segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Partidos, pessoas e poemas





Publicado em 23/10/2012

Meu plano era escrever uma crônica sobre o que todo mundo já sabe: não há mais partidos no Brasil. A mixórdia partidária parece o retrato de um país que se recusa a pensar, a racionalizar e a escolher. O jogo é bruto. Até algum tempo atrás cheguei a sonhar com alguma nitidez partidária, não de fanáticos, mas de ideias ou conceitos. O choque da velha cabeça agrária brasileira com o seu violento e tentacular corpo urbano, ou a centenária cultura do Estado provedor e paternalista chocando-se com o espírito da iniciativa capitalista e indiferente, ou mesmo, no espaço da vida comunitária, os conceitos de transporte público e privilégio privado e suas consequências, boas ou terríveis, na vida cotidiana, são temas políticos fundamentais que merecem formulação clara, escolhas nítidas, cultura da diferença, alternância de pontos de vista – tudo aquilo a que a vida política brasileira parece ter horror. Sou desligado e cada vez mais distraído, quase nunca vejo tevê, mas algumas coisas saltam aos olhos, como diz o chavão.
Minha sábia diarista diz que não vota em partidos, mas em pessoas; exatamente a mesma frase que li, anos atrás, numa página de Millôr Fernandes. À época, achei que ele estava errado; cartesiano, pensava que estruturas partidárias sólidas e conceitualmente bem formuladas eram o melhor caminho da civilização. Por mais que isso às vezes pareça desesperador, não há salvação fora da política. Continuo pensando assim, teimoso, mas acho que, enquanto não se faz uma reforma partidária decente, votar estritamente em pessoas é o que nos resta abaixo da linha do Equador. Pelo menos como tática de sobrevivência e especialmente no âmbito concreto da cidade, que nos interessa de perto, e não na abstração do país.
No mais, recorro à poesia, que é uma boa solução para os enigmas de todo dia. Abro Carlos Drummond de Andrade, meu oráculo, e lá está: “Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos.” O poema é justamente chamado Nosso tempo – e ele parece mesmo falar de nós, embora escrito há mais de meio século. Os versos falam de um tempo de guerra (“Tempo de cinco sentidos / num só. O espião janta conosco”), mas até na nossa paz momentânea o sentimento de fratura permanece. Vejam-se alguns versos: “Visito os fatos, não te encontro.” E mais adiante: “Esse é tempo de divisas, / tempo de gente cortada. / De mãos viajando sem braços, / obscenos gestos avulsos.”

A visão trágica do poeta (“Símbolos obscuros se multiplicam. / Guerra, verdade, flores?”) deixa sempre uma margem solitária de esperança – “Ainda é tempo de viver e contar. / Certas histórias não se perderam.” Súbito, parece que o poeta via televisão naquele tempo de “cortinas pardas”: “No céu da propaganda / aves anunciam / a glória”.

Eleição à vista, sigo a intuição de Drummond:

“Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem.”

 Cristovão Tezza
Fonte :Gazetas do Povo

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