Leio O Pelo Negro do Medo (Record), romance
de Sérgio Abranches. No capítulo quinto, defronto-me com uma advertência
ameaçadora de Jorge Luis Borges. “O Universo desta noite tem a vastidão do
olvido e a precisão da febre”. Esqueço-me do olvido – o próprio esquecimento –
e me detenho na febre. Nós a medimos com os termômetros, que dela nos fornecem
um registro preciso, depois avaliado pelos médicos com grande fé. Mas a febre é
uma armadilha que sinaliza, através do mesmo número, males distintos. A febre
nos diz, com repulsiva precisão, que algo acontece – mas não diz o que
acontece. Não lhe dá um nome. Trata-se, portanto, de uma precisão imprecisa
que, se nos alerta, também nos aflige.
Não só
pelos delírios que, nos estágios mais fortes, ela chega a provocar, sempre
achei que a febre, pela fluidez e imprecisão, se assemelha aos fantasmas.
Vinicius de Moraes – que preferia observar o lado doce das coisas – afirmava,
ao contrário, apreciar as febres, porque elas nos permitem “não fazer nada”. Além
disso, dizia o poeta, o calor da febre não deixa de ser uma experiência
inebriante, quase sensual. Vinicius foi uma exceção, já que costumamos encarar
a febre com repugnância. Ela nos diz algo – afirma em alto e bom som, grita –
sem que, no entanto, o nomeie.
A mesma
atmosfera de imprecisa precisão envolve o romance de Sérgio Abranches,
sociólogo renomado que se desdobra (e, de certa forma, se desmente) como
escritor. Seu romance é escrito em estilo febril. Ele nos faz avançar, passo a
passo, algemados – como sombras – aos protagonistas. É, ainda, um romance
limítrofe, a meio caminho entre a ficção e o ensaio. Nele, o pensamento é tão
importante quanto a ação. Já na “apresentação”, Abranches nos fala de seu
interesse por Guimarães Rosa e por Thomas Mann, escritores que atravessaram as
vidas de seu bisavô e de seu pai. Autores de grandes livros que guardam o poder
de gerar perturbadores pensamentos. Nunca duvidei disso: a literatura é uma
máquina de pensar. Ainda mais poderosa – embora mais imprecisa – do que as
reflexões dos “grandes pensadores”.
Além de
ficcionista, Sérgio Abranches é, também, um leitor voraz. Suas leituras – de
Schopenhauer, de Drummond, de Cruz e Sousa, de Hemingway – contaminam o livro.
O Pelo Negro do Medo narra a visita de um casal, Lucas e Vera, à cidade
histórica de Paraty. Muito pouco acontece, mas, nesse muito pouco, o medo
(febre poderosa) se infiltra. O casal não visita uma cidade, visita
sentimentos. Paraty não passa de um depósito de lembranças e de sensações.
Enquanto
avançam pela cidade escura, entre casarões vazios e fantasmas, os dois se
deixam embriagar pela atmosfera irreal que, no entanto, produz emoções e
reações reais. A viagem – e a literatura é, em si, uma viagem – os envolve em
um complexo feixe de pensamentos, que transformam o relato, muitas vezes, em
uma meditação. Pensamentos, porém, não são portas de entrada; tampouco portas
de saída. Assemelham-se, mais, a um vazamento que goteja na noite, alargando-a.
Às vezes, eles a iluminam. Outras, eles a obscurecem. Não existem garantias.
São dois
personagens em trânsito, que não conhecem a origem de sua aventura, e nem
alimentam ilusões a respeito de seu destino. Essa condição passageira, não só
dos pensamentos, mas da própria existência, imita a situação dos viajantes que,
em trânsito em gares ou aeroportos, se agarram a mapas e guias, na esperança de
uma rota. Situação que se expressa em uma citação de Guimarães Rosa: “Digo: o
real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia”. As longas pausas de Lucas e seus pensamentos compulsivos não
iluminam seu caminho. Talvez, até, o tornem mais obscuro. Ainda assim, elas
alimentam a caminhada. O pensamento é um combustível que, se queima e arde,
também faz andar.
Relata
Lucas: “Jamais olhar para trás. Seguimos. Seguíamos. Sempre em frente”. Assim
avançam: na esperança inútil de um destino. Constata, porém, Vera: “São
momentos de nosso cotidiano que só se tornam significativos depois, quando não
há mais remédio”. Quando a “solução” enfim aparece, já não soluciona mais nada.
Melhor se acostumar – como fazem – a um mundo silencioso, que só nos diz o que
lhe interessa. Ainda antes de chegarem à cidade, cruzaram com um velho, que
lhes perguntou: “Para onde vão?” “Paraty”, Lucas responde. “Não é bom”, diz o
velho, sem explicar sua resposta. Reproduz-se, em sua voz, a presença do
termômetro, que fornece um número inexorável sem, contudo, revelar o que ele
esconde.
Também a
respeito de Vera, um inquieto Lucas alimenta muitas dúvidas. Quem, afinal, ela
é? Sim, é uma compositora de prestígio, “que retira música da sua própria
derrota diante do desconhecido”, ele pensa. É, ainda, uma mulher tomada por “um
medo ancestral” que, em Paraty, se derrama pelas ruas como uma peste. Por causa
do mesmo medo, Lucas pensa sem parar. Vera, igualmente, desconhece seu
companheiro: “De Lucas sei bem ou quase nada. (...) Lucas nunca foi um”. Não
existe um anzol que fisgue uma pessoa. Cogita o narrador: “Vera e Lucas se
encontraram (...) para encontrar a resposta definitiva a uma pergunta que não
conheciam”. O problema não está na resposta – a que, de fato, nunca chegamos –,
mas na pergunta. É da pergunta não formulada que o medo, como uma sombra,
escorre.
Versos
preciosos surgem para ajudar o narrador: “Mas a poesia desse momento inunda
minha vida inteira” (Drummond). Poesia – beleza obscura – que se manifesta na
figura de um cão negro, sempre a cruzar o caminho dos dois. Cães passarão por
eles, em sucessivas ondas, como fantasmas. Pobres cães, a vadiar pelas ruas de
Paraty, sem destino eles também, sem nada desejar. Animais comuns, que Vera e
Lucas logo investem do papel de perseguidores. “Somos nós que estamos criando
essa perseguição”, Lucas a adverte. Não adianta. Perseguidos por pensamentos
que não dominam, eles não fazem apenas uma visita a Paraty. Visitam, ao mesmo
tempo, uma antiga cidade interior, construída de velhos temores e assombrada
por sentimentos a que não correspondem nome algum.
José
Castello
fonte . Gazeta do Povo
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