Ao abrir os olhos e ao identificar a situação em que se
encontrava desesperou-se, ele tentou de todas as formas se libertar. Mesmo com
o exíguo espaço que lhe restou na escuridão macabra para se mover, chutava, e
arranhava com todo ímpeto as paredes de madeira maciça de seu novo abrigo, como
se sua vida dependesse das próprias garras.
Faltava-lhe o ar. O cheiro da madeira de cerejeira
envernizada impregnava-lhe o nariz e agredia-lhe os olhos. Sua angustia
aumentou ainda mais por acreditar que talvez o tivessem enterrado por equívoco.
Dentro daquele silêncio sepulcral, ouvia o bater
descompassado do seu coração, a respiração ofegante de um desesperado, e sentia
o latejar das veias. Tentou concatenar os pensamentos, mas não encontrava a
causa para estar dentro de um caixão, não se lembrava de nenhum acidente, não
estava doente, não via justificativa para sua morte. Por um momento, refletiu
sobre sua vida e, principalmente, sobre seus enganos. Muitos foram eles: o de
trabalhar em demasia; o de deixar de se cercar por pessoas que amava para
acumular bens que de nada lhe serviam naquele momento. Por correr atropelado,
por correr atropelando, corria contra o tempo. Teve por toda a vida em seu
pulso o marcador das horas não como aliado, mas como um escravizador. Ao passar
a mão direita sobre o pulso esquerdo, percebeu seu relógio de ouro; este fora
enterrado consigo. Sorriu de si mesmo. De que lhe valeu tanta riqueza, tanta
pressa na vida, se o espaço na morte não permitia nem mesmo o corpo em
movimento? Naquele espaço, não cabia a ganância e nem a vaidade. Outro engano,
talvez o que deu origem a todos os demais: não acreditar que um dia sua morte
chega¬ria e que houvesse vida dentro dela.
Com muito esforço, conseguiu levantar a cabeça e trazer o
braço para próximo de sua visão. O relógio, com os ponteiros iluminados,
apontava meia noite.
Penalizou-se por lembrar-se das pessoas que não sentiriam
sua falta.
Tentou se conformar com o sepulcro, mas o desespero aumentou
ainda mais quando percebeu que estava sendo devorado e decomposto lenta-mente
pelos vermes. O corpo exalava mau cheiro. De nada lhe adiantava o per¬fume
francês que sempre usara. A combinação da essência com o aroma do seu corpo não
diminuiria o odor fé-tido. Quanto tempo ainda restava à consciência da vida na
morte? Ela seria permanente? Perguntava-se.
Lamentou as cervejas com os amigos, não as que tomaram, mas
as que deixaram de beber. Imaginou-se em uma manhã ensolarada, brincando com a
filha em um parque, depois de ter namorado a esposa deitados na grama à sombra
das arvores. Era somente imaginação, pois não havia como se lembrar de fatos
não acontecidos. Nunca se casou e tão pouco teve filhos, julgava seu tempo
precioso demais para dividi-lo.
No funesto episódio, Boris teve ainda a consoladora idéia de
que aquilo poderia se tratar de um pesadelo. Seria o pior de todos os
pesadelos, pois pare-cia nunca chegar ao fim. Nova¬mente olhou para o relógio,
passava das três horas.
Depois de tanto se debater, exauriu-se, gastou todas as suas
forças. Sentia que pelos seus dedos esguichava sangue, resultado das inúteis
tentativas de lascar as paredes do caixão para se ver livre daquele lugar. Ele
gritou, buscando se recobrar com o som de seu horror, mas percebeu o som
abafado. Vencido pelo desespero apagou.
Ao abrir os olhos novamente, viu-se despertar em seu amplo
quarto. Os olhos visualizaram toda a parede recém-pintada de azul-piscina.
Respirou fundo e, pela primeira vez, percebeu que o ar da primavera que entrava
pela janela entreaberta era aromatizado, e que o perfume inebriava a alma. Viu
os raios de sol invadir o quarto pelas frestas das persianas, formando na
parede um desenho único de luz e sombra. Ouviu o cantar dos sabiás, o chilrear
dos pardais. Percebeu que o simples fato do lugar comum, de respirar era
espetacular. Olhou para o relógio de vidro rachado, apontava nove horas;
perdera a reunião de negócios. Pensou em levantar-se abruptamente, mas resistiu
ao lembrar-se dos momentos de horrores.
Mesmo aliviado, sentia dores no corpo como se realmente
houvesse estado por algum tempo preso e enterrado dentro de um caixão.
Levantou-se, foi com certa dificuldade até o banheiro para lavar o rosto e
desfazer a imagem do pesadelo.
Então, abriu a torneira e percebeu que jorrava mais sangue
dos seus de-dos do que do jato de água. Olhou para as mãos e, ao ver suas unhas
e parte de seus dedos carcomidos, sentiu uma dor aguda no peito, reconhecera.
Levou as mãos com dificuldade ao rosto, viu-se no espelho desfigurado. Gritou
para quem sabe acordar de outro pesadelo, o som desesperado ecoou em seus
ouvidos. Quando tirou as mãos da face, viu-se dentro do seu real e definitivo
espaço, dentro da morte!
J.Damasio
ORAÇÃO DE UM QUASE DESCRENTE/ 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário