leblon
o enforcado de Bangu
a defunta do Encantado
morreu por mim
Um negro em Camaragibe
um João em Tanque d’Arca
uma cigana em Belgrado
morreu por mim
Fui pregado em duas cruzes
e na cruz do meio um Deus
depois de sete palavras
morreu por mim
Um por um eu os matei
um por um me assassinaram
fui salvo por cada um
cada um morreu por mim
Esta lo a língua na boca
a mor te no céu da boca
tem gosto de vinho e mel
vou gozando seu sabor:
por cada um vou morrendo
vou morrendo devagar.
Amén
(poema de Gardo Mello Mourão)


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