No Sarau Popular em Santa Felicidade, lendo o poema abaixo:
Quando ainda era um botão
Ninguém nunca poderá saber se ela gostaria de sentar no
banco de uma praça, abrir o jornal,
saudar os companheiros e jogar pipocas aos pombos.
Ninguém nunca poderá saber se ela gostaria de sorrir e de
agradecer a um jovem que a ajudasse a atravessar a rua ou lhe cumprimentasse
com sinceridade: - Boa tarde, doce senhora!
Ninguém nunca poderá saber se ela se aborreceria em ter que
ficar cuidando dos netos todos os finais de semana em que o casal quisesse se
divertir um pouco.
Ninguém nunca poderá saber se ela seria criticada ou apoiada
ao se intrometer na educação dos netos, ou se seria repreendida ao ceder à
pressão renitente, ao choro estridente, à carinha de cão caído da mudança,
fazendo todas as vontades infantis: assistir televisão até mais tarde, comer
doces antes do jantar, espalhar os brinquedos pela sala, rabiscar as paredes ou
dormir amontoados sobre uma mesma cama.
Ninguém nunca poderá saber se ela suportaria uma traição, se
colocaria na balança, com os mesmos pesos e medidas, seu amor próprio e seu
amor pela família.
Ninguém nunca poderá saber se ela se casaria com aquele cara
que não lhe daria trégua, que lhe mandaria flores e bombons, que ligaria em
plena madrugada, que se ajoelharia aos seus pés, que faria as maiores loucuras
já pensadas e outras bem originais.
Ninguém nunca poderá saber se ela gostaria de ser cortejada
em pleno ambiente de trabalho, se resistiria ao teste do sofá, se seria
totalmente profissional, mantendo-se no emprego por sua integridade e
competência.
Ninguém nunca poderá saber se ela sofreria bullying na
escola, se tiraria as melhores notas, se seria apadrinhada por algum professor,
se mataria aula para namorar às escondidas, se se manteria virgem até o
casamento.
Ninguém nunca poderá saber se ela teria o prazer de
comemorar aniversário por aniversário, se teria a presença de muitos ou poucos
amigos, se não receberia um bolo do namorado, bem no dia de apresentá-lo à
família.
Ninguém nunca poderá saber se ela se lembraria de seu
aniversário de um ano.
Ela foi interrompida numa clínica clandestina, ainda não
tinha forças para gritar por sua vida, quando sentiu as primeiras estocadas
daquele ferro a expulsá-la do ventre, tão jovem e ainda sob a anestesia
hedionda de uma cruel violação.
Ninguém nunca poderá saber se ela foi fraca ou forte o
bastante para tentar resistir e lutar, não há caixa-preta no interior da
placenta.
Ninguém nunca poderá saber se ela perdoaria a mãe, e se não
carregaria remorsos do suposto pai, que a fez sem um pingo de amor.
E parece que ninguém se mostraria tão confiante para afirmar
que ela seria a última, a mártir, o grito de basta, o estopim para a criação de
uma consciência.
Mas há uma coisa de que todos sabem, mas sempre fingem não
saber: há tempos deixamos de ofertar um futuro às crianças, e talvez blindá-las
de fábrica já seja a melhor e única coisa a fazer.
jeferson bandeira
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