Otto Leopoldo Winck
Marília achou um artigo muito interessante no jornal.
Enviou-o por email ao Dirceu: segundo Lacan, a culpa mais relevante e mais
sofrida surgiria não por termos desobedecido a uma norma, mas por termos
negligenciado nosso próprio desejo, por termos desistido de agir como
queríamos.
Dirceu era casado, bem casado. Uma filha maravilhosa, já
adolescente, notas altas na escola, responsável. Uma esposa maravilhosa, ainda
bonita, independente, ganhando quase tanto quanto ele. Brigavam pouco e se
davam relativamente bem na cama.
Marília era separada. Casara com o primeiro namorado: olhos
claros, voz maviosa, promessas de felicidade... Ele a procurava uma vez por
ano. Um dia ela descobriu uma camisinha no carro dele e se separaram. Teve
outros homens, uns melhores (poucos), outros piores (muitos). Ultimamente
estava envolvida com um taxista. Agarrara-o numa festa em que bebera além da
conta. Encontravam-se uma vez por semana no apartamento dela, depois da
meia-noite. Ele dava conta do recado e além disso era muito paciente para
escutar as suas queixas. Nenhuma de suas amigas sabia desse relacionamento,
óbvio.
Apresentados por amigos comuns, Marília e Dirceu começaram a
se corresponder eletronicamente. Um encontro, dois cinemas, e passaram a
dividir os lençóis dos motéis mais luxuosos e as mesas dos restaurantes mais
caros da cidade. Uma rara afinidade os unia: gostavam das mesmas músicas, dos
mesmos filmes, dos mesmos vinhos. Mas, por via das dúvidas, Marília não
dispensou o taxista. Sincera, não escondia o fato de Dirceu. Afinal, não estava
fácil arranjar homem e Dirceu era um homem casado.
A lua estava cheia, Dirceu viu pela janela do carro enquanto
chegava em casa depois de mais um dia de reuniões nervosas e intermináveis na
empresa. A temperatura, agradável. Olhou o celular: a bandida não ligou. Ora,
ele também não ligaria: mulheres não gostam de homens fáceis. Ela devia estar
com aquele motorista. Pensou em ligar para um amigo e convidar para uma cerveja.
– Aonde você vai, querido? – perguntou-lhe a esposa.
– Tomar uma cerveja com uns amigos.
– Se demorar, me liga.
– Não se preocupe.
O taxista não apareceu naquela noite – o carro não era dele
e noite sim, noite não o patrão lhe exigia o plantão noturno. Marília não ligou
para o Dirceu, afinal, ele tinha família e fazia tempo que o tratante não
ligava ou escrevia. Mulher não pode dar mole.
Marília, então, depois de um longo banho, ligou a televisão
e assistiu à novela. Depois, assistiu ao filme que passou depois da novela.
Depois, ao jornal que passou depois do filme. Depois, a um outro filme. De meia
em meia hora, espiava o computador e o celular para ver se não chegara uma
mensagem nova. Uma amiga a convidava para sair, mas ela recusou: estava muito
cansada. Lá fora a noite de verão esplendia cheia de estrelas e promessas.
A cerveja estava amarga. O amigo, um porre, se queixando da
amante e elogiando a mulher – ou não seria o contrário? Dirceu só ouvia, às
vezes fazia um comentário – não esquenta, mulher é tudo igual. Ele não era
muito de se abrir, nem quando bêbado. Aí simplesmente achava a vida ridícula, e
ele, um executivo de sucesso, um idiota. Mas não tinha jeito. A vida não
apresentava outra saída. De meia em meia hora, ele olhava o celular: nada,
nenhuma ligação ou mensagem dela. Só a esposa que lhe telefonou comunicando que
ia passar a noite fora, na casa de uma amiga. Ele não se preocupasse, a filha
também pernoitaria fora, numa colega da escola.
Depois de quase metade do segundo filme, Marília apanhou o
telefone.
– Quero te ver – ela disse.
– Vou atender uma corrida. Já-já chego aí.
Marília transou como há muito tempo não fazia. O taxista até
pensou: Meu Deus, está coroa está apaixonada! Se ela se casasse comigo...
Depois de inúmeras garrafas, Dirceu e seu amigo se separaram
– este lançando impropérios contra a noite e as mulheres. Se voltasse para a
casa agora, só um leito frio o aguardava. Circulou de carro pelas ruas
desertas, enquanto a lua, visivelmente menor, se escondia entre os
arranha-céus. Acabou ao lado de uma profissional, depois de uma insípida
trepada.
Alguns dias depois a mulher, depois de muita tergiversação,
veio com a notícia:
– Quero me separar. Apareceu outro homem, nos apaixonamos.
Marília não casou com o taxista. Ainda hoje se encontram
semanalmente, sempre depois da meia noite, quando os porteiros parecem mais
condescendentes com as aventuras dos condôminos. Nunca mais ligou ou mandou
mensagem para o Dirceu. Nem ele. Olhando para o céu – estrelas e promessas –,
ela sente um aperto no peito. Inúteis, as estrelas. Vazias, as promessas.
Depois de outro dia de reuniões nervosas e intermináveis,
Dirceu está de novo no bar. Dessa vez, sozinho: o companheiro de noitadas há
tempo se reconciliou com a esposa. Ou com a amante, não sabe bem ao certo. A
lua está escandalosamente grande, ele percebe, olhando pela janela do
estabelecimento. A temperatura, agradável. E ele, no quarto ou quinto uísque,
adia o retorno à quitinete vazia. As pedras de gelo girando no copo, as
espirais azuis da fumaça do cigarro... É, realmente, Lacan tinha razão.
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