("Suave é viver só" - Fernando Pessoa)
Ah, suave é ser sozinho
quando o perfume do vento
não nos traz melancolias
e vagamos ao crepúsculo
apenas com a vontade
de seguir e ir seguindo...
Atrás saudade nenhuma
e nenhum desejo à frente:
somente o vento indeciso
a nos brincar nos cabelos
como os dedos de uma extinta
namorada, a embalar
o coração quase sereno
quase alegre... e um tanto triste,
Sejamos como uma eterna
despedida, pois os laços
- de amizade, de ternura...
são algemas invisíveis
ancorando os nossos passos
na estação já percorrida.
E não volvamos o rosto
para os rostos indistintos
- e já distantes - do cais:
eles vieram chorar
nossa morte diante deles.
Sim, morremos. Nada mais
nos reclama neste porto.
Fantasmas que aqui nós somos
não velaremos as cinzas
do cadáver que ontem fomos.
Seguiremos adiante
(não bem necessariamente
em frente, mas para onde
quisermos os nossos passos
vagabundos) indolentes
sem saudade e sem desejo
nem recordação de beijos
- se acaso os tivemos -
com os corações vazios
e livres como esse vento
preguiçoso acarinhando
as profundezas águas mansas
que refletem nossas sombras.
Sim, suave é ser sozinho
tendo os seixos como cúmplices
e as flores por confidentes:
seguindo, seguindo sempre
quietos sobre a estrada
solenes sob as estrelas...
E sem desejar mais nada
que não seja andar, andar
caminhar por tudo e sempre.
Mas com a condição expressa
de ser - sim! - dos nossos passos
o nosso rastro e o caminho
entre auroras e poentes.
Ah, suave é ser sozinho...
WINCK, Otto Leopoldo. Flor de barro. São Paulo: Edicon,
1987. p. 29-30.
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