As
cidades são vivas e dialogam com as pessoas. O tempo todo. Por isso, qualquer
transformação mais profunda invariavelmente passa por elas, nasce delas, que
vão além de meros cenários para nossa existência. São organismos pulsantes e em
constante, e por vezes imperceptível, processo de mutação. Somos, sim, muito do
resultado dessas mudanças, que, por sua vez, também absorvem nossas histórias –
sejam elas constituídas de grandes feitos, acontecimentos triviais ou
retumbantes fracassos – como matéria viva. As cidades, enfim, somos nós.
Às
vésperas de escolhermos novos prefeitos, deveria ser inevitável pensar na
cidade não apenas como uma extensão de nossa casa, ou espaço geográfico onde
decidimos (ou não) viver, estudar, trabalhar e constituir família, seja ela de
que tipo for. É tudo isso, sem dúvida, porém muito mais: configura-se como uma
parte visível e invisível, porém indissociável, do que somos. Talvez por conta
desse seu caráter múltiplo, ao mesmo tempo concreto e imaterial, os rumos que
uma cidade irá tomar nos próximos quatro, ou oito anos, nos afeta. Interfere,
talvez até de forma definitiva, no roteiro do filme de cada um. Escolher,
portanto, não é mera consequência da condição de cidadão. Prova ser um ato
cheio de promessa, e de potencial decepção, som e fúria, como diria
Shakespeare. É um lance decisivo no jogo da vida de um brasileiro.
O
escritor italiano Italo Calvino, em sua obra-prima, o romance As Cidades
Invisíveis, cria um diálogo imaginário entre Marco Polo, “o maior viajante de
todos os tempos”, e Kublai Khan, imperador dos tártaros de lendária reputação,
que faz ao explorador veneziano um pedido insólito, e tentador. Como não tinha
meios de enxergar toda a extensão de seus domínios, o monarca quer que o
navegador lhe conte o que viu de seu mundo, servindo-lhe como uma espécie de
sonda capaz de tudo ver e perscrutar. Mas, sobretudo, de contar.
Tal qual
uma Xerazade, narradora das Mil e Uma Noites Árabes, Polo opta pela invenção.
Mergulha no abismo da ficção para descrever, em detalhes absurdos que nem mesmo
ele sabia ser capaz de criar, 55 cidades nas quais teria pisado. São visões que
combinam referências concretas, presentes na memória do navegador, mas também
elementos que flutuam, a esmo, semeados no imaginário do narrador – e, é claro,
do próprio Calvino – pelas várias artes já existentes naquele mundo, como a
literatura e a pintura, e de outros futuros, sobretudo o cinema.
Quem não
for capaz de sonhar com cidades invisíveis, que existam apenas na própria
cabeça, decerto não conseguirá reinventar a sua própria, que também deve ser
construída de sonhos, desejos e de um tanto de loucura. E esse poder de
interferir nesse destino coletivo é uma aventura digna de um Marco Polo.
Parecido com o que encarnei sem querer quando, no centro velho de uma grande
metrópole brasileira, quase me rendi ao desespero de não conseguir me encontrar
há algumas semanas. Mas fui salvo por um “grafiti-oráculo” em um viaduto que
dizia: “Viva intensamente. Ou desista”. Era a cidade dialogando comigo.
Tomei a
minha decisão e sobrevivi para contar.
– Por
favor, dona Doralice, acalme-se. Homem nu é em outro texto e de outro autor.
Aqui não tem homem nu.
– Como
que não tem!? – Doralice estava siderada – Abra a porta e veja.
Adalberto
abriu a porta e viu o corredor vazio.
– Não tem
ninguém no corredor, Doralice.
– Meu
Deus, disse ela. Eu vi!
Foi
quando Adalberto olhou pela janela. Não viu homem nu algum, mas lá na rua havia
uma correria exagerada. O pipoqueiro largou o carrinho e atravessou a rua. Um
guarda avançou pela calçada oposta, a mão na cintura, pronto a sacar a arma. Em
cada porta de loja, dois ou três curiosos espiando.
Por via
das dúvidas, Adalberto abriu a porta e tornou a examinar o corredor. Foi quando
o homem nu emergiu da escada. Adalberto foi empurrado por ele, que invadiu o
escritório, aos berros:
– Por favor!
Por São Francisco! Preciso me esconder aqui!
O homem
nu saltou por cima do sofá e se escondeu atrás da mesa.
– O
senhor pode me explicar...
– Querem
me matar, disse o homem, levantando-se por detrás da mesa.
Dona
Doralice deu um grito, cobrindo a boca com a mão e arregalando os olhos,
escandalizada. Adalberto pensou que era estranho. Sempre que uma mulher é
surpreendida por um homem nu, ela coloca a mão na boca e arregala os olhos. Não
seria o caso de fechar a boca e colocar a mão nos olhos?
– Me
explique o que está acontecendo, exigiu Adalberto. Mas se abaixe atrás da mesa
para não assustar dona Doralice.
O homem
explicou que estava no prédio ao lado, num apartamento do segundo andar, quando
o marido apareceu.
– Marido?
– O
marido da Cotinha, meu senhor. Ele disse a ela que ia viajar.
– Conheço
essa história, disse Adalberto. Agora é um conto. E de outro autor.
– Pois é.
O marido
entrou no apartamento com o revólver em punho. Só não o atingiu porque era ruim
de pontaria. Foi quando ele saiu correndo porta afora, nu daquele jeito, que
fazer? Quando chegou à rua, causou tamanho escândalo que resolveu entrar nesse
prédio – o seu, queriam me linchar.
– E
agora? – o homem, aflito, se pôs de pé e dona Doralice soltou um gritinho, a
mão na boca, os olhos arregalados.
– Calma,
pediu Adalberto, calma. Já não basta a má fama desse prédio, agora me aparece
um sujeito pelado.
Bateram
na porta. Adalberto mandou o sujeito se esconder no banheiro, abriu a porta.
Dois policiais. Um deles perguntou: um homem nu entrou aqui? Não, disse ele.
Virou-se para o interior do escritório: – A senhora viu algum homem nu, dona
Doralice?
– Deus me
livre e guarde!
Os três
andares do prédio, incluindo-se o bar e o inferninho que funcionam no térreo
foram vasculhados. Nada. Quando a polícia desistiu e aconselhou o marido traído
a sumir com aquele revólver, Adalberto tirou as calças e as entregou ao homem.
Catou uma camiseta que era usada como pano de chão e o homem se vestiu. Dona
Cotinha suspirou aliviada e os dois, disfarçados de casal, saíram abraçados,
sem que a turma que ainda se juntava na rua desconfiasse.
Adalberto
telefonou para a mulher e pediu que lhe trouxesse uma calça.
– Como
assim? – gritou ela. – E a sua calça?
– Já te
explico, não complica. Senão vira uma novela de outro escritor. Traz a calça.
Dona
Doralice faltou ao trabalho no dia seguinte. Entendesse, telefonou ela, levei
um choque. No segundo dia apareceu sorridente, abraçada ao sujeito que, de
roupa nova, nem parecia o mesmo pelado que invadira o escritório. Devolveram a
calça ao Adalberto e dona Doralice pediu só mais aquela tarde de folga.
Entendesse.
Adalberto
entendeu.
Paulo Camargo
Gazeta do Povo
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