Com dezessete facadas
na feira de Canabrava
Amaro Sampaio Mello
morreu por mim
Com uma bala na testa
no Engenho de
Canamansa
Francisco Bezerra Lima
morreu por mim
Bordel de Valparaíso:
com um punhal na
garganta
Raquel Medina - a
morena -
morreu por mim
Com seu fuzil já sem
balas
soldado de Ho Chi Minh
Cao Cih aos doze anos
morreu por mim
Hans Alfred von
Ahlenfeld
com a cabeça arrancada
por uma granada russa
morreu por mim
Um conde de Budapeste
no Ponto Euxino um
Ovídio
em Bucareste outro
Ovídio
morreu por mim.
O poeta Mandelstamm
não terminou seu
soneto
em sua prisão na
Rússia
morreu por mim
Landsberg era alemão
era grego e era judeu
no campo dos
concentrados
morreu por mim
Sansão sem olhos em
Gaza
entre as ruínas do
templo
destroçando os
filisteus
morreu por mim
Na rua Bento Lisboa
com carta de despedida
Marina bebeu veneno
morreu por mim
Iracema abriu o gás
Ana Lúcia abriu as
veias
um tiro na boca – Mary
morreu por mim
Em Belém Mafalda flor
da beleza palestina
pisou na bomba entre
relvas
morreu por mim
Na Polônia na Rumânia
cada Raquel cada Sara
mirando o fuzil da
Prússia
morreu por mim
Em paredones de Havana
o frade de São
Francisco
benzendo Paco Figueres
morreu por mim
E nas ruas de Manágua
padre Ernesto Cardenal
um guerrilheiro
sandino
morreu por mim
No mesmo dia de sol
na rua de Pablo Cuadra
um “contra”de quinze
anos
morreu por mim
O jangadeiro Jerônimo
nos verdes mares
bravios
alagado pelas águas
morreu por mim
Em Lavras da
Mangabeira
poeta Dimas Macedo
um irmão da Coronela
morreu por mim
O poeta Kusakabe
ouviu o estouro da
bomba
deu um grito em
Hiroshima
morreu por mim
Na praça de Little
Rock
com uma guitarra na
mão
o negro Bem baleado
morreu por mim
Heitor nos muros de
Tróia
Aquiles com o pé
flechado
Pátroclo com sua lança
morreu por mim
Em seu palácio
Cleópatra
a cobra mordendo o
seio
ninho de amores e
aromas
morreu por mim
Punhal de Brutus no
peito
no sangue de sua toga
César meu rei meu
pontífice
morreu por mim
O grego e o troiano o
líbio
o soldado o general
como Helena e
Clitemnestra
morreu por mim
E Teresa de Cepeda
chamada Teresa de
Ávila
morrendo por não
morrer
morreu por mim
Em Paris Jorge – e no
Chile
Baeza Pepe e Girola
Efraín, Napoleão,
morreu por mim
Nos campos em flor da
França
Jacques Alain e
Charles
a flor-de-lis da
esperança
morreu por mim
Cada cabra do sertão
cada matador de
engenho
cada jagunço da várzea
morreu por mim
Uma noite Margarida
Olhou meu retrato
triste
Saltou a janela verde
Morreu por mim
A afogada do Leblon
o enforcado de Bangu
a defunta do Encantado
morreu por mim
Um negro em Camaragibe
um João em Tanque
d’Arca
uma cigana em Belgrado
morreu por mim
Fui pregado em duas
cruzes
e na cruz do meio um
Deus
depois de sete
palavras
morreu por mim
Um por um eu os matei
um por um me
assassinaram
fui salvo por cada um
cada um morreu por mim
Esta lo a língua na
boca
a mor te no céu da
boca
tem gosto de vinho e
mel
vou gozando seu sabor:
por cada um vou
morrendo
vou morrendo devagar.
Amén
(poema de Gardo Mello
Mourão)
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