sábado, 2 de janeiro de 2016

CONTEMPLAÇÃO DO MORTO


Observo o morto.
Ainda ontem ele pegava ônibus,
pagava contas, fazia planos:
férias no campo, carro zero
ou talvez um novo amor.
Observo o morto. Os olhos que tanto
se moviam, irrequietos,
estão parados
atrás das pálpebras. Enxergam o quê?
Os ouvidos até há pouco
curiosos, estão agora surdos,
escutam o nada ou, quem sabe, sinfonias.
A língua, outrora tão falante,
emudeceu. Sentirá qual sabor?
As mãos, vejam as mãos. Enormes, brancas, paradas.
Postas no peito, já não apalpam seios,
já não podem apertar
outras mãos, ou bater no filho
desobediente, que assustado
pouco chora. Os pés, reparem
os pés, que tanto caminharam,
correram para pegar banco aberto,
fugir da chuva ou se encontrarem
furtivamente com outros pés. Os pés
imóveis dentro dos sapatos novos
agora já não dançam, já não podem dançar.
Observo o morto,
absorto. O rosto.
Até esses dias este rosto
me sorria, me contava anedotas,
me falava de mulher, futebol, da vida
que precisava dar um jeito, ai, precisava.
Observo o morto. No rosto
subitamente máscara um quase esboço
de sorriso. A morte é desconfortável
não para ele, mas para nós, os vivos.
Observo o morto. Ele até que está bem
dentro do terno, dos sapatos, dentro
do caixão – melhor, imagino, do que quando criança
no berço. (A criança quer sair
do berço. O morto não.)
Observo o morto.
Não as flores, as velas, os parentes, os amigos,
as conversas sussurradas.
A vida não me interessa agora. Me interessa
somente o morto. Observo-o,
absorto. Será que de algum lugar
ele me observa também?


Otto Leopoldo Winck

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