É meio triste quando você acorda no meio da madrugada querendo matar alguma
pequena parte de sua melancolia afogada em um copo de refrigerante ou cerveja,
abre a geladeira e tem de se conformar com um resto de iogurte comprado há
semanas. Você estivera na cama sonhando coisas bem estranhas. Sonhou que era
inquilino numa casa onde os inquilinos anteriores ainda permaneciam; eram ratos,
formigas e baratas, e lhe davam agora uns conselhos e lições de moral em forma
de versos. Você senta na privada e cheira aquilo pra saber mais ou menos o que
está prestes a mandar pra dentro do teu estômago. Esse tipo de merda tem tanto
conservante que é difícil que estrague, e talvez seja preciso um estômago ácido
que nem o seu pra dar um jeito nisso, e não o contrário. Iogurte, aliás, já é
um
troço estragado; danoninho, uma espécie de queijo doce – se você não está
enganado, eles costumavam chamar o tal de queijinho da danone. Ou é só
maluquice sua? Impossível que seja. Você mata logo o que resta de plasma
flavorizado na garrafa e, então, num gesto que apenas o instinto poderia
ensinar alguém a fazer, dá uma remexida circular na garrafa como se pra fazer
mais iogurte se juntar no fundo. Dá pra sentir que já existe um bom tanto,
então você vira novamente na boca. E repete o processo.
As finanças andam ruins na sua casa. Quando isso acontece, uma das primeiras a
sofrer é a geladeira. Até há pouco havia cerveja sobrando por ali. Pelo menos
duas latas pra cada dia de melancólica existência. Agora, nem sombra.
Também papel anda em falta. Suas folhas acabaram há dois dias e você não foi
correndo à papelaria desta vez pra comprar mais. Algum tipo de sentimento de
culpa te assaltou, e não foi o mesmo de sempre, que você sente quando se coloca
a gastar papeis como um doido e então sente uma pontada de tristeza pela
quantidade de árvores que tiveram de ser sacrificadas pra que você pudesse,
hoje, se chamar de Grande Artista neo-Renascentista do pós-Arte.
Não há nenhuma barata nesse banheiro pra você matar, então você se levanta,
puxa a cueca de volta, a calça, e vai à cozinha. Antes, apanha uma caixa de
leite dessas tetrapak na geladeira. Despeja num copo. Bebe. Uns pingos
impertinentes caem da torneira da pia, gerando um som surdo e irritante. Pra
alguém que tem dormido mal, esse tipo de coisa se parece muito com tortura
chinesa. Você precisa ir até ali dar um jeito nisso. Vai. Volta. Não há papel à
vista – apenas um rolo de papel-toalha, sem nenhum papel em volta. Você o pega.
E escreve este texto sobre esta espécie de pergaminho pardo, em formato de
rolo.
Cavi Pessoa
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