segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A precisão da febre





   
    Leio O Pelo Negro do Medo (Record), romance de Sérgio Abranches. No capítulo quinto, defronto-me com uma advertência ameaçadora de Jorge Luis Borges. “O Universo desta noite tem a vastidão do olvido e a precisão da febre”. Esqueço-me do olvido – o próprio esquecimento – e me detenho na febre. Nós a medimos com os termômetros, que dela nos fornecem um registro preciso, depois avaliado pelos médicos com grande fé. Mas a febre é uma armadilha que sinaliza, através do mesmo número, males distintos. A febre nos diz, com repulsiva precisão, que algo acontece – mas não diz o que acontece. Não lhe dá um nome. Trata-se, portanto, de uma precisão imprecisa que, se nos alerta, também nos aflige.

Não só pelos delírios que, nos estágios mais fortes, ela chega a provocar, sempre achei que a febre, pela fluidez e imprecisão, se assemelha aos fantasmas. Vinicius de Moraes – que preferia observar o lado doce das coisas – afirmava, ao contrário, apreciar as febres, porque elas nos permitem “não fazer nada”. Além disso, dizia o poeta, o calor da febre não deixa de ser uma experiência inebriante, quase sensual. Vinicius foi uma exceção, já que costumamos encarar a febre com repugnância. Ela nos diz algo – afirma em alto e bom som, grita – sem que, no entanto, o nomeie.
      
A mesma atmosfera de imprecisa precisão envolve o romance de Sérgio Abranches, sociólogo renomado que se desdobra (e, de certa forma, se desmente) como escritor. Seu romance é escrito em estilo febril. Ele nos faz avançar, passo a passo, algemados – como sombras – aos protagonistas. É, ainda, um romance limítrofe, a meio caminho entre a ficção e o ensaio. Nele, o pensamento é tão importante quanto a ação. Já na “apresentação”, Abranches nos fala de seu interesse por Guimarães Rosa e por Thomas Mann, escritores que atravessaram as vidas de seu bisavô e de seu pai. Autores de grandes livros que guardam o poder de gerar perturbadores pensamentos. Nunca duvidei disso: a literatura é uma máquina de pensar. Ainda mais poderosa – embora mais imprecisa – do que as reflexões dos “grandes pensadores”.

Além de ficcionista, Sérgio Abranches é, também, um leitor voraz. Suas leituras – de Schopenhauer, de Drummond, de Cruz e Sousa, de Hemingway – contaminam o livro. O Pelo Negro do Medo narra a visita de um casal, Lucas e Vera, à cidade histórica de Paraty. Muito pouco acontece, mas, nesse muito pouco, o medo (febre poderosa) se infiltra. O casal não visita uma cidade, visita sentimentos. Paraty não passa de um depósito de lembranças e de sensações.

Enquanto avançam pela cidade escura, entre casarões vazios e fantasmas, os dois se deixam embriagar pela atmosfera irreal que, no entanto, produz emoções e reações reais. A viagem – e a literatura é, em si, uma viagem – os envolve em um complexo feixe de pensamentos, que transformam o relato, muitas vezes, em uma meditação. Pensamentos, porém, não são portas de entrada; tampouco portas de saída. Assemelham-se, mais, a um vazamento que goteja na noite, alargando-a. Às vezes, eles a iluminam. Outras, eles a obscurecem. Não existem garantias.

São dois personagens em trânsito, que não conhecem a origem de sua aventura, e nem alimentam ilusões a respeito de seu destino. Essa condição passageira, não só dos pensamentos, mas da própria existência, imita a situação dos viajantes que, em trânsito em gares ou aeroportos, se agarram a mapas e guias, na esperança de uma rota. Situação que se expressa em uma citação de Guimarães Rosa: “Digo: o real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. As longas pausas de Lucas e seus pensamentos compulsivos não iluminam seu caminho. Talvez, até, o tornem mais obscuro. Ainda assim, elas alimentam a caminhada. O pensamento é um combustível que, se queima e arde, também faz andar.

Relata Lucas: “Jamais olhar para trás. Seguimos. Seguíamos. Sempre em frente”. Assim avançam: na esperança inútil de um destino. Constata, porém, Vera: “São momentos de nosso cotidiano que só se tornam significativos depois, quando não há mais remédio”. Quando a “solução” enfim aparece, já não soluciona mais nada. Melhor se acostumar – como fazem – a um mundo silencioso, que só nos diz o que lhe interessa. Ainda antes de chegarem à cidade, cruzaram com um velho, que lhes perguntou: “Para onde vão?” “Paraty”, Lucas responde. “Não é bom”, diz o velho, sem explicar sua resposta. Reproduz-se, em sua voz, a presença do termômetro, que fornece um número inexorável sem, contudo, revelar o que ele esconde.

Também a respeito de Vera, um inquieto Lucas alimenta muitas dúvidas. Quem, afinal, ela é? Sim, é uma compositora de prestígio, “que retira música da sua própria derrota diante do desconhecido”, ele pensa. É, ainda, uma mulher tomada por “um medo ancestral” que, em Paraty, se derrama pelas ruas como uma peste. Por causa do mesmo medo, Lucas pensa sem parar. Vera, igualmente, desconhece seu companheiro: “De Lucas sei bem ou quase nada. (...) Lucas nunca foi um”. Não existe um anzol que fisgue uma pessoa. Cogita o narrador: “Vera e Lucas se encontraram (...) para encontrar a resposta definitiva a uma pergunta que não conheciam”. O problema não está na resposta – a que, de fato, nunca chegamos –, mas na pergunta. É da pergunta não formulada que o medo, como uma sombra, escorre.

Versos preciosos surgem para ajudar o narrador: “Mas a poesia desse momento inunda minha vida inteira” (Drummond). Poesia – beleza obscura – que se manifesta na figura de um cão negro, sempre a cruzar o caminho dos dois. Cães passarão por eles, em sucessivas ondas, como fantasmas. Pobres cães, a vadiar pelas ruas de Paraty, sem destino eles também, sem nada desejar. Animais comuns, que Vera e Lucas logo investem do papel de perseguidores. “Somos nós que estamos criando essa perseguição”, Lucas a adverte. Não adianta. Perseguidos por pensamentos que não dominam, eles não fazem apenas uma visita a Paraty. Visitam, ao mesmo tempo, uma antiga cidade interior, construída de velhos temores e assombrada por sentimentos a que não correspondem nome algum.


 José Castello
fonte . Gazeta do Povo


   

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